Ideias de Chirico

Em lembrança do pintor surrealista greco-italiano Giorgio de Chirico (1888 – 1978), o maior ilustrador de ideias de jerico ― e de Chirico! Um blogue fediversal sobre cultura, cotidiano e tecnologia gerenciado por Arlon de Serra Grande e mantido em servidor coletivo da Ayom Media.

Um homem de pé diante de um computador de mesa; ao fundo, um espaçoso apartamento

Imagem: cena de “Her” (2013).

Ressalva. Em meados deste ano, assisti ao filme “Her” e durante a assistida, redigi algumas notas em um gravador de voz, a partir das quais eu gostaria de organizar uma crítica melhor organizada. Como o filme já foi bastante discutido, decidi que não valeria a pena tanto o esforço ― além de que as notas, como vocês verão, estão suficientemente estruturados, apesar da coloquialidade que não é comum na minha escrita. Por conta do filme ser bastante conhecido, me abstenho de qualquer introdução sua. Tentei deixá-las quase da mesma forma que foram transcritas automaticamente, somente com algumas adições e revisões de algumas expressões que o programa áudio-transcritor não conseguiu compreender bem.

Notas de voz sobre “Her” (2013)

Após 12 anos, desde o lançamento de “Her”, estamos cada vez mais próximos de criar um sistema operacional baseado em inteligência artificial. Então é a hora de discutir como poderia ser essa inteligência artificial.

Nas primeiras vezes em que lhe assisti, encantou-me a estética, sobretudo a fotografia e o setape de computadores que aparecem no filme. Todo o longa-metragem foi recebido por mim e por outros tecnófilos quase como uma espécie de futuro desejado.

A partir do atual estado de arte da sociedade e da tecnologia ― e sobretudo da inteligência artificial ―, outros lampejos me surgiram. Chamou-me atenção em especial em como é representado sua sociedade: inapta a expressar amor, necessitada de um redator profissional para redigir cartas afetuosas, uma necessidade provinda sobretudo de pessoas mais velhas. Além disso, há nesse cenário um fundo pouco explícito, mas hoje em dia conjecturável por conta das BigTech, no qual empresas lucram com solidão em massa.

Mas, por outro lado, vejo um ideal de relação entre tecnologia e seres humanos em “Her”: uma relação amigável, de acolhimento e de confiança, na qual o dispositivo é sobretudo uma ferramenta responsiva, ainda que tenha “sentimentos”.

Nota-se que a voz é o maior meio de orientar de comunicação com o computador, o que torna o filme mais envolvente. O som é um veículo mais acolhedor do que a visão, requer mais participação de quem tem contato com o veículo, o que faz todo o sentido no contexto do filme. Uma interface puramente visual tornaria o filme mais abstrato e menos envolvente.

Outra coisa também muito interessante sobre esse filme é que, apesar de ele ter sido feito em 2013, em um período da ascensão das redes sociais, quando redes como o Facebook e o Twitter estava em alta, o diretor preferiu não as citar. A maior parte do tempo, as personagens do filme falam em e-meios e mesmo o e-meio é um veículo de notícias, então eles têm a newsletter como um veículo de comunicação de massas também.

Essa escolha é lógica, eu creio que tenha a ver com o fato de que as redes sociais naquele tempo já eram um veículo muito abrasivo e, eliminando-as, a gente teria um filme mais cozy, essa coisa agradável, acolhedora, né? Sem tanta abrasividade, sem um cenário tão corrosivo que as redes sociais promovem.

Tem algo também que me incomoda muito nesse filme, que explica o seu sucesso entre os homens, é que da personagem protagonista, um homem sensível, feminino, não se têm suas fragilidades mostradas no filme; a gente não entende porque é tão rejeitado, como é que ele tem tanta dificuldade com a sua relação com as mulheres.

Um dos perigos que “Her” mostra certamente. Primeiro, que as empresas de tecnologia poderiam lucrar com a nossa solidão e com a nossa carência. Isso é indiscutível. Mas também relembra a importância de que, apesar da inteligência artificial, a gente mantenha a tecnologia em sua função de ferramenta, e não de brinquedo ou de meio de entretenimento. Afinal de contas, tudo no filme começa a desandar quando Theodore passa a se distrair com a “humanidade” sintética de “Samantha”, como é chamado o computador.

Acho que é importante também lembrar que Sam Altman designou uma IA sua, a partir do conceito de “Her”. Isso faz pensar sobre como a gente tem que cuidar com a própria gramática visual dos nossos filmes criticando da tecnologia.

Também percebo como algumas discussões são azeitadas no filme como, por exemplo, a questão da criatividade, não é? Em dado momento, quando o protagonista está em um passeio com seu computador, este compõe uma peça musicial que “combina com a situação”. Por nenhum no momento Theodore pensa sobre como a arte produzida por Samantha é sintética, sob quais parâmetros ela é designada.

Então há uma certa aceitação sobre a criação por um inteligência artificial nesse cenário. Porque também ajuda a promover a IA com uma coisa positiva, cria toda essa gramática visual de “tecnopositividade” e seduz as pessoas, inclusive, né? Azeita a crítica a respeito da tecnologia.

Eu gosto desse filme também por conta da relação agradável e azeitada com a tecnologia, mas também como ele promove a concepção de uma slow web, de uma slow tech, também por conta do e-meio ser o veículo principal de comunicação. Há sempre um momento para se receber notícias, e a IA percebe isso muito bem. Ela sabe o momento de dar certas notícias durante a interação, e isso também é positivo.

#tecnologia #cultura #notas


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Texto alternativo: um homem de roupa da moda dos anos 1960 manuseando sentado no chão um computador de mesa assentado em um cenário rural

Imagem: Jeff Ball (via are.na). Este sou eu escrevendo esta ideia de Chirico.

Aquela publicação que lanço quando quero escrever sobre o que tenho lido, discutido e pensado sem precisar de algum fio condutor. Provavelmente a última do ano. Até o próximo, estarei pensando em

Um vindouro manifesto

Isso porque penso seriamente em abrir um novo blogue chamado Offpunk, onde eu manteria um diário de bordo mostrando formas de resistir à digitalização, de viver sem a alta tecnologia e abrir caminhos para uma vida desconectada, independente das Big Tech; ou, como nas palavras de Eduardo Fernandes da newsletter Texto sobre Tela (veja a ponte no na seção Linkroll), buscando “a obsolescência como uma estratégia de liberdade”.

Tomo esse nome de empréstimo de um navegador feito para, acima de tudo, funcionar offline, que foi desenhado pelo escritor e desenvolvedor belga @ploum@mamot.fr.

• Offpunk, an offline-first command-line browser.

Mas penso em antes desenvolver um postura e uma estética em cima desse conceito. Penso em organizar referências culturais, apontar exemplos e caminhos nessa direção. O que nele se diferenciaria do “minimalismo digital” é que estaria relacionado a coisas como: voltar-se ao “low tech”, ao comunitário, ao analógico, ao não elétrico, à permacomputação; manter um estilo de vida de anticonsumo; e utilizar a internet de forma mais intencional, seguindo o ritmo da Slow Web. Para tanto, acho que vale pensar também em dispositivos configurados para esse propósito. Nesse sentido um texto do Ploum que traduzi chamado “Um computador feito para durar 50 anos” vai nessa direção.

• “O computador feito para durar 50 anos”, de Ploum (Ideias de Chirico).

Os argumentos são os de sempre: ter uma vida mais balanceada, mais presente, menos vigiada e com os dados menos explorados, sem se abster totalmente, no entanto, dos serviços digitais. Porém, ao contrário da postura neoliberal e individualista de buscar um “detox digital” em prol da produtividade, gostaria de dar um teor político a essa postura, defendendo o acesso à cidadania e ao lazer sem o intermédio do digital, e o direito à privacidade, a uma infância e uma velhice desdigitalizadas e a uma vida lenta.

Estou retirando muitas ideias dos textos que leio do Ploum, do Low-Tech Magazine (também de origem belga inclusive), bem como de um livro chamado “Digital Detox: a política da desconexão” (da escritora norueguesa Trine Syvertsen) ― que, se não me engano, ainda não foi traduzido para português (leio-o em inglês).

Acho que no começo do ano que vem faço ao menos um pequeno ”manifesto offpunk”, que pretendo traduzir em inglês e em francês. Escrevo isso mentalmente até lá. Aliás, o Ploum mesmo já se propôs a me ajudar na escrita.

Ainda sobre tecnopunkicidades...

Incrível como o simples fato de eu não acessar o Instagram faz algumas pessoas pensarem que sou um eremita, que vivo nas cavernas.

O produtor gráfico do meu livro falou mais cedo:

Não se você sabe, já que não usa mais o Instagram, mas aqueles casos de feminicídio estão sendo bastante discutidos...

(Eu li e ouvi sobre os casos pelo rádio, pela televisão e por podcasts ― com algum atraso talvez, mas soube no meu tempo).

Espera só para ouvir o que vão falar quando eu apagar meu perfil da plataforma... O que está me segurando lá é o que me faz refletir.

Ouvindo sobre o Pessoa

Não tenho falado muito de literatura neste blogue, mas me peguei muito preso neste episódio do podcast 451 FM, da revista 451:

451 MHz: # 174 Fernando Pessoa: todos os sonhos do mundo — 90 anos da morte do poeta.

Não sou muito de Fernando Pessoa, curto mais o que ele influenciou. Posso não gostar de Pessoa, mas gosto de quem gosta de Pessoa. Então por tabela gosto de Pessoa.

Mas o que se diz a respeito do autor nesse episódio fez-me ficar ainda mais interessado pela sua única obra que me interessa, “Livro do Desassossego”.

O livro são várias anotações do diário de Bernardo Soares, um pseudônimo pessoano, um “simples ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa”. Trata-se de uma “narrativa sem narração” ― alguns diriam uma prosa poética, outros um romance moderno. Na primeira vez em que o folheei (há dez anos), me agradou o caráter fragmentário e imagético do livro. Nas aulas de literatura portuguesa do curso de Letras, nosso professor sugeriu que lêssemos não linearmente, pulando à página do nosso gosto.

Mas voltando ao episódio da 451 em si, recomendo a escuta mesmo àqueles que já conhecem o autor português. Acho que há uma infinidade de coisas sobre as quais não sabemos tão facilmente e que o áudio-programa destrincha bem. Infelizmente, até por conta da ocasião do aniversário de morte do poeta, não tocaram no seu discurso racista.

Fast web

Estou prestes a enviar um meme por e-meio. Este é o atual estado digital.

Já disseram que parei no tempo. Só estou cansado de fast web.

Desejos para 2026

  1. usar mais dinheiro vivo, pois detesto depender de eletricidade e de internet para pagar minhas coisas em balcões;

  2. arrumar um “trabalho de verdade” (com alguma formalidade e constância);

  3. estar cronicamente offline;

  4. encerrar a imersão no francês (ano que vem completará dois anos que estou nesse idioma);

  5. e começar a estudar alemão.

(“Desejos”, porque quem tem meta é empresa).

O desconhecido na língua estrangeira

Por que é menos desesperador ver uma palavra desconhecida na língua materna do que ver uma palavra desconhecida em língua estrangeira?

Estava aqui dando uma lida no meu agregador de RSS e fui clicando nas notícias. Aquelas em inglês eu batia o olho e na primeira palavra estranha eu desistia e ia para a próxima notícia. Aquelas em português, mesmo que eu não soubesse o que significava o termo, seguia na leitura.

Já tenho uma boa jornada com inglês, e sei que com paciência eu saco o significado das palavras na hora. Um dicionário médio também serve. Ainda assim, tenho muita resistência a ler nessa língua. Não sou capaz de dizer agora se o mesmo acontece em outras línguas que aprendi.

Será que isso acontece só comigo? Duvido.

Questão de didática (sobre outros punks)

Pergunto-me por que os punks dos anos 2000 não chamavam o “sistema” simplesmente de “capitalismo”. Isso seria bem mais didático.

Linkroll

Seção em que faço uma curadoria de pontes que encontro pela internet.

Ouvi falar que o Pinterest tem enchido a si mesmo de lixo de IA. Tenho-lhe um substituto: are.na.

A plataforma é autodescrita como um lugar de “playlists, só que de ideias” ou “um palácio de memórias da internet”. Em poucas palavras, é um recanto de curadoria, seja de música, de sítios web, de imagens ou de vídeos ― algumas listas têm tudo isso junto e misturado.

Outra vantagem do Are.na é o seu repositório. Algumas listas datam de 2014. Ah, e não precisa de conta para navegar e nem tem loginwall como o Pinterest.

Esqueci de publicar essa ponte no último linkroll: um sítio lindíssimo mostrando com o efeito granulado (dithering) funciona. O efeito granulado, para quem não conhece, é uma forma de tornar uma imagem mais leve, pixelizando-a totalmente no degradê entre duas cores (em geral, preto e branco).

Dithering, part 1 (Visualrambling).

Tornei-me um fã desse efeito desde que comecei a acompanhar as publicações do Low-Tech Magazine, citado lá em cima, ilustradas com imagens em dithering. Cheguei a tentar publicar somente fotos com essa estética aqui nas Ideias, mas dá um baita trabalho editá-las e deixá-las em um servidor estável.

A sedutora, esquisita e colossal beleza da indústria: desde fábricas de bonecas sexuais nos EUA, centros de pesquisa nuclear, fazendas de maconha na Dinamarca e fábricas de sapatos na Indonésia.

The Unintended Beauty of Big Industry in the 21st Century – in Photographs (Flashbak).

Um sítio que divulga notebooks costumizados com adesivos e os organiza por temas:

Stickertop.

Essas artes são bem antigas (de meados da década de 2010), mas acho que ainda vale a divulgação: pôsteres imaginando propagandas de plataformas de entretenimento e redes sociais como se fossem tecnologias dos anos 1950. Gosto desse estilo retrofuturista e de como plataformas como Youtube e Facebook ainda eram vistas com uma certa simpatia...

Vintage social media ads as retro campaign (Brand Constructors).

Crescer entediado com os celulares está matando o poder transformador do tédio (ihu.unisinos.br).

Texto de newsletter pensando sobre resistência digital a partir da sutil guerra entre tecnologias no filme “Uma batalha atrás da outra” (2025), no qual “aparelhos analógicos aparecem como uma estratégia pra fugir da vigilância digital”.

Geriatria da tecnologia (Texto sobre tela ― Substack).

Considero “Uma batalha atrás da outra”, aliás, como um filme exemplar do que chamo de #offpunk.

Vídeo: “Sesame Street – Computer E/e”.

Citações

O smartphone é hoje um lugar de trabalho digital e um confessionário digital. Todo dispositivo, toda técnica de dominação gera artigos cultuados que são utilizados à subjugação. É assim que a dominação se consolida. O smartphone é o artigo de culto da dominação digital. Como aparelho de subjugação age como um rosário e suas contas; é assim que mantemos o celular constantemente nas mãos. O like é o amém digital. Continuamos nos confessando. Por decisão própria, nos desnudamos. Mas não pedimos perdão, e sim que prestem atenção em nós.

― Byung-Chul Han, filósofo teuto-coreano.

Não há condições de ensinar para uma mosca que mel é melhor do que bosta”

― meu psicoterapeuta.

Se uma árvore cai em um bosque e não há ninguém para a ouvir, ela faz ruído?

― Koan, um exercício mental budista.

Pedidos

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#notas


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Diz-se que alguém é “curto e grosso” quando é direto ao ponto, sem rodeios, às vezes ― e este o sentido principal ― grosseiramente objetivo. Percebo que esse traço não é benquisto no Brasil, ao menos em sociedade. Passei a o notar no período em que ensinei português para estrangeiros. Ao contrário do brasileiro médio, a pessoa do Congo, do Quênia ou da Colômbia não tem muitos dedos para dizer um “não” ou “não gostei”.

O “curto e grosso” não é bem aceito no Brasil. Em sociedade. Em literatura, acho particularmente a forma ideal de se passar uma informação ou macroinformação a alguém que nunca ouviu falar a respeito de determinada matéria. Salvo alguns belos calhamaços como “The Cantos”, de Pound, os livros que mais me marcaram ou que mais me ensinaram, não tinham mais do que 150 páginas. Nesta publicação quero falar um pouco delas.

Os livros “curtos e grossos”, para além de serem breves, também são aqueles que, por alguma razão fizeram-me reler ao menos uma vez na vida; aqueles que, em avulsos momentos de dispersão, me visitam sem fazer alarde ou epifanias; obras que ficaram não só na memória, mas na memória muscular. Sua leitura flui tão bem que eu o poderia ler em uma tarde, malgrado o fato de conterem em si um alto grau de informação.

“O que é comunicação poética” (1987), de Décio Pignatari

A primeira obra que me vem à mente quando penso nessas características é esse antológico livro do poeta, ensaísta, tradutor e paulista Décio Pignatari. Na primeira leitura que fiz, há dez anos, me encantou em especial a forma com a qual o autor fazia o uso da palavra para explicar os processos da própria arte da palavra ― coisa rara em prosa em língua portuguesa é um texto introdutório bem escrito!

Com esse livrinho, Pignatari pretende fornecer os recursos para possibilitar o mínimo de competência poética ao leitor, e de certa forma dessacralizar a poesia, tornando-a uma arte como qualquer outra (citando Pound logo no início, o autor diz que a poesia estaria mais próxima das artes plásticas do que da literatura); e que, como arte, necessita mais de técnica do que de inspiração.

Também foi através de “O que é comunicação poética que peguei o gosto por semiótica, a ciência que busca entender os processos das linguagens. O autor comenta versos ou construções poéticas não pelo campo do discurso ou do simbólico (verbal), mas pelo campo da sintaxe formal e da estrutura (não verbal). Cheguei a o ler três ou quatro vezes, e em todas elas tenho lampejos sobre a linguagem poética e aprendo um pouco mais sobre escrever, tanto poesia, quanto prosa, visto que Pignatari não escreve ― ele joga bola com as palavras.

“Saber ver arquitetura” (1948), de Bruno Zevi

Nos primeiros dias em que cursei arquitetura, em um longínquo ano de 2016, uma pergunta circundava todas as aulas: o que é arquitetura?

Confunde-se arquitetura com engenharia e até mesmo com design (diz um meme que “Arquitetura é design de edifícios”). Isso porque as três áreas, em maior ou menor grau, trabalham com estruturas.

No entanto, foi com a leitura de um livrinho introdutório sobre a matéria que a minha dúvida foi sanada.

Duas coisas saltaram-me aos olhos nessa leitura: o texto muito bem escrito de um autor que não tem a escrita como principal meio de expressão, e o modo com o qual o autor relaciona todas as linguagens e áreas. Para o arquiteto italiano Bruno Zevi, o desenvolvimento da Teoria da Relatividade e também da linguagem cubista na pintura foram imprescindíveis para o desenvolvimento de uma linguagem e de uma teoria da arquitetura modernas como conhecemos.

A razão dessas influências? Através dessas duas macroideias, os teóricos de arquitetura perceberam a importância do fator tempo para a linguagem arquitetônica ― de tal modo que Zevi defende que um edifício só pode ser entendido à distância através de um registro em vídeo, não tanto por fotografia ou planta baixa...

Outro exemplo da dialética e interdisciplinaridade na arquitetura: o arquiteto Aldo Rossi aponta que a teoria linguística de Ferdinand de Saussure (que Jung vai adotar em sua teoria de psicanálise) foi determinante em seus projetos, já que trabalham com modelos e estereótipos coletivos.

Ler sobre arquitetura mostra-nos que as coisas não estão assim setorizadas com as gostaríamos, mas sim em eterno diálogo e triálogo com outras artes, linguagens, tecnologias e ciências.

Saí do curso de arquitetura em 2019 para ingressar na graduação de Letras, porém as lições que Zevi deixou sobre interdisciplinaridade fizeram-me estar sempre alerta nas aulas do Centro de Humanidades quando alguém quer delimitar e setorizar conhecimentos. A importância desses estudos é tanto que, mesmo depois de sair do curso, segui lendo sobre arquitetura, sobretudo arquitetura contemporânea, área na qual não pude me aprofundar durante essa graduação.

Na era da eletricidade, tudo está interconectado. O todo afeta as partes e, sobretudo, as partes afetam o todo. Arquitetura ensinou-me a rejeitar uma postura especialista, de gênio individual, para adotar uma postura polímata, de membro de uma equipe.

“Em louvor das sombras” (1933), de Junichiro Tanizaki

A primeira vez em que ouvi uma menção ao ensaio de Tanizaki foi numa conversa entre amigos. Na casa de um deles, que era mantenedor de um sebo virtual, em seu quarto lotado de livros e artigos curiosos, estava “Em louvor das sombras”. Saltou-me aos olhos a fina espessura do livro que se contrastava com a bela capa azul, ilustrada com uma iluminura tradicional japonesa ao centro. Após ler o seu resumo de contracapa, tornou-se uma leitura pendente.

Como não o encontrava disponível em lugar algum (aquele exemplar do sebo virtual estava vendido, ou sendo lido naquele momento), decidi buscar por uma cópia sua na internet. Encontrei uma tradução em português... de Portugal. A linguagem rebuscada do português europeu em nada conversava com o estilo enxuto e direto do ensaísta japonês. Lembro claramente de leituras suas feitas na cama, nas quais eu acabava dormindo ― por mais interessante que fosse o texto.

Há mais ou menos dois anos, porém, em uma leva de livros doados para o Centro Acadêmico de Letras da minha faculdade, lá estava o danado outra vez, mas em versão anglófona: “In praise of shadows”, na primeiríssima edição dos Estados Unidos, pela Leete's Island Books, de 1977. Como eu tinha por mim que a língua inglesa e a japonesa de certa forma aproximavam-se quanto à sintaxe simplificada e à natureza ideogramática, de justaposição de vocábulos, achei que seria uma boa opção. Decidi dar mais uma chance ao livro.

E disso resultou uma das leituras mais fluidas e influentes da minha vida.

“Em louvor das sombras” parte de iniciais reclamações de Tanizaki sobre como as tecnologias elétricas como o abajur, a lâmpada, o ventilador e a grelha elétrica, importadas todas do Ocidente, estavam impactando negativamente sua cultura tradicional, sobretudo a sua arquitetura. No entanto, posteriormente Tanizaki desenha uma cartografia de como as sombras e as penumbras estão presentes na moda, na música, no comportamento e até mesmo na culinária japonesas; contrastando-as com a busca incessante pela luz dentro da cultura ocidental.

Tanizaki não se restringe somente à estética, e fala sobre as implicações de não haver uma ciência local e sobre como as invenções modernas não são desenhadas considerando os mais velhos (isso ainda no primeiro quarto do século XX!)

A edição estadunidense está prefaciada pela professor Charles Moore, da Escola de Arquitetura UCLA, o que pode dar a entender que o livro interessa apenas a quem está envolvido com design ou arquitetura. Ceio que, entretanto, seja um bom livro àqueles que se interessem pela cultura japonesa tradicional de um modo geral, bem como pelo efeito das novas tecnologias em povos que não estão circunscritos no seu desenvolvimento e produção.

Essa obra é mais um lembrete de que as tecnologias, mais do que importar discursos, abalam culturas inteiras...

“Os loureiros estão cortados” (1887), de Edouard Dujardin

Todos os livros sobre os quais falei até agora são aqueles que me instruíram sobre alguma coisa. Porém “Os loureiros estão cortados”, novela de Edouard Dujardin, foi um daqueles que mais me entreteram.

Como diz o escritor francês em uma carta a seus pais: “[O livro] é simplesmente o relato de seis horas da vida de um jovem apaixonado por uma demoiselle ― seis horas durante as quais nada, nenhuma aventura acontece, e, na maior parte do tempo, o personagem está sozinho”. É isso. Um passeio de fim de tarde e começo de noite de uma Paris vitoriana. C'est tout.

No entanto, todo o encanto dos “Loureiros” está em sua linguagem...

O texto todo é composto quase sempre em primeira pessoa, ou em “POV”, como defini “Se em uma noite de inverno um viajante”, de Italo Calvino, em uma das notas costuradas. Encantam em Dujardin a escrita impressionista, colorida e em movimento constante, sem elipses, logo, de “planos sequências”. É como assumir a posição de protagonista do livro.

James Joyce, romancista que escreveu o colossal “Ulisses”, recomendou “Os loureiros” a um amigo, a fim de que esse reconhecesse a inspiração do autor irlandês para o monólogo ininterrupto de Molly Bloom, de cerca de 150 páginas.

Certa vez o li em uma única tarde, durante uma viagem de duas horas na Serra Grande. Gosto de como as cenas são construídas e de como o uso da linguagem é posto como protagonista do livro, sempre a emular o “fluxo de consciência” (conceito esse, inclusive, para o qual essa novela foi determinante).

Se eu fosse escrever uma narrativa, seria algo como “Os loureiros estão cortados”. É um desses livros leves, mas extraordinariamente originais, que se leem quando tudo vai mal.

#cultura


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Imagem ao fim do dia de vários edifícios europeus de estilo moderno com suas luzes amareladas acesas. Ao horizonte, no céu, vemos vermelhos e azuis

Imagem do centro comercial de Utrecht. Fotografia de @jeroenheijmans@mastodon.social

Publicações avulsas de outros lugares, pontes (“links”) e algumas citações que coletei nos últimos dias. A partir de agora, preferirei o termo “lampejo” em lugar de “insight”.

O analógico enquanto vanguarda

Engraçado que instrumentos mecânicos como máquina de escrever e bicicleta eram tidos como meios de atraso ou indícios de pobreza. Agora que se vê os males do carro e da digitalização compulsória da vida, aqueles mesmos instrumentos são vistos como emancipatórios e até revolucionários.

Uma noite no centro de Nova York

Meu pesadelo é eu protagonizar um remake não oficial de “After Hours” (1985), ou seja, entrar em uma espiral secular de azar e más decisões madrugada adentro no centro da cidade em uma quarta-feira qualquer.

No filme de Scorsese, acompanhamos a jornada de desconstrução de Paul Hackett, um “iupe” clássico do natimorto sonho americano, com sua vidinha de profissional liberal solteiro com T.T.T. (teto-televisão-travesseiro).

Sua viagem inicia quando, ansioso por ter uma aventurinha, aceita ir ao centro de Nova York por convite de uma desconhecida que conheceu em um café na mesma noite e que lhe fornecera pesos de papel, feitos por sua rumeite artista. Eram 23h quando Paul tomava o táxi para o “loft” da dita-cuja.

Essa semana lhe assisti pela terceira ou quarta vez, a primeira quando ainda era ~bebê, em uma sessão pós-noturna dessas do Corujão da Globo, logo após ter acordado na cama dos meus pais. Sempre que assisto ao “Após Horas” gargalho aprendendo a rir com o azar e a ver uma certa graça nas coincidências.

O personagem principal de 'Onde está Wally' utilizando um smartphone, cuja tela afirma que 'O Google gostaria de permissão para usar sua localização'

Cartum de McPherson.

A casa como espaço do antidigital

Li uma matéria sobre as preferências de compradores por “casas burras”, onde haja espaços desconectados. Um cantinho da leitura, uma varanda de detox digital, espaço de meditação etc.

Bateu-me aqui um lampejo e eu queria mesmo era uma casa 100% analógica, onde o digital de fato não entrasse. Não sei como faria isso, mas é um exercício a se fazer. Só posso associar o digital ao trabalho. E a casa para mim não deveria ser associada a outro trabalho que não fosse o doméstico... De certa forma, estar em linha dentro de casa é cultivar uma jornada, não só dupla, mas síncrona.

Sobre Lô

Na última segunda-feira, voltando do trabalho ao fim do dia, eu ia pôr música para tocar nos fones. Mas, como não estava moodado, acabei decidindo ouvir rádio.

Na rádio Band comentaram por cima que o Lô Borges, do Clube da Esquina, morrera mais cedo. Sempre carrego o seu “álbum do tênis” no telefone, para ouvir quando tenho um tempo livre.

Muito doido que logo o Lô Borges, que tinha um aspecto mais jovem, foi o primeiro do Clube da Esquina a falecer... É cada vez mais triste ver essa gente grande morrer aos poucos e não ter quem ficar no lugar.

Passamos por um estado insolúvel daquilo que o @mathek@tilde.zone chama de “orfandade cultural”.

Aportuguesamento

No meu íntimo chamo Air Frier de “frita-a-ar”.

O tuíte do perfil @CSMFHT que diz: 'Um novo navio de Teseu acabou de chegar, mas agora ele tem pensamento consciente'. 'Thomas não gostou do seu tempo na Oficina. 'É bom sentir-se consertado novamente,' disse ele depois, 'mas eles tiraram tantas das minhas peças velhas e colocaram peças novas, que eu não tenho certeza se sou realmente eu ou outro motor.'' O 'navio de Teseu' é uma referência ao paradoxo filosófico que questiona a identidade de um objeto quando todas as suas partes são substituídas. Nesse caso, o meme usa Thomas, o Trem, para ilustrar esse conceito.

Tuíte do @CSMFHT. “Um novo navio de Teseu acabou de chegar, mas agora ele tem pensamento consciente”. Na imagem: “Thomas não gostou do seu tempo na Oficina. 'É bom sentir-se consertado novamente,' disse ele depois, 'mas eles tiraram tantas das minhas peças velhas e colocaram peças novas, que eu não tenho certeza se sou realmente eu ou outro motor.”

De volta ao Mastodon

Por motivos de instabilidade nos servidores, no fim do mês passado migrei da minha antiga comunidade fediversal, harpia.red, para a mastodon.social.

O desenvolvimento do Mastodon tem que urgentemente colocar respostas em contexto, como era habitual no antigo Twitter (não sei como está hoje), onde, se se via um tuíte-resposta, acima vinha o tuíte respondido.

Isso não acontece no Masto. É tudo ocultado. Certa vez respondi a um tute que parecia responder a uma publi minha de um assunto X. Escrevi 500 caracteres bem opinioso sobre assunto X. Quando publico, vejo na verdade que a publi falava de assunto B. Por quê? Porque eu não tinha visto o tute respondido.

Não é falta de atenção, caro leitor. Quer dizer, também. Mas é sobretudo falta de um bom desenho de interface. Esse é o maior motivo pelo qual gente como eu não dura muito tempo nessa plataforma. Além de confusa, a interface não fornece mais de uma experiência que não a linear, de fluxo contínuo “timeline”. Os desenvolvedores do Mastodon têm a faca e o queijo na mão para se tornarem a plataforma mais respeitada do Fediverso.

Cadê os lunáticos quando a gente precisa deles?

Bem que um panicozinho moral em torno da “inteligência artificial” cairia bem agora, hein?

Linkroll

A Wall Street Journal fez um vídeo explicativo sobre como os fones com cancelamento de ruído funcionam. Dada a complexidade do processo, imagino o quanto isso gaste a bateria do equipamento...

How Noise-Canceling Headphones Create Silence in Microseconds (The Wall Street Journal ― Youtube) [EN].

O IBGE fez um sítio web bem legal para divulgar os resultados do Censo de 2022 sobre os nomes utilizados no Brasil. É possível pesquisar por nomes e sobrenomes. A partir de busca por palavras, aparecem resultados como número de pessoas com o nome, idade média de pessoas que têm esse registro, gráfico longitudinal de adoção do nome e signo do horóscopo (?) e o signo chinês (?) mais comuns de pessoas que possuem o nome buscado. Raros são esses sítios que o governo faz que são divertidos ao mesmo tempo que fazem um bom serviço público...

Nomes do Brasil (Censo 2022, IBGE) [PTBR].

A revista Nature perguntou a pesquisadores que usam inteligência artificial sobre como a propensão da ferramenta a agradar as pessoas afeta o seu trabalho ― e o que eles estão fazendo para mitigá-la.

AI chatbots are sycophants — researchers say it’s harming science (Nature) [EN]

Árvores refletidas em uma poça d'água

Fotografia de @sarablap@neopaquita.es

Citações

E tem coisa mais low profile que só ter conta no fediverso? É mais low profile que não ter rede social nenhuma

@hugu@masto.donte.com.br

Não usem drogas. Já repararam que todo o ex-usuário de drogas se converte em um crente? É isso que vocês querem para a vida de vocês? Serem crentes!? As drogas são a porta de entrada para a Igreja Universal do Reino de Deus

@noahloren@kooapp.org

A amizade é o sal da vida.

― Jorge Amado.

Batendo duas mãos uma na outra temos um som. Qual é o som de uma única mão?

― Koan, um exercício mental budista.

Pedidos

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#notas


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Ressalva: No último dia 28 aconteceu a cerimônia de entrega dos certificados do curso de português para estrangeiros do Núcleo de Línguas da minha universidade. Como relato nesta publicação, ministrei aulas de português como língua estrangeira (PLE) desde fevereiro deste ano por meio do Programa Estudantes-Convênio (PEC-PLE), cujo objetivo é preparar estudantes de outros países para a prova Celpe-Bras. Como sou concludente do curso de Letras, infelizmente já não poderei seguir com as aulas no ano que vem.

Como tinha muito o que falar naquele momento, decidi escrever um texto sobre a minha relação especial com o ensino de PLE, com a língua portuguesa em si, e algumas considerações sobre o Brasil enquanto país de acolhimento. Antes mesmo de começar o pronunciamento, falei um pouco sobre o impacto dessas aulas em minha formação, como me encontrei bem nesse ramo educacional e também chamei a atenção para a falta de formação para o ensino de português para estrangeiros nas universidades brasileiras.

Bati esse texto à máquina de escrever na tarde anterior ao evento, mas, apesar da pressa e do improviso, penso que consegui condensar bem a minha postura sobre o meu idioma materno e sobre meu país.

Transcrevo-o aqui tanto porque alguns alunos os quais eu gostaria de que estivessem lá não puderam comparecer, quanto porque penso que esta fala possa interessar a mais pessoas. Nesta transcrição fiz algumas correções, mas procurei manter também algumas adaptações que fiz no momento da fala.

Aqui o texto:

Discurso para concludentes do PEC-PLE 2025

Pronunciado em 28 de outubro às 16h30 no Núcleo de Línguas da Universidade Estadual do Ceará, campus Itaperi

Boa tarde a todos.

Bom, aqui estamos. Finalmente posso falar em português com todos vocês! É com esta língua que penso todos os dias, com que amo, aquela com que expresso meus medos e meus sonhos da forma mais precisa possível; e é esta língua que herdo a vocês!

Esta minha fala é o atestado de meu trabalho com Alef e Tobias nos últimos oito meses. Em fevereiro, eu não podia falar uma frase sequer, sem que, para ser entendido, precisasse modular minha fala, explicar termos, fazer breves traduções; hoje posso utilizar minha língua da forma mais sofisticada possível, que sei que todos vocês irão me compreender! E mais: serão capazes de dar uma resposta à altura.

Sei que alguns de vocês vieram ao Brasil aprender português sobretudo para a realização de uma prova de proficiência linguística. Felicito-lhes pela coragem. Não sei se eu mesmo o faria. No entanto, gostaria de que o interesse de vocês ultrapassasse o nível instrumental deste idioma. Esta é a língua dos meus pais e dos meus melhores amigos; ensiná-la a vocês foi mais do que um trabalho: foi parte de uma missão. Entendam-na como um presente que lhes dou.

“Minha língua é minha pátria”, diz uma canção de Caetano Veloso que estudamos em sala de aula. A partir do momento em que vocês aprenderam esta língua com que falo, não estão pura e simplesmente habilitados a iniciar estudos universitários no Brasil; vocês ingressaram na comunidade lusófona, que se espalha pelos quatro cantos do mundo, até mesmo em países que não têm o português como idioma oficial.

Se você fala a língua com que falo ou a aprende, você é meu compatriota; se você me entende, você me é um irmão. Digo isto não somente por mim: é assim que os brasileiros interpretamos a nossa língua. Quando um brasileiro vê um estrangeiro a aprender a sua língua, para ele significa mais uma pessoa do mundo desconhecido com que pode se comunicar, é mais uma antena com que pode transmitir sua mensagem para o mundo.

Atualmente tenho domínio de quatro línguas estrangeiras; e com toda a minha franqueza, tenho de admitir que o português segue como minha favorita. Não porque eu tenha alguma afeição somente, mas porque com esta língua é possível fazer tudo: é possível cantar desde o punk rock mais rasgado de um Garotos Podres até o mais sensível chorinho de Cartola; pode-se fazer a literatura mais dura de um João Cabral de Melo Neto ou de um Graciliano Ramos, mas pode-se fazer a literatura mais barroca de um Guimarães Rosa ou de Cecília Meireles. A língua portuguesa pode tudo. Pode poetizar, pode cinemar, pode musicar. E também pode (e deve) se internacionalizar. E nisto nós professores e vocês estudantes pudemos contribuir.

E tão diverso quanto esta língua são os países que a falam. Somos atualmente 265 milhões de pessoas lusófonas, espalhadas nas Américas, na África, na Europa e, em algum grau, na Ásia e na Oceania. Mas talvez não haja outro país que mais fez desta língua sua bandeira do que o Brasil.

Sei que alguns de vocês podem pensar, e pensam certo, que a implementação da língua portuguesa é resultado de um processo de colonização e de regimes autoritários subsequentes. Até meados do século XIX, esta não era sequer o idioma mais falado em território brasileiro. Nas primeiras décadas do século XX, logo após uma série de genocídios [de povos] indígenas causados pelo império lusobrasileiro, a ditadura Vargas proibiu que qualquer outra língua que não o português fosse falada e até mesmo ensinada pelos brasileiros, malgrado a constante onda de imigração de japoneses, italianos e alemães em nosso país, iniciada no século anterior.

Ao fim de tudo, o português acabou sendo a única língua falada oficialmente nos mais de oito milhões de quilômetros quadrados do Brasil. Com suas variações, com seus dialetos, mas falada. E em seu bojo guardou a influência de todos os povos que por ela percorreram: árabes, africanos, ameríndios, europeus.

O brasileiro é hoje majoritariamente monolíngue, mas faz desta língua a sua ferramenta de trabalho e o seu brinquedo.

Quando suas jornadas neste país acabarem, espero que ao menos alguns de vocês fiquem. Mas se não ficarem, que levem o Brasil aonde forem.

Entendam no entanto que não existe um Brasil. Existem Brasis. Tão diverso quanto sua língua, é este país difícil de ser definido. O comediante francês Paul Cabannes certa vez disse que no Brasil nada é pouco; no Brasil tudo é muito: se alguém dança, ela dança muito; se namora, namora muito; se estuda, estuda muito. E neste país de intensidades espero que vocês também sejam, aprendam, amem e festejem muito.

E quero dizer que, independentemente de quais sejam seus planos neste país, com a maior franqueza do mundo: vai dar certo. Cedo ou tarde, vocês conseguirão realizar tudo o que quiserem no Brasil. Ele pode ter um monte de problemas, mas tudo o que se sonha no Brasil, se realiza. Como diria o poeta Décio Pignatari: “No Brasil, só não resulta o que você não faz”.

E a partir deste programa, estou certo de que estou mais perto de realizar o meu sonho que é tornar o português uma linguagem internacional e o Brasil um país internacional. Por isso, agradeço a cada um de vocês que participou deste pequeno passo na nossa História.

Enantchê nuê, Cotonou!

Natonde mingue, Brazzaville! Natonde mingue, Kinshassa!

Obrigadu, Dili!

Assantsi, Nairóbi!

Gracias, gente de Cienfuegos, Bogotá y San José!

Um grande abraço desde a Serra Grande, a terra onde nasci. Good luck, bonne chance, vos deseo suerte.

Obrigado pela atenção!

Post-scriptum: todo o poder ao Sul global!

#cultura


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Caricatura de um homem calvo, de olhar severo com o nariz pretuberante e uma parte do rosto apagado

Imagem: caricatura de Paulo Mendes Campos.

Uma lista de coisas deleitáveis, escrita durante uma leitura de lista de coisas deleitáveis, uma crônica de 1962 de Paulo Mendes Campos:

Sombra de árvore em parede ao fim do dia; escrever em máquina de escrever; escrever em teclado mecânico; tirar os sapatos ao fim do dia e tocar os pés no assoalho frio; acertar nota difícil em violino; ouvir sotaque de estrangeiro aprendendo português; acordar cedo sem alarme; comprar queijo coalho barato; ouvir jazz em um bom fone de ouvido; ver álbum de fotos de família de gente desconhecida; a palavra eavesdrop; a voz de Ezra Pound quando estava velho; sol nascente; sol poente; criança pequena ouvindo atentamente alguém falar; cúmbia; ver alguém dançar cúmbia; espanhol argentino; inglês britânico, sobretudo o Cockney; português timorense; francês africano, sobretudo o beninense; perceber a simplicidade de uma coisa aparentemente complexa, como por exemplo, conseguir meditar pensando em nuvens e ondas do mar; beijar mulher engraçada depois de ela fazer rir; ouvir alguma história sobre Oswald de Andrade; ouvir alguma história sobre Erik Satie; visitar um completo desconhecido por convite de um amigo e comer e beber de graça; fita cassete; começar a aprender uma língua nova; vaia cearense; acertar uma expressão em francês depois de muitas tentativas; fazer becape de arquivos; olhar horas “redondas” em relógio mecânico de pulso; falar em espanhol com nativos; a primeira hora de uma paixão; usar chapéu grande debaixo de sol forte; conhecer uma nova palavra que passa a nomear algo que já conhecíamos ― como por exemplo, “serendipidade”; mulheres de cabelo joãozinho; receber elogio de crianças; a série de colagens “Jazz” de Henri Matisse; beijar depois de beber cerveja gelada; ouvir Décio Pignatari falando; ver como gente detestável ficou feia depois dos 20 anos; Johann Sebastian Bach; texto com parágrafos curtos; a feiura de recém-nascidos; qualquer coisa sobre o Japão; reconhecer figuras em caracteres chineses; dicionários que tem transcrição fonética das palavras; ouvir da rua o toque de pedido de viagem Uber; ler João Cabral de Melo Neto e imaginar cenas de construção; ouvir João Cabral de Melo Neto cacoetar com “Compreende?”; filmes tão bons que continuam na nossa cabeça, por meses; experimentar bicicleta alheia; ler jornal de papel em um domingo tranquilo; céuzinho azulzinho ― sobretudo no mês de agosto, às 14h ―; calças de alfaiataria; calças que têm bolsos bem largos e fundos; ser surpreendido com massagem nas costas, enquanto se está no computador; tocar alfaia em grupo; mijar de madrugada no escuro, sentado; lambretas; quando uma criança cai e, em vez de chorar, ela começa a rir; som de aviso do vigia noturno de motocicleta; a atuação de Kôji Yakusho em “Dias Perfeitos”; dia demorado em casa; abajur; luz de abajur; telefones pequenos; o primeiro disco de Arthur Verocai; gatos gordinhos; televisão de tubo; quando acham que você é mais jovem do que de fato é; usar acento grave indicador de crase da forma correta; o modo como os cubanos levantam os ombros enquanto argumentam sobre um assunto delicado; andar de skate depois de anos sem ter subido em um; perceber a comunicação não verbal dos músicos em serviço; dispositivos com tela “de papel”; lembrar que é sexta-feira, e não quinta-feira; lembrar que é sábado, e não domingo; automóveis coloridos e miudinhos; notar que os músculos estão crescendo; dormir fácil; jogar xadrez com um colega de trabalho no intervalo; banho de cachoeira da Serra da Ibiapaba; banho de rio do sítio Ingazeiras; o primeiro banho do dia; a cidade de Fortaleza durante a hora dourada; Serra da Ibiapaba debaixo de neblina; ler debaixo de sombra de árvore; acordar cedo descansado e lépido; conseguir sentar em modo seiza; dicionários de bolso da Collins Gem; fazer listas.

#cotidiano


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Longas notas desta vez. No entanto, não consigo vê-las separadas. Somente uma breve ressalva: a partir desta e das futuras publicações, estarei preferindo o complemento nominal “em linha” em lugar do anglicismo “online”.

Estudando “Estudando Poesia”

Se você acompanha a aba “Agora” destas Ideias de Chirico, viu que há alguns meses tenho trabalhado na autopublicação de um livro, o “Estudando Poesia”.

Que é o “Estudando Poesia”? Bom... é autoexplicativo, mas nem tanto. Entre 2014 e 2019, reuni quatro cadernos de escritos de poesia. Eram literalmente meu processo de aprendizagem da linguagem poética tradicional. Isto é, meu processo do domínio do verso enquanto veículo de poesia.

Durante o ano de 2014, estudei a forma soneto; no ano seguinte, a prosa poética; em 2016, pratiquei o verso livre, e daí em diante só aprimorei o que aprendi, até culminar em 2019 quando desisto de fazer poesia em versos. Fora o verso sem caixa alta, só de minúsculas, escrevi toda sorte de estilo e forma, inclusive descaradamente imitando autores de que gostava. Em 2020 então passei a me dedicar ao estudo de poesia concreta, encerrando o ciclo iniciado em 2014.

Eis que em 2021 participo de um curso de “Poesia Expandida” realizado em linha pela Casa das Rosas em São Paulo. Tratava-se de uma oficina de experiências coletivas com poesia transmidiática. Isso me proporcionou duas coisas: uma comunidade dedicada à poesia e ânimo para publicar um livro. Além de tudo, com as discussões dentro do curso e outras leituras que fiz durante o tempo, tive repertório suficiente para entender o meu processo de aprendizado poético.

Como somente os versos por si não seriam suficientes para o leitor compreender os meus objetivos e as minhas decisões, a cada caderno escrevo um “depoimento” falando a respeito das lições formais que tomei com cada padrão poético ― com quais temas cada um combina, que tipos de sensibilidade cada um proporciona. Além disso, também decidi escrever superficialmente sobre o momento pelo qual passava no momento da escrita, apenas a título de curiosidade. Assim surgia a ideia de “Estudando Poesia”, cujo nome ― entendedores já entenderam ― se inspira no título do antológico disco “Estudando o Samba”, de Tom Zé.

Em 2022 comecei uma épica campanha de arrecadação para a impressão do livro. Não utilizei nenhum intermediador além do banco e das redes sociais onde publicava a campanha; eu divulgava a notícia, conversava com pessoas que eu cria serem interessadas no livro e então todas as contribuições eram guardadas em uma conta bancária com pouco movimentação e anotadas em uma planilha.

Em 2024 já tinha o dinheiro suficiente para a impressão de 140 exemplares ― daí vocês tiram a ideia do quão caro é publicar livros. Nesse ínterim, tive de contatar designers, revisores de texto, outros poetas que poderiam me ajudar a desenvolver melhor o texto.

Até que nesta semana publiquei em meu outro perfil do Fediverso um vídeo da caixa de livros impressos, gravado pelo meu produtor gráfico, o Diego Dias, poeta e tradutor baseado em São Paulo. Exceto um detalhe na capa, resultado de uma má comunicação, o objeto saiu como esperado; toda a arte do livro, desde a capa até a diagramação foram designados ou desenhados por mim, com a execução da designer Barbarah Freire, também de Fortaleza.

Qual o próximo passo? Lançá-lo, claro. A minha ideia é de que o título seja lançado em dois momentos: o primeiro em um encontro em linha, outro em um encontro em algum lugar de Fortaleza. Quando? Durante o mês de dezembro. Ainda não tenho data precisa, mas imagino que acontecerá antes do Natal.

Como vocês podem ver na publicação linkada acima, estou dedicando dez exemplares para membros fediversais ou outros leitores destas Ideias de Chirico. Caso tenha interesse em adquiri-lo, me contate pelo e-mail no rodapé desta publicação.

As coisas como horas

Eu sei que a hora está entre 7h50 e 8h10 quando os homens da auto-oficina ao lado da minha casa começam a abrir os portões de dois metros; isso dá para ser ouvido do outro quarteirão. Também sei que são 9h quando a minha vizinha de baixo começa a bocejar gritando. Sei que são entre 5h20 e 5h40 porque é quando o sol fica da cor de laranja podre. Houve um tempo também que sempre às 17h um beija-flor rondava a minha varanda.

E se de repente tentássemos prescindir dos relógios?

Roteiro (provisório) para um estudo de línguas

Estudar línguas, depois da quinta aprendida, torna-se uma questão de compromisso e de planejamento. Gosto de todas as línguas, porque, de certa forma, gosto de todos os povos do mundo. No entanto, não posso aprender todas as línguas do mundo ao mesmo tempo ― quem me dera!

Como eu já aprendera o inglês e o espanhol, línguas básicas para um estudante interessado em progredir na carreira acadêmica; e como também aprendi o francês e o italiano, línguas básicas para alguém interessado em artes, decido partir para drogas mais pesadas ― línguas indígenas, línguas artificiais, línguas do mundo oriental.

Até meados deste ano eu estava dedicido a estudar esperanto no começo do ano que vem. Nada sério, apenas por curiosidade. Daí eu cairia de cara no chinês mandarim. Meu plano era aprender essa língua leste-asiática tanto por sua relevância no tabuleiro da geopolítica mundial, quanto por sua influência sobre a língua e a cultura do Japão; logo, aprender a primeira língua, facilitaria o aprendizado da segunda.

Foi o que aconteceu com a relação entre o inglês e outras línguas; o fato de eu conhecer a anglofonia, fez com que eu pudesse identificar várias palavras cognatas no francês e no italiano, língua que, como o inglês, recebeu muita influência da francofonia.

Porém há alguns dias percebi o quanto me encanta a Suíça. É da Suíça que vêm gente como o educador Jean Piaget, o arquiteto Le Corbusier, o cineasta Jean-Luc Godard e o linguista Ferdinand de Saussure, figuras que atravessaram minha formação.

Além disso, o francês suíço é, na minha opinião, o mais agradável da Europa (lembrem que o francês é falado também na América Latina e, sobretudo na África). Essa variante francófona também é comprovadamente mais lenta do que a parisiense, o que facilita no aprendizado. A minha principal referência de francês falado (além dos meus alunos africanos francófonos, é claro), é o professor Lucas, de Genebra, mantenedor do canal French Comprehensible Input.

Bem, e então pesquisando mais a respeito do país europeu, soube que é um território multilíngue, visto que tem fronteiras abertas com Alemanha, Itália e França, o que divide seu território em três partes: teutófona ao Norte, italófona ao Sul e francófona ao Oeste ― enquanto ainda conserva algumas regiões com falantes do patuá local.

Visto então que já sei italiano e um pouco de francês, por que não aprender também alemão, para, caso me encontre com um suíço nativo teutófono, não ficar esbabacado em um inglês improdutivo? E, para variar, a língua alemã também foi bastante influenciada pelo francês e tem alguns galicismos.

Além disso, gosto muito da música de concerto da Alemanha ― Bach, Beethoven, Webern, Schönberg; tenho alguma admiração por Stockhausen. No começo da juventude fui impactado pela obra expressionista da alemã Käthe Kollwitz e do austríaco Egon Schiele. Gosto da poesia de Rainer Maria Rilke.

Como se não bastasse todos esses motivos, ainda quero aprender o neerlandês, que dizem se parecer muito com alemão.

Por que então não aprender logo alemão de uma vez, já que essa é a trajetória comum de quem aprende línguas?

Decido que, quando dominar o francês, logo em seguida irei ao alemão. Espero que eu sobreviva às declinações e pronúncias rasgadas...

Por um minimalismo de baixo custo

Estou por criar o conceito de “minimalista pobre”. Sou contra o consumo e o ritmo de vida desenfreados. Mas também não sou otário de pagar 350 dólares por um telefone burro.

Há inclusive um adjetivo em português para designar algo ― um indivíduo, um estilo de vida etc. ― contido e disciplinado (basicamente o que resume todo o minimalismo): espartano. Segundo o dicionário em linha Infopédia, “espartano” é algo:

  1. de Esparta, cidade da Grécia Antiga; 2. (figurado) austero; sóbrio; 3. (figurado) em que há rigor, disciplina, firmeza e severidade.

Um ode à simplicidade tecnológica

Rodrigo Ghedin, do Manual do Usuário, em contraposição aos pomposos mousesgamers”, faz loas ao seu mouse simples e barato.

• Meu mouse preferido custa menos de R$ 40 (Manual do Usuário).

Eu seria ainda mais radical: adoro usar o touchpad do meu laptop!

Quando mantenho os dedos indicadores nas teclas F e J, consigo confortavelmente manter os polegares no touchpad, perfeitamente alinhado a essas teclas. Isso me permite de fazer enésimas tarefas com a interface gráfica ao tempo que escrevo alguma coisa. Claro, digito com memória muscular, através do leiaute Dvorak.

• Como e porque passei a escrever com teclado Dvorak (Ideias de Chirico).

Além disso, configurei meu Xubuntu com atalhos que otimizem o uso do teclado e exijam menos distensão dos dedos. Isso faz com que, de qualquer forma, eu evite o uso de touchpad.

No entanto, há um recurso magnífico no touchpad que os mouses não possuem: rolagem horizontal. Esse recurso é particularmente muito útil porque costumo utilizar janelas um ao lado da outra, o que diminui sua margem. Logo, muita vez preciso ter acesso a uma informação que está omitida pelo limite da janela. Isso é uma mão na roda também para a navegação de planilhas largas, com muitas colunas.

Prescindir o suficiente de mouse faz também com que eu possa utilizar o laptop em qualquer banda do mundo sem o menor problema ― a não ser o ergonômico, quando a máquina estiver sobre o meu colo...

A única limitação que vejo no touchpad é o uso de seu “botão do meio”. Em um touchpad a pressão simultânea de seus dois botões encarrega-se dessa função, ou ainda o toque com três dedos dentro de sua área tátil ― nesse caso, é necessário retirar os indicadores das teclas F e J, o que é bem inconveniente. A função de “botão do meio” é muito útil sobremaneira em sistemas Linux, porque através desse botão é possível copiar e colar um texto com apenas dois cliques.

Linkroll

Laura, professora madrilenha de espanhol para estrangeiros no Youtube, executou um incrível projeto de casa-van em estilo chalé. De dentro, o espaço parece imenso!

• Cottage Van Tour // Full Time Traveller (Spanish After Hours ― Youtube).

@elmoneto@mastodon.com.br tem mapeado os municípios brasileiros com mobilidade de tarifa zero, ou seja, onde se pode tomar ônibus de graça. Dentro desse sítio é possível filtrar o gráfico por gradação de população e por ano de implementação.

• Tarifa Zero no Brasil (elmoneto.net).

O podcast Escafandro, de jornalismo investigativo, fez uma cobertura sobre o que se sabe até agora de um projeto do Governo Federal para implementar um data center em uma região de pouca água da cidade de Caucaia, CE. O projeto é colossal e sem precedentes em território brasileiro, e o primeiro interessado a utilizá-lo não é nada mais do que a também colossal ByteDance, mantenedora do TikTok. Moro próximo de Caucaia, e nem de longe eu tinha ouvido falar desse projeto, que pode inclusive afetar povos indígenas e até elevar o custo da água nas redondezas.

• Um data center incomoda muita gente (Escafandro).

@ploum@mamot.fr fez uma bela resenha sobre o (mini)malista smartphone da Mudita, o Kompakt. O telefone tem não mais do que cinco polegadas e têm tela “papel”, como o Kindle. Além disso, não tem notificações por padrão e vem com uma chave de desativação total da rede. Como falei lá em cima, não tenho a coragem de, neste momento da vida, dar 350 dólares em um aparelho celular. No entanto, Ploum faz muitas boas reflexões de como se deve ser a nossa relação com nossas tecnologias.

• Une vie sans notifications (Ploum.net ― le blog de Lionel Dricot).

Citações

“A internet morreu”. Não, ainda não morreu. Se pensarmos na internet como um país tomado por latifúndios, há uma miríade de hortas comunitárias e jardins cuidados por prazer e lazer por aí. Por favor, não grite que só temos latifúndios.

@marte@bolha.one

aparentemente em francês “gasolina” é 𝓮𝓼𝓼𝓮𝓷𝓬𝓮 e fazer “fazer faxina” é fazer ménage

o q ja basta para comprovar minha tese q qualquer coisa na língua francesa parece ou q saiu de comercial de perfume ou q é safadage

@coracinho@sunbeam.city

A gente trabalha a semana inteira chega terça ta só o pó

@apropriagui@masto.donte.com.br

toda vez que lança um novo iPhone eu lembro do cara que vendeu o rim pra comprar o iPhone da época. um iPhone 4. imagino esse cara hoje

@Ze_Andarilho@capivarinha.club

Aparentemente o James Gunn disse que o filme do Superman não faz referência ao genocídio palestino e algumas pessoas estão chateadas. Como que uma pessoa vai assistir a um filme de uma megacorporação e espera deles nada além de realismo capitalista? A gnt pode interpretar o filme como quiser, mas sabemos que intenção jamais é ser realmente revolucionário. Toda crítica que nasce do capitalismo contra ele mesmo nunca é realmente revolucionária

@gattaraS2@ursal.zone

Un idiome se définit moins par ce qu'il permet de dire, que par ce qu'il oblige à dire. (...) Mais la langue, comme performance de tout langage, n'est ni réactionnaire, ni progressiste; elle est tout simplement : fasciste; car le fascisme, ce n'est pas d'empêcher de dire, c'est d'obliger à dire.

― O crítico literário Roland Barthes em sua antológica aula inaugural de 1977 ― que ainda quero traduzir para estas Ideias de Chirico...

Pedidos

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Longa ressalva: Sou contra qualquer inovação tecnológica que coloque os trabalhadores pobres ao subjugo de grandes empresas. Assim como também sou contra qualquer tecnologia e qualquer inovação tecnológica que subjugue a natureza, ou tenda a esgotar seus recursos. Este é o caso da inteligência artificial comercial, que nos últimos anos, explorou mão de obra barata para o treinamento e seleção de dados e usou e abusou dos mananciais para a refrigeração dos seus data centers. No entanto, acredito que, malgrado este estado de arte, ela seja uma ferramenta que pode ajudar a classe trabalhadora e cujos uso, produção e desenvolvimento podem ser éticos, possíveis e distantes de grandes empresas. A China o mostrou e é disso que será tratado neste texto de Grise Bouille.

Grise Bouille (@gee@framapiaf.org) é um escritor, cartunista e rádio-colunista francês, com formação em ciências da computação. Conheci-o através do Mastodon do magnífico @ploum@mamot.fr, que endossou Bouille. Ploum, inclusive, já teve tradução minha aqui nas Ideias de Chirico, em que ele defende o conceito de um computador que combata a obsolescência programada, a partir de uma forte ideologia de código aberto e de faça-você-mesmo, inspirado pelo legado da máquina de escrever.

Grise Bouille, por estar transmitindo sua mensagem por rádio, não perde a oportunidade de usar expressões idiomáticas, gírias e até mesmo palavrões ― mas tudo sustentado em um francês padrão. O francês possui três registros linguísticos bem estabelecidos: o corrente (courant), do dia a dia; o familiar (familier), usado dentro de casa e entre amigos; e o monitorado (soutenu), usado nos contextos jurídico, acadêmico ou literário. O português brasileiro, por outro lado, possui somente os registros formal e informal que vão variando em um degradê de dois polos, e que, a depender da situação, deslizam um ao outro, conforme o efeito que se quer causar.

Emular em português esse mesmo estilo de Bouille de descontração calcada em uma língua padrão me foi impossível, então preferi tender ao estilo informal, imaginando como um escritor brasileiro se expressaria pelo rádio. Devo me desculpar, no entanto, por esta tradução ter ficado mais séria em comparação com o texto original, já que não consegui encontrar relativas em português de uma parte das expressões idiomáticas que o autor usa.

Agradeço fortemente à minha aluna beninense de PLE, Eunice Houeze, que matou muitas charadas de tradução e de informações culturais sem o qual este texto sairia. Toda a sorte para ela na prova de proficiência de língua portuguesa (Celpe-Bras) e no seu vindouro curso de medicina!

Aqui o texto:

A IA não sumirá

Publicado em 26 de junho de 2025 por GEE no JUKEBOX ― a publicação original.

Olá a vocês, público do Libre à vous.

Bom. Sinto muito, mas é preciso que se fale disso. Sim, é necessário ainda que se fale de inteligência artificial. Gostaria de um assunto mais leve e divertido para a minha última coluna da temporada, mas, que você quer? De qualquer forma, é o assunto do momento.

Contei: já é minha quarta coluna sobre IA, a primeiríssima datando de março de 2023, em plena explosão da popularidade do ChatGPT. E não sou o único a falar disso regularmente, tanto no rádio quanto em outro lugar.

Então, quando um livrista [1] como eu fala de IA, em geral, oscila entre três eixos:

  1. É perigoso, é ecocida, é pipi, é totô, é capitalista. O que é verdade. Daí você boicota a coisa e convoca boicote massivo;

  2. Não é nada, veja, tudo vai bem, ChatGPT não sabe contar e erra adivinhas para crianças. O que é verdade também. Aí você fica de melhor humor, brinca mostrando que, apesar dos resultados serem às vezes impressionantes, ainda assim isso rapidamente nos põe em dúvidas. Bem, eu comecei cedo nesse modo, né? Escute de novo minha primeira coluna sobre o tema para estarem certos disso;

  3. É uma moda, uma bolha, é como o Metaverso e os NFT, da qual se vê em todo canto, é insuportável, mas vai acabar por passar.

O que é parcialmente verdadeiro: é insuportável. Em compensação... bom, quanto mais o tempo passa, mais me parece bastante otimista pensar que a IA vai acabar por simplesmente desaparecer, pois insustentável, pois tudo quanto.

Então, fui o primeiro a dizer diversas vezes que a IA era uma bolha, que ela acabaria por explodir. E sigo a defender isso hoje, penso que a IA é uma bolha financeira, mas não se deve interpretar mal o que isso significa: ao fim dos anos 90, havia uma coisa que se chamava “bolha.com” e que estourou no início dos anos 2000. No entanto, correndo o risco de lhe surpreender, a internet ainda está aí. Pior: o valor e o peso da internet atual superariam os de antes da bolha por uma encantadora experiência sociológica.

Então, não é porque a bolha financeira da IA acabará por estourar que é preciso imaginar que a IA desaparecerá logo em seguida sem deixar traços. Quando a bolha estourar, ela causará sem dúvidas uma bela confusão econômica e social ― enfim, uma reconfiguração no mercado, como se diz entre os imbe... entre os neoliberais. Mas a IA não sumirá. Há mesmo um risco, como com a internet, de que ela acabe por retornar mais forte do que nunca.

O fato de ela ser ecologicamente insustentável é fora de propósito: o sistema capitalista é intrinsecamente ecologicamente insustentável e isso jamais o impediu de dirigir o curso do mundo. Para a sua perda, sim, sem dúvidas, mas você vê bem que isso não é suficiente para pará-lo.

Quanto a um modelo economicamente viável, tenho cada vez menos dificuldade em crer que a OpenAI e companhia o encontrarão: estamos ainda na fase “A primeira dose é gratuita”. Mas não nos enganemos, essa é uma droga devastadora, da qual milhões de pessoas já se tornaram dependentes em alta velocidade.

Não se deve deixar que nossa própria bolha ― uma bolha de filtro dessa vez ― faça-nos esquecer que o ChatGPT tornou-se, em alguns meses, o serviço com a taxa de adoção mais rápida da história da informática, ganhando mais de 100 milhões de usuários(as) por mês. A pertinência de comparações com o Metaverso e os NFT deveria ficar aí.

Se o ChatGPT parar de fornecer uma versão gratuita, aposto que a taxa de adoção da versão paga será também vertiginosa. E a gente vai ver florescer ofertas “pacote internet + assinatura de ChatGPT”, como hoje a Orange oferece “pacote internet + assinatura de Dezzer”. E vai dar certo.

Pois a IA generativa tornou-se já uma necessidade incontornável para milhões de pessoas, a começar pelos mais jovens. Um estudo publicado na última quinta-feira [19 jun. 25] indica que 42% daqueles entre 18 e 25 anos declararam utilizar IA todos os dias, 80% utilizam ao menos uma vez por semana [2]. Um uso que, na minha humilde opinião, tenderá simplesmente a se alinhar à taxa de uso de esmartefones, com ChatGPT se tornando um aplicativo tão comum quanto Whatsapp ou Youtube, se esse já não for o caso.

No instituto técnico onde dou algumas aulas, quase todos os alunos estão sempre com uma aba do ChatGPT no navegador. Isso se tornou uma ferramenta tão usual quanto um navegador. Embora nem todos os alunos usem do mesmo jeito; há aqueles que o utilizam com parcimônia, com resistência; e ainda aqueles que copicolam os enunciados, depois copicolam as respostas sem entender nada com nada... mas que mesmo assim se viram. Esses alunos não têm os mesmos perfis, inclusive. Mas voltarei a isso depois.

Em todo caso, não consigo me ressentir com eles: em seu lugar, do alto dos meus 18 anos, teria, sem dúvida, feito algo parecido. Apesar disso, a primeira fornada de estudantes que obtiveram seus diplomas delegando a maior parte de seus estudos a uma IA chega já, e chega ligeiro, não em cinco anos, mas agora. Esses serão os mesmos jovens adultos para as quais a questão de prescindir da IA não será mais uma opção: se for preciso pagar, assim será.

Claro, alguém vai replicar dizendo que falo sobre um instituto técnico, que é ainda uma bolha um pouco particular, e, sim, claro. Mas você tem mais ou menos os mesmos ecos em facul de direito, de línguas, de economia... e até de medicina, né?, que a mim me inquieta um pouco as competências de nossos futuros médicos.

Além disso, falo de jovens adultos que estão estudando, mas, entre aqueles com 12-17 anos, tem-se 45% de jovens que declaram ter já utilizado IA em sua vida escolar ou privada. Sim, porque um caso de uso aparentemente bastante difundido é a IA como confidente, à qual se conta da vida, com a qual se dialoga como se com um bom parceiro. Mas além disso, um bom parceiro que está sempre disponível, sempre educado, que lhe fala sempre com benevolência e paciência.

Uma grande parte da geração atual de estudantes não pode mais imaginar sua vida profissional sem IA; uma grande parte da geração atual de colegiais em breve não poderá imaginar sua vida sem IA.

Logo, a IA não sumirá. Nesse sentido, os apelos ao boicote contra IA me parecem, quando muito, anacrônicos: sinto muito, mas é tarde demais para o boicote. Não é mais questão de impedir a ascensão da IA, é questão de saber como se continua a lutar pela emancipação, pela justiça, pela ecologia e pela igualdade social em um mundo onde a IA é onipresente.

Meu camarada Pierre-Yves Gosset, da Framasoft, chegou até mesmo a dizer, em sua última conferência sobre IA, que poder boicotar a IA era coisa de privilegiado. Sim, para você e eu, boicotar a IA é fácil, crescemos sem ela, não precisávamos dela. Da mesma maneira, particularmente defendo um boicote ao carro por razões ecológicas. Claro, isso é fácil para mim, vivo em um canto bem servido de transportes públicos, não tenho filhos e trabalho de casa.

Um grande erro que vejo frequentemente nos meios livristas consiste em ver a IA como um gadget de “techbros”, como se diz, um brinquedinho tecnológico para jovens executivos ricos, como os óculos conectados ou a cadeia de blocos. E se a IA é de fato em sua origem uma ideia de techbros e dos gigantes da tecnologia, por outro lado, ao meu ver, é nas classes populares que ela tem mais impacto.

Voltando ao instituto técnico. Um instituto de tecnologia não é exatamente a mesma coisa que uma faculdade de cientistas da computação: há uma mistura social muito mais significativa, com rapazes/moças que vêm da escola comum, de outras escolas tecnológicas ou profissionalizantes, filhos de operários misturados com filhos de pequenos servidores públicos ou outros... Com níveis extremamente heterogêneos, onde todo o desafio para os professores é conseguir fazer com que os mais debilitados não sejam ultrapassados pelos que estão mais tranquilos.

E, bom, isto pode lhe surpreender, mas muitas vezes são os meninos que têm mais dificuldade, frequentemente vindos de meios pobres, aqueles que usam e abusam da IA. Os alunos que vêm de meios mais favorecidos, em geral, são os mais críticos a essa tecnologia. Em um curso sobre Android, percebemos recentemente com meus alunos, que o Android Studio, o programa de desenvolvimento, adicionava às suas mensagens de erro “ask Gemini”, “pergunte ao Gemini”, a IA da Google. E, bom, meu aluno Thomas, vindo de colégio comum, de jeans e camiseta, 16 anos em média, reagiu com um “Pfff, que bobagem”. De qualquer forma ele tentou a princípio, mas logo viu que o Gemini enchia linguiça, e, ao ler a mensagem de erro, entendeu rapidamente e se corrigiu por conta própria.

Mais tarde, durante o exame no qual todas as anotações eram autorizadas ― porque não se vê interesse de fazer decorar pela programação ―, Brandon, de colégio tecnológico, de jaqueta esportiva e tênis, com média 8 [3], respondeu às questões da seguinte maneira: ele tinha uma pequena anotação onde havia metido todo o curso em ChatGPT, depois ele tinha lhe pedido para gerar dezenas e mais dezenas de questões possíveis. E durante o exame, ai!, pesquisava os termos das questões em sua pequena anotação, encontrava uma questão suficientemente parecida e copicolava a resposta. Dada a rapidez com que ele fez, não penso que tenha lido sequer uma de minhas questões. Não estou nem mesmo certo de que ele tenha entendido do que o curso tratava.

Mas ele tirou 11 no seu exame. Eu tinha proibido internet, mas autorizei todas as anotações, ele seguiu as instruções, não entendo porque deveria penalizá-lo. Thomas, que tinha 17 anos utilizando somente seus conhecimentos, terá também o mesmo diploma. (Aproveito para esclarecer que eu mudei os nomes, né?, para não expôr meus alunos em público).

Porém, é no mercado de trabalho que Thomas e Brandon se distinguirão, e, espóiler: bem, mais uma vez é o Brandon que vai se dar mal.

Porque, de um(a) profissional de computação que só sabe digitar comandos, se vê que não há pretensões salariais de bac+3 [4].Porque a IA será, ao fim, apesar das ilusões, um agravador de desigualdades sociais, um acelerador do empobrecimento das classes mais baixas. E, ao mesmo tempo, que tenho de melhor a propôr a Brandon? Quais são as minhas chances de conseguir fazer ele “boicotar” a IA que lhe permitiu desenrolar um diploma sem a qual sem dúvidas ele não conseguiria? Enquanto que todos os seus colegas fazem a mesma coisa?

O ChatGPT permitiu a um monte de gente péssima em expressão, em ortografia e em gramática escrever cartas de motivação perfeitas e parar de ser reprovada antes mesmo da entrevista de emprego: quem sou, eu, do alto do meu doutorado e do meu capital cultural de filho de professor, para pedir-lhes para boicotar?

Então, sim, eu sei, o mundo será melhor quando pararmos de considerar que gente sem diploma merece ficar pobre, ou mesmo quando suprirmos essas idiotices de cartas de motivação, tem razão! Mas isso é como derrubar o capitalismo: sei bem que vamos chegar lá na semana que vem, é uma questão de dias, né? Mas enquanto se espera, o que fazer? O que se faz com os alienados(as) esperando que seja abolida a alienação? O que se faz para esta geração que integrou a IA como nós mesmos tínhamos integrado a internet, como as gerações mais antigas tinham integrado a eletricidade ou a água corrente? O que se faz com toda essa gente que utiliza a IA para seguir melhor, para melhorar suas vidas, para se sair de suas condições sociais?

Ah, é um saco de questão, né? Não, mas tampouco eu gostaria de ter de pensar nisso. Também eu gostaria de que se tivesse impedido a OpenAI e companhia de desenvolver suas porcarias. Também eu gostaria de que esse furacão não tivesse chegado. Mas aí está, está por toda parte e isso não sumirá tão cedo. Boicotar, isto é, fazer nada de fato, é uma boa resposta a título individual, mas é como dar o gás na ecologia: já é preciso ter a possibilidade de fazer isso, mas, principalmente, isso não será suficiente em escala coletiva.

Para agir contra a hegemonia, é necessário então parar com a negação, observar esta realidade difícil de frente, mas sem cair, no entanto, na resignação ou derrotismo, enfim, manter a esperança de que nós temos, ainda assim, o poder de melhorar nosso mundo. E, por isso, gosto bastante de citar este diálogo do Senhor dos Anéis. É Frodo que se lamenta da guerra para a qual ele foi arrastado e diz: “Gostaria de que isso não tivesse acontecido no meu tempo”. Ao que Gandalf, o mágico, lhe responde: “Eu também, e o mesmo vale para todos aqueles que vivem em tempos parecidos. Mas não lhes cabe decidir. Tudo o que nos cabe decidir é o que pretendemos fazer do tempo que nos é concedido”.

Agora, amigo(a) livrista, em face à IA, como ao resto, eu lhe deixo para o verão essa pergunta: “O que vamos fazer do tempo que nos é concedido?”

[1]: Do original “libriste”, partidário do chamado culture libre, movimento pela cultura livre, de código e acesso livres e abertos. Como não há relativo desse nome em português, utilizei “livrista” como forma de o discernir dos “liberais”, partidários do liberalismo. Para saber mais, leia o artigo da Wiki em francês, ou sua versão lusófona linkada.

[2]: Essa é uma pesquisa que pode refletir o uso no Norte global. A situação no Brasil é diferente, como mostra a mais recente pesquisa da Datafolha com a Fundação Itaú. No entanto, o argumento de que a IA tornou-se uma necessidade incontornável para aqueles que a utilizam desde 2023, mesmo no Brasil, é considerável.

• Maioria dos brasileiros não usa IA generativa, como ChatGPT, mostra Datafolha (Folha de São Paulo).

[3]: Na transcrição e na locução do texto é pronunciado claramente “huit de moyenne”, ou seja, “oito anos em média”. Não sei se não conheço o sistema escolar francófono europeu, mas é pouco factível que uma criança estaria fazendo cursos de programação. De qualquer forma, decidi manter.

Post-scriptum: obrigado @hydrochoerus@cwb.social pela ajuda com esse deslize na tradução! Aqui o comentário que el_ me enviou via Fediverso:

quando o autor original disse “huit de moyenne”, rovavelmente se referia a “um aluno de média 8”, e não um aluno de 8 anos. Geralmente na França as notas escolares vão de 0 a 20 e a pontuação necessária para passar é 10.

[4]: “Bac+3” é literalmente “baccalaurêat mais três”. “Baccalaurêat” é a prova vestibular para ingressar em uma graduação no sistema de ensino francês. Com “mais três” o autor se refere aos três primeiros anos na faculdade pelos quais alguém consegue o grau de “licenciatura”, a partir do qual pode ensinar.

#tecnologia #tradução


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Quadrinho de Tintin, um detetive de sobretudo, olhando com seu cachorrinho branco Milou a silhueta da cidade de Chicago a partir de um navio em viagem.

Imagem: “Tintin en Amérique”, gibi belga de Hergé.

Vocês já sabem... Notas costuradas são um compêndio de escritos esparsos e recomendações, que não renderiam uma publicação independente. Alerta: nestas Notas, muita gente pelada.

Interlúdios

A melhor hora de todas é entre 16h e 18h aos finais de semana e feriados. Mor silêncio. E, quando há um ruído, é suave. Sem contar com a luz gentil do sol, igualmente suave. Não há trabalho, não há compromisso. O que deveria ser feito no dia, já foi feito. Aqui em Fortaleza em específico a essa hora há um vento agradável e não é tão quente quanto o restante do dia. Mor paz.

Futurismo Cassete

Gosto de como é o envio de feed RSS para o Kindle via calibre: plugo um cabo, se a hora da importação automática de feed estiver correta, começa-se a baixar a lista das publicações recentes. Quando baixada, é enviada automaticamente para o dispositivo. Depois basta ejetar o dispositivo e desplugar o cabo. É como uma experiência de Futurismo Cassete: todo o processo é tangível e confiável, ainda que digital. É o raro design de uma tecnologia como uma ferramenta ― responsiva e utilitária ―, não como brinquedo ― viciante e distrativo.

Seis horas da manhã

Todas as manhãs de quartas-feiras, saio bem cedinho para correr. É o sol brilhar, já estou de pé, quente para dar algumas voltas pela praça José Bonifácio, a duas quadras da minha casa.

Antes de correr propriamente, giro duas vezes em sentido anti-horário em torno do calçadão retangular que cerca a imponente construção do quartel-prisão cinza em estilo neoclássico da Polícia Militar de Fortaleza, em destaque na Praça. Faço-o de fones de ouvidos, a fim de não me distrair e me concentrar somente na corrida. E então é correr e correr...

Lá pelas tantas, logo após a primeira volta, vejo um vulto brotando em minha direção a dois metros da minha esquerda ― é o velhinho meu vizinho de quarteirão, que sempre me cumprimenta quando passo perto de sua casa. Infelizmente nunca temos tempo de conversar, já que, por azar, sempre estou em trânsito quando nos vemos.

― Olha ele, rapá! ― diz algo assim. E dá-lhe a correr atrás de mim.

Como eu não o ouvia bem, também não lhe respondi. Quando então ele tentara fisgar meu braço para me deter e talvez trocar uma palavra comigo, me esquivei. Afinal, eu tinha que seguir com a corrida no pouco tempo que me restava. Tudo isso aconteceu em não mais do que cinco segundos.

Fui rude, eu sei. Na outra volta, pensando em me redimir, ainda pensei em lhe acenar, mas já era tarde: sentado, virou o rosto enquanto eu passava e fez que não me via...

Já se dizia no Pequeno Príncipe: “Tornar-te-ás eternamente responsável por aquilo que cativas”. Mas o problema não é meu se o que cativo decidir ir atrás de mim enquanto corro cedo da manhã usando fones de ouvido.

Imagem de dois homens nas ruas de Nova York dos anos 70. O homem à esquerda é um fisioculturista e está nu; o da direita está à caráter do judaísmo ortodoxo. Ambos sorriem.

Imagem: Arlene Gottfried, via Flashbak.

Resenhazinhas

A redenção da cinebiografia estadunidense?

Assisti ao “A Complete Unknown” (2024), cinebiografia de Bob Dylan, com atuação de Timothée Chalamet. Esse foi o primeiro filme a ter a apoio do cantor e o compositor estadunidense, que resiste a assistir a todo documentário ou cinebiografia a seu respeito.

“A Complete Unknown” cobre os primeiros anos da carreira de Bob Dylan, desde a sua chegada a uma Nova York sessentista a pleno vapor criativo, às margens do Maio de 68, passando pelas difíceis relações pessoais do jovem cantautor, tanto da sua vida profissional (artistas e gente grande da indústria fonográfica), como da sua vida romântica (com foco sobretudo na relação de Bob com Joan Baez).

Vale o destaque do esforço de Timothée de não utilizar nenhum recurso de melhoramento vocal como inteligência artificial ou playback, que o levou inclusive a ter aulas com coachs vocais.

Tenho a impressão de que a indústria cinematográfica estadunidense finalmente entendeu que cinebiografia é cinema, mas também biografia, o que se baseia em fatos, e não em sua romantização compulsória.

Após fiascos (em termos biográficos) como “Total Eclipse” (biografia de Arthur Rimbaud, com atuação de um jovem Leonardo Di Caprio), “Modigliani” (biografia do pintor moderno italiano Amadeo Modigliani) e “Searching for Fischer” (biografia do enxadrista mirim Joshua Waitzkin), parece que é o fim de toda uma era de filmes estadunidenses que tentam transformar qualquer atividade humana em aventura (desde escrever um poema e jogar xadrez até pintar um quadro), e de tentar superdramatizar vidas, que na maioria das vezes, eram ordinárias.

Arterotismo

Dois quadrinhos de Little Ego, duas mulheres correm de um homem árabe; a da direita está sem roupa, enquanto a da esquerda está com roupas de viajante.

Imagem: “Little Ego”, de Vittorio Giardino.

Sem falsa hipocrisia, quantas peças de pornografia você conhece que se preocupam com a concepção do belo? Quantas tem em si emparelhadas metáforas psicanalíticas?

Em “Little Ego”, quadrinho erótico do italiano Vittorio Giardino, tratam-se de surreais, curtos e pouco conexos sonhos sexuais de uma jovem mulher da qual pouco sabemos. Suas fantasias oníricas envolvem desde objetos do dia a dia, como guarda-chuvas e flores, dismorfia corporal, até animais e povos de outros continentes.

Há nesses breves sonhos o sexo simbolizado. O voo de um avião, pode ser lido como metáfora do orgasmo. Em certo episódio, transcende-se o mito de Narciso, quando a heroína, enquanto se olha no espelho, multiplica-se em 12 e faz sexo com várias de si mesma, em uma imensa auto-orgia.

Ao fim de cada episódio, a heroína onírico-erótica diz, quando acordada, que deve visitar o seu psicoterapeuta, aplicando uma pitada de humor às curtas narrativas. As cores de “Little Ego” são surpreendentes e o seu traço são de um amálgama entre cartazes pin-up e vitrais art nouveau, o que transforma cada quadrinho em uma peça visual suficiente por si só.

Uma onda de Bossa Nova na Europa?

E por falar em art nouveau, quero falar de Liana Flores, artista britânica, filha de mãe brasileira.

Tenho ouvido nos últimos dias “Flower of the Soul”, seu primeiro disco gravado em estúdio. Após o sucesso de “Rises the moon”, música viral no Tiktok, a cantautora pôs a mão na massa em seu disco de estreia, de 2024. Aqui podemos ver um belo mosaico de folk, bossa nova e jazz, bem envolucrados na linguagem musical das novas gerações.

Ao lado de Laufey, cantora finlandesa, Flores é talvez uma das mais representantes receptadoras das influências das primeiras raízes da bossa nova brasileira na música europeia contemporânea. De seu “Flower of the Soul”, recomendo as faixas “Orange-coloured day” (quase um “Take Six”, ao estilo de Dave Brubeck), “Nightvisions”, com um belo arranjo de acordes vocais e surpreendentes modulações tonais, e “Halfway Heart”, o melhor exemplar de bossa nova do disco, que faz lembrar vozes clássicas como a de Joyce Moreno e Gertrude Gilberto.

Uma leitura sobre uma leitura sobre uma leitura

Terminei na semana passada “Se una notte d'inverno un viaggiatore” de Italo Calvino, em texto original, em língua italiana. Nesta obra, o escritor italiano faz o que já seria previsto na história do romance moderno (desde “Ulysses”, de James Joyce), isto é, um romance sobre um romance. Ou melhor: um romance sobre romances. Ainda mais: um romance sobre o próprio ato de ler romances.

Em “Se una notte d'inverno un viaggiatore” lemos sobre o Leitor (isso mesmo, alguém identificado como Leitor). O grande diferencial deste livro ao meu ver é o de estar em uma perspectiva em “POV” (point of view, ou seja, ponto de vista). Ela é narrada não em primeira, não em terceira, mas em segunda pessoa. Ou seja, é um narrador externo, que nos descreve o que estamos “vendo”, quase como se estivéssemos em um role playing game (RPG); o que quer dizer que nós, leitores, é que de certa forma somos a personagem principal de “Se una notte d'inverno un viaggiatore”.

Durante o romance, o Leitor inicia a leitura de “Se una notte d'inverno un viaggiatore”, um livro que ele não chega a concluir, por estar mal impresso. Em busca da devolução do livro, ele acaba por entrar em um vórtice de leituras laterais interrompidas, sempre acompanhado de Ludmilla, a Leitora pela qual o Leitor se apaixona durante sua aventura literária.

Calvino leva a ideia de escrever um livro sobre livros a outro nível, apelando muitas vezes à incepção. Em certa altura, a narrativa passa a descrever um livro que não é lido pelo Leitor, mas que facilmente identificamos como o próprio “Se una notte d'inverno un viaggiatore”.

Há alguns pressupostos que não são atingidos nesse livro, no entanto. Uma delas é de haver pequenas histórias que tenham cada uma um estilo próprio, como Joyce mesmo faz em seu “Ulysses”. A não ser o fato de que as personagens tenham características e traços descritivos distintos, não se tem uma ideia muito forte de que os textos foram escritos por pessoas diferentes; o ritmo de leitura é muito parecido e o uso de palavras idem. A não ser quando surge a voz do narrador, não há uma grande diferença estilística.

Li esta obra em seu texto original, porque estou ainda tentando me familiarizar com a língua literária italiana. No entanto, não há nada que me faça estar convencido de que o texto em italiano oferece algo de diferente de uma tradução. A genialidade de Calvino está na experiência da leitura (pragmática), não na composição do texto (sintática), o que em geral nos leva a ler originais.

De certa forma, fiquei arrependido de ter lido em italiano, porque o bloqueio linguístico fez com que não houvesse tanta fluidez na leitura, exigida pelo texto calviniano.

“Flor do Lácio, sambódromo, Lusamérica, latim em pó”

Nesta semana, terminei a leitura de “Latim em pó: um passeio pela formação do nosso português”, escrito por Caetano Galindo e publicado no ano de 2023. Eu o começara a ler na semana anterior e devorei em sete dias completos.

Esse pequeno livro do linguista e tradutor natural de Curitiba procura falar, de maneira sucinta e com linguagem acessível, sobre o percurso da língua portuguesa até a atual variante brasileira. Além de conhecimentos de linguística, Galindo se vê obrigado a acionar também (muitas) informações de história e de antropologia.

Seu propósito é, sobretudo, desmistificar algumas crenças acerca da LP, entre as quais a de que ela é uma descendente direta do latim imperial, a de que sempre falamos português como língua primária no Brasil colônia e a de que os brasileiros “falamos português errado”. Ao contrário de seu parceiro sociolinguista Marcos Bagno, Galindo decide não tomar partido na discussão sobre a existência de uma língua “brasileira”.

Não sei se posso afirmar que Galindo cumpriu com o objetivo de escrever um livro introdutório sobre linguística “para leigos”, já que mesmo eu, um veterano de Letras, encontrei muitas informações e curiosidades em torno de minha língua materna as quais não sabia ainda.

Não gosto da ideia de dizer que esse é um livro “para leigos” porque este é um livro muito bem escrito, com uma boa noção de ritmo e de como as palavras podem ser pronunciadas em uma leitura vocal; falar que esse é um livro “para leigos”, pois, seria implicar que livros “para especialistas” são duros, mal escritos e chatos ― o que não se cumpre na prática.

Outro acerto de Galindo ao escrever para o público geral sobre uma língua foi começar seu texto falando sobre um falante em potencial dessa mesma língua. Isso é benéfico para a compreensão de um público amplo por dois motivos: a) porque faz lembrar que as línguas são sobretudo as pessoas que a falam; e b) torna mais carnal e sensível tudo aquilo sobre o qual se falará no livro.

A história da implementação da língua portuguesa em nosso território é um drama,

adverte o autor em sua introdução. Podemos todos o confirmar durante a leitura deste inteligente e sensível livrinho que deve constar desde já nas leituras obrigatórias, não só de calouros de Letras, mas também de todos aqueles que se interessarem pela linguagem e realidade brasileiras.

Citações

O mundo está cada vez mais perigoso, está morrendo gente que nunca morreu antes

@miguel@bertha.social

Para aqueles de nós que nunca herdarão dinheiro, terra ou imóveis, as pessoas que nos moldam são a nossa riqueza.

― Edna Bonhomme.

Confunda seus inimigos. Se nem você souber o que está fazendo, seus adversários com certeza não vão saber.

@Ze_Andarilho@capivarinha.club

É aquela lei da natureza, né? No dia que você fala que vai cortar o cabelo ele se comporta. Por isso estou dizendo todo dia que vou cortar o cabelo e não vou, que é pra ele ficar esperto.

@pancho@bolha.one

Se eleito transformarei os motéis em casas populares e as igrejas em escolas públicas.

@NoahLoren@ayom.media

“[Se] quer me fuder, me beija, porra!”

@marte@bolha.one citando a consciência popular.

Linkroll

Em 2022, no aniversário de 15 anos desde o lançamento do primeiro iPhone, The Guardian perguntou a fotógrafos profissionais como (e se) eles usam o smartphone para tirar fotos.

• The iPhone at 15: pro photographers on how it changed their world (The Guardian)

Quadrinho falando sobre a resiliência do protocolo RSS, minha forma favorita de ler na internet.

• RSS is not dead yet (audra mcnamee)

Pedidos

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#notas #cotidiano #cultura


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Você está por começar a ler o novo manifesto do Ismismo.

O Ismismo, como diz seu nome, é um ismo. Uma ideologia. E como ideologia, é uma ideia de ideias. Como são ideia de ideias o cubismo, o marxismo e o taylorismo. No entanto, o Ismismo vai adiante: é uma ideia de uma ideia de ideias. Ou seja, busca sintetizar todas as ideias. É um sintetismo.

O Ismismo é a tentativa de uma conquista. Uma pequena conquista, a conquista de todas as derrotas da fragmentação do homem, somente superada pela ingente luta por sua integração em um grande ismo.

O Ismismo não é pela defesa de um ismo, mas pela aceitação dos ismos. O Ismismo não é uma manifestação do “espírito da época” (zeitgeist). Ele é o espírito. E a época.

Este ismo sobre o qual você lê é somente mais uma etapa de todos os ismos. No entanto, os ismistas estamos por acelerar o processo do fim de todos os ismos. Pois o Ismismo é também um outro nome para aceleracionismo, ao tempo que é outro nome para o budismo.

Pois é natural que o Ismismo reúna os contraditórios.

Afinal o Ismismo é uma ideia, mas também é uma prática. Quer dizer, o Ismismo não é uma ideia, muito menos uma prática. Isto é:

Um ismo é um ismo é um ismo é um ismo é um ismo é um ismo...

― Gertrudismo Steinismo.


Ismismo é um sismo.

(Não confundir “sismo” com “cismo”, o ismo pela expressão de gênero cis, muito ligada ao fascismo ― um ismo há muito preterido, com um revival nos últimos tempos, porém ainda assim contemplado pelo Ismismo).

Como mostra a história, será natural que, com o decorrer do tempo, surja também o pós-Ismismo. E o neoIsmismo. E o anti-Ismismo, é claro. E o ismismismo (não o confundir com “mesmismo”, um outro ismo ~importantismo~, digo, importantíssimo).

Mas eis que voltamos ao lugar que onde não saímos, apesar de tudo. Prova disso é o termos voltado, pois do contrário o ismo ter-se-ia imposto e não poderíamos retornar a outro ismo, porque esmagado. Daí a necessidade de um Ismismo, i.e., uma teoria geral do ismo.

Este ismo decorre dos dois maiores ismos da contemporaneidade (afora o próprio Ismismo): o maximalismo de Flô Menezes e o pequenismo de Luis Dolhnikoff. Os dois ismos, vocês percebem, são conflitantes, praticamente opostos. Entretanto, no Ismismo não há conflitos. Há confiltros.

Ambos os ismos supracitados são contemplados pelo Ismismo, pois todos os ismos estão no Ismismo. Até mesmo o próprio Ismismo.

O que defende então o Ismismo? O ismo. O ismo populismo. O ismo tecnicismo. O ismo sufixo. O ismo em si mismo. Um tautologismo.

Ismologia, eu quero uma para viver!

― Cazuzismo.


O partidário do Ismismo é o ismista.

Ismismo é o último istmo que tangencia o homem de sua própria autoignorância. O homem é ismista por natureza, só ele ainda não o entendeu.

O Ismismo também contempla o ismistismo, isto é, a defesa do ismista, ou seja, a defesa do homem em sua natureza ― que é ismista. Afinal, o Ismismo é também outro nome para humanismo.

Mário de Andrade, temendo que confundissem os ismos brasileiros com os ismos italianos (futurismo de Marinetti), preferiu a alcunha “modernismo”. Rateou. Fosse esperto, chamaria aquele movimento vindouro de Ismismo.

O ismo é o que nos une.

― Oswaldismo de Andradismo.

Só o ismo nos liberta.

Como também sou adepto do pixismo (um ismo nacional ― fora, trumpismo!), me manda um Pix: arlonismo@gmailismo.comismo. Assim você estará incentivando o Ismismo.

Viva o Ismismo! Viva o Ismismismo! Viva o Ismismismismo!

Vocismo acabismo dismo lerismo oismo maisismo recentismo manifestismo dismo Ismismo.

#cultura


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