Ideias de Chirico

cultura

Quadrinho de Tintin, um detetive de sobretudo, olhando com seu cachorrinho branco Milou a silhueta da cidade de Chicago a partir de um navio em viagem.

Imagem: “Tintin en Amérique”, gibi belga de Hergé.

Vocês já sabem... Notas costuradas são um compêndio de escritos esparsos e recomendações, que não renderiam uma publicação independente. Alerta: nestas Notas, muita gente pelada.

Interlúdios

A melhor hora de todas é entre 16h e 18h aos finais de semana e feriados. Mor silêncio. E, quando há um ruído, é suave. Sem contar com a luz gentil do sol, igualmente suave. Não há trabalho, não há compromisso. O que deveria ser feito no dia, já foi feito. Aqui em Fortaleza em específico a essa hora há um vento agradável e não é tão quente quanto o restante do dia. Mor paz.

Futurismo Cassete

Gosto de como é o envio de feed RSS para o Kindle via calibre: plugo um cabo, se a hora da importação automática de feed estiver correta, começa-se a baixar a lista das publicações recentes. Quando baixada, é enviada automaticamente para o dispositivo. Depois basta ejetar o dispositivo e desplugar o cabo. É como uma experiência de Futurismo Cassete: todo o processo é tangível e confiável, ainda que digital. É o raro design de uma tecnologia como uma ferramenta ― responsiva e utilitária ―, não como brinquedo ― viciante e distrativo.

Seis horas da manhã

Todas as manhãs de quartas-feiras, saio bem cedinho para correr. É o sol brilhar, já estou de pé, quente para dar algumas voltas pela praça José Bonifácio, a duas quadras da minha casa.

Antes de correr propriamente, giro duas vezes em sentido anti-horário em torno do calçadão retangular que cerca a imponente construção do quartel-prisão cinza em estilo neoclássico da Polícia Militar de Fortaleza, em destaque na Praça. Faço-o de fones de ouvidos, a fim de não me distrair e me concentrar somente na corrida. E então é correr e correr...

Lá pelas tantas, logo após a primeira volta, vejo um vulto brotando em minha direção a dois metros da minha esquerda ― é o velhinho meu vizinho de quarteirão, que sempre me cumprimenta quando passo perto de sua casa. Infelizmente nunca temos tempo de conversar, já que, por azar, sempre estou em trânsito quando nos vemos.

― Olha ele, rapá! ― diz algo assim. E dá-lhe a correr atrás de mim.

Como eu não o ouvia bem, também não lhe respondi. Quando então ele tentara fisgar meu braço para me deter e talvez trocar uma palavra comigo, me esquivei. Afinal, eu tinha que seguir com a corrida no pouco tempo que me restava. Tudo isso aconteceu em não mais do que cinco segundos.

Fui rude, eu sei. Na outra volta, pensando em me redimir, ainda pensei em lhe acenar, mas já era tarde: sentado, virou o rosto enquanto eu passava e fez que não me via...

Já se dizia no Pequeno Príncipe: “Tornar-te-ás eternamente responsável por aquilo que cativas”. Mas o problema não é meu se o que cativo decidir ir atrás de mim enquanto corro cedo da manhã usando fones de ouvido.

Imagem: Arlene Gottfried, via Flashbak.

Resenhazinhas

A redenção da cinebiografia estadunidense?

Assisti ao “A Complete Unknown” (2024), cinebiografia de Bob Dylan, com atuação de Timothée Chalamet. Esse foi o primeiro filme a ter a apoio do cantor e o compositor estadunidense, que resiste a assistir a todo documentário ou cinebiografia a seu respeito.

“A Complete Unknown” cobre os primeiros anos da carreira de Bob Dylan, desde a sua chegada a uma Nova York sessentista a pleno vapor criativo, às margens do Maio de 68, passando pelas difíceis relações pessoais do jovem cantautor, tanto da sua vida profissional (artistas e gente grande da indústria fotográfica), como da sua vida romântica (com foco sobretudo na relação de Bob com Joan Baez).

Vale o destaque do esforço de Timothée de não utilizar nenhum recurso de melhoramento vocal como inteligência artificial ou playback, que o levou inclusive a ter aulas com coachs vocais.

Tenho a impressão de que a indústria cinematográfica estadunidense finalmente entendeu que cinebiografia é cinema, mas também biografia, o que se baseia em fatos, e não em sua romantização compulsória.

Após fiascos (em termos biográficos) como “Total Eclipse” (biografia de Arthur Rimbaud, com atuação de um jovem Leonardo Di Caprio), “Modigliani” (biografia do pintor moderno italiano Amadeo Modigliani) e “Searching for Fischer” (biografia do enxadrista mirim Joshua Waitzkin), parece que é o fim de toda uma era de filmes estadunidense que tentam transformar qualquer atividade humana em aventura (desde escrever um poema e jogar xadrez até pintar um quadro), e de tentar superdramatizar vidas, que na maioria das vezes, eram ordinárias.

Arterotismo

Imagem: “Little Ego”, de Vittorio Giardino.

Sem falsa hipocrisia, quantas peças de pornografia você conhece que se preocupam com a concepção do belo? Quantas tem em si emparelhadas metáforas psicanalíticas?

Em “Litle Ego”, quadrinho erótico do italiano Vittorio Giardino, tratam-se de surreais, curtos e pouco conexos sonhos sexuais de uma jovem mulher da qual pouco sabemos. Suas fantasias oníricas envolvem desde objetos do dia a dia, como guarda-chuvas e flores, dismorfia corporal, até animais e povos de outros continentes.

Há nessas breves sonhos o sexo simbolizado. O voo de um avião, pode ser tido como metáfora do orgasmo. Em certo episódio, transcende-se o mito de Narciso, quando a heroína, enquanto se olha no espelho, multiplica-se em 12 e faz sexo com várias de si mesma, em uma imensa auto-orgia.

Ao fim de cada episódio, a heroína onírico-erótica diz, quando acordada, que deve visitar o seu psicoterapeuta, aplicando uma pitada de humor às curtas narrativas. As cores de “Little Ego” são surpreendentes e o seu traço são de um amálgama entre cartazes pin-up e vitrais art nouveau, o que transforma cada quadrinho em uma peça visual suficiente por si só.

Uma onda de Bossa Nova na Europa?

E por falar em art nouveau, quero falar de Liana Flores, artista britânica, filha de mãe brasileira.

Tenho ouvido nos últimos dias “Flower of the Soul”, seu primeiro disco gravado em estúdio. Após o sucesso de “Rises the moon”, música viral no Tiktok, a conta cantora pôs a mão na massa em seu disco de estreia, de 2024. Aqui podemos ver um belo mosaico de folk, bolsa nova e jazz, bem envolucrados na linguagem musical das novas gerações.

Ao lado de Laufey, cantora finlandesa, Flores é talvez uma das mais representantes receptadoras das influências das primeiras raízes da bossa nova brasileira na música europeia contemporânea. De seu “Flower of the Soul”, recomendo as faixas “Orange-coloured day” (quase um “Take Six”, ao estilo de Dave Brubeck), “Nightvisions”, com um belo arranjo de acordes vocais e surpreendentes modulações tonais, e “Halfway Heart”, o melhor exemplar de bossa nova do disco, que faz lembrar vozes clássicas como a de Joyce Moreno e Gertrude Gilberto.

Uma leitura sobre uma leitura sobre uma leitura

Terminei na semana passada “Se una notte d'inverno un viaggiatore” de Italo Calvino, em texto original, em língua italiana. Nesta obra, o escritor italiano faz o que já seria previsto na história do romance moderno (desde “Ulysses”, de James Joyce), isto é, um romance sobre um romance. Ou melhor: um romance sobre romances. Ainda mais: um romance sobre o próprio ato de ler romances.

Em “Se una notte d'inverno un viaggiatore” lemos sobre o Leitor (isso mesmo, alguém identificado como Leitor). O grande diferencial deste livro ao meu ver está em estar em uma perspectiva em “POV” (point of view, ou seja, ponto de vista). Ela é narrada não em primeira, não em terceira, mas em segunda pessoa. Ou seja, é um narrador externo, que nos descreve o que estamos “vendo”, quase como se estivéssemos em um role playing game (RPG); o que quer dizer que nós, leitores, é que de certa forma somos a personagem principal de “Se una notte d'inverno un viaggiatore”.

Durante o romance, o Leitor inicia a leitura de “Se una notte d'inverno un viaggiatore”, um livro que ele não chega a concluir, por estar mal impresso. Em busca da devolução do livro, ele acaba por entrar em um vórtice de leituras laterais interrompidas, sempre acompanhado de Ludmilla, a Leitora pelo qual o Leitor se apaixona durante sua aventura literária.

Calvino leva a ideia de escrever um livro sobre livros a outro nível, apelando muitas vezes à incepção. Em certa altura, a narrativa passa a descrever um livro que não é lido pelo Leitor, mas que facilmente identificamos como o próprio “Se una notte d'inverno un viaggiatore”.

Há alguns pressupostos que não são atingidos nesse livro, no entanto. Uma delas é de haver pequenas histórias que tenham cada uma um estilo próprio, como Joyce mesmo faz em seu “Ulysses”. A não ser o fato de que as personagens tenham características e traços descritivos distintos, não se tem uma ideia muito forte de que os textos foram escritos por pessoas diferentes; o ritmo de leitura é muito parecido e o uso de palavras idem. A não ser quando surge a voz do narrador, não há uma grande diferença estilística.

Li esta obra em seu texto original, porque estou ainda tentando me familiarizar com a língua literária italiana. No entanto, não há nada que me faça estar convencido de que o texto em italiano oferece algo de diferente de uma tradução. A genialidade de Calvino está no experiência da leitura (pragmática), não na composição do texto (sintática), o que em geral nos leva a ler originais.

De certa forma, fiquei arrependido de ter lido em italiano, porque o bloqueio linguístico fez com que não houvesse tanta fluidez na leitura, exigida pelo texto calviniano.

“Flor do Lácio, sambódromo, Lusamérica, latim em pó”

Nesta semana, terminei a leitura de “Latim em pó: um passeio pela formação do nosso português”, escrito por Caetano Galindo e publicado no ano de 2023. Eu o começara a ler na semana anterior e devorei em sete dias completos.

Esse pequeno livro do linguista e tradutor natural de Curitiba procura falar, de maneira sucinta e com linguagem acessível, sobre o percurso da língua portuguesa até a atual variante brasileira. Além de conhecimentos de linguística, Galindo se vê obrigado a acionar também (muitas) informações de história e de antropologia.

Seu propósito é, sobretudo, desmistificar algumas crenças acerca da LP, entre as quais a de que ela é uma descendente direta do latim imperial, a de que sempre falamos português como língua primária no Brasil colônia e a de que os brasileiros “falamos português errado”. Ao contrário de seu parceiro sociolinguista Marcos Bagno, Galindo decide não tomar partido na discussão sobre a existência de uma língua “brasileira”.

Não sei se posso afirmar que Galindo cumpriu com o objetivo de escrever um livro introdutório sobre linguística, “para leigos”, já que mesmo eu, um veterano de Letras, encontrei muitas informações e curiosidades em torno de minha língua materna as quais não sabia ainda.

Não gosto da ideia de dizer que esse é um livro “para leigos” porque este é um livro muito bem escrito, com uma boa noção de ritmo e de como as palavras podem ser pronunciadas em uma leitura vocal; falar que esse é um livro “para leigos”, pois, seria implicar que livros “para especialistas” são duros, mal escritos e chatos ― o que não se cumpre na prática.

Outro acerto de Galindo ao escrever para o público geral sobre uma língua foi começar seu texto falando sobre um falante em potencial dessa mesma língua. Isso é benéfico para a compreensão de um público amplo por dois motivos: a) porque faz lembrar que as línguas são sobretudo as pessoas que a falam; e b) torna mais carnal e sensível tudo aquilo sobre o qual se falará no livro.

A história da implementação da língua portuguesa em nosso território é um drama,

adverte o autor em sua introdução. Podemos todos o confirmar durante a leitura deste inteligente e sensível livrinho que deve constar desde já nas leituras obrigatórias, não só de calouros de Letras, mas também de todos aqueles que se interessarem pela linguagem e realidade brasileiras.

Citações

O mundo está cada vez mais perigoso, está morrendo gente que nunca morreu antes

@miguel@bertha.social

Para aqueles de nós que nunca herdarão dinheiro, terra ou imóveis, as pessoas que nos moldam são a nossa riqueza.

― Edna Bonhomme.

Confunda seus inimigos. Se nem você souber o que está fazendo, seus adversários com certeza não vão saber.

@Ze_Andarilho@capivarinha.club

É aquela lei da natureza, né? No dia que você fala que vai cortar o cabelo ele se comporta. Por isso estou dizendo todo dia que vou cortar o cabelo e não vou, que é pra ele ficar esperto.

@pancho@bolha.one

Se eleito transformarei os motéis em casas populares e as igrejas em escolas públicas.

@NoahLoren@ayom.media

“[Se] quer me fuder, me beija, porra!”

@marte@bolha.one citando a consciência popular.

Linkroll

Em 2022, no aniversário de 15 anos desde o lançamento do primeiro iPhone, The Guardian perguntou a fotógrafos profissionais como (e se) eles usam o smartphone para tirar fotos.

• The iPhone at 15: pro photographers on how it changed their world (The Guardian)

Quadrinho falando sobre a resiliência do protocolo RSS, minha forma favorita de ler na internet.

• RSS is not dead yet (audra mcnamee)

Pedidos

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#notas #cotidiano #cultura


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Você está por começar a ler o novo manifesto do Ismismo.

O Ismismo, como diz seu nome, é um ismo. Uma ideologia. E como ideologia, é uma ideia de ideias. Como são ideia de ideias o cubismo, o marxismo e o taylorismo. No entanto, o Ismismo vai adiante: é uma ideia de uma ideia de ideias. Ou seja, busca sintetizar todas as ideias. É um sintetismo.

O Ismismo é a tentativa de uma conquista. Uma pequena conquista, a conquista de todas as derrotas da fragmentação do homem, somente superada pela ingente luta por sua integração em um grande ismo.

O Ismismo não é pela defesa de um ismo, mas pela aceitação dos ismos. O Ismismo não é uma manifestação do “espírito da época” (zeitgeist). Ele é o espírito. E a época.

Este ismo sobre o qual você lê é somente mais uma etapa de todos os ismos. No entanto, os ismistas estamos por acelerar o processo do fim de todos os ismos. Pois o Ismismo é também um outro nome para aceleracionismo, ao tempo que é outro nome para o budismo.

Pois é natural que o Ismismo reúna os contraditórios.

Afinal o Ismismo é uma ideia, mas também é uma prática. Quer dizer, o Ismismo não é uma ideia, muito menos uma prática. Isto é:

Um ismo é um ismo é um ismo é um ismo é um ismo é um ismo...

― Gertrudismo Steinismo.


Ismismo é um sismo.

(Não confundir “sismo” com “cismo”, o ismo pela expressão de gênero cis, muito ligada ao fascismo ― um ismo há muito preterido, com um revival nos últimos tempos, porém ainda assim contemplado pelo Ismismo).

Como mostra a história, será natural que, com o decorrer do tempo, surja também o pós-Ismismo. E o neoIsmismo. E o anti-Ismismo, é claro. E o ismismismo (não o confundir com “mesmismo”, um outro ismo ~importantismo~, digo, importantíssimo).

Mas eis que voltamos ao lugar que onde não saímos, apesar de tudo. Prova disso é o termos voltado, pois do contrário o ismo ter-se-ia imposto e não poderíamos retornar a outro ismo, porque esmagado. Daí a necessidade de um Ismismo, i.e., uma teoria geral do ismo.

Este ismo decorre dos dois maiores ismos da contemporaneidade (afora o próprio Ismismo): o maximalismo de Flô Menezes e o pequenismo de Luis Dolhnikoff. Os dois ismos, vocês percebem, são conflitantes, praticamente opostos. Entretanto, no Ismismo não há conflitos. Há confiltros.

Ambos os ismos supracitados são contemplados pelo Ismismo, pois todos os ismos estão no Ismismo. Até mesmo o próprio Ismismo.

O que defende então o Ismismo? O ismo. O ismo populismo. O ismo tecnicismo. O ismo sufixo. O ismo em si mismo. Um tautologismo.

Ismologia, eu quero uma para viver!

― Cazuzismo.


O partidário do Ismismo é o ismista.

Ismismo é o último istmo que tangencia o homem de sua própria autoignorância. O homem é ismista por natureza, só ele ainda não o entendeu.

O Ismismo também contempla o ismistismo, isto é, a defesa do ismista, ou seja, a defesa do homem em sua natureza ― que é ismista. Afinal, o Ismismo é também outro nome para humanismo.

Mário de Andrade, temendo que confundissem os ismos brasileiros com os ismos italianos (futurismo de Marinetti), preferiu a alcunha “modernismo”. Rateou. Fosse esperto, chamaria aquele movimento vindouro de Ismismo.

O ismo é o que nos une.

― Oswaldismo de Andradismo.

Só o ismo nos liberta.

Como também sou adepto do pixismo (um ismo nacional ― fora, trumpismo!), me manda um Pix: arlonismo@gmailismo.comismo. Assim você estará incentivando o Ismismo.

Viva o Ismismo! Viva o Ismismismo! Viva o Ismismismismo!

Vocismo acabismo dismo lerismo oismo maisismo recentismo manifestismo dismo Ismismo.

#cultura


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Close no rosto de um homem japonês. Ele tem cabelos longos, ao estilo dos anos 50. Tem uma mão apoiada no queixo e olha, de pálpebras baixas, para um ponto baixo. Foto em preto e branco.

O terno olhar de Osamu Dazai, escritor moderno japonês.

Uma daquelas publicações sem temas específicos, apenas com textos soltos que escrevo por aí, curadoria de links e citações.

Pensar em um computador desconectado

Depois de ler um texto do @ploum@mamot.fr falando sobre a construção de um computador que dure 50 anos ― onde também se fala do princípio de offlinefirst / localfirst ―, tive ganas de criar um repertório de documentos para deixar no disco rígido para consulta rápida e sem internet.

Já baixei alguns mapas (América do Sul, Brasil, Ceará etc.) e alguns dicionários. Tentei baixar o mapa de infraestrutura da minha cidade pelo OpenStreetMaps, mas não consegui direitinho. Penso em baixar o repositório da Wikipédia.

O mundo de fantasia dos motéis japoneses

O sítio web Flashbak, voltado a curiosidades históricas, publicou um artigo com algumas fotografias do francês François Prost mostrando a arquitetura de motéis do Japão.

Aí vê-se de tudo: navios, OVNIs, castelos encantados.

Se no mundo ocidental ou ocidentalizado, a discrição é essencial para um espaço sexual, não é este o caso dos motéis japoneses.

Sex In A Japanese Love Hotel

Reclames sobre um podcast

Odiei um recente episódio da Radio Ambulante, podcast hispanófono que conta crônicas da América Latina. Foi sobretudo com esse programa de áudio que aprendi a língua espanhola. Desde o período que comecei a o escutar ― 2022 ―, a vaibe do programa têm piorado muito.

Costumo pensar dez vezes antes de escutar algum episódio, porque com frequência ao fim dos episódios fica aquele clima de melancolia, de evento mal resolvido. Um episódio recente, La concursante, foi além disso, ele relata o assassinato de uma jovem adulta que participou de um populista programa de auditório do Peru, e que morreu por isso.

Estou espoilerando exatamente porque a escuta não vale a pena, apesar de que a construção narrativa do episódio seja muito bem tecida, e o trabalho de sonoplastia seja impecável, uma das especialidades da Radio Ambulante.

No entanto, afora o clima extremamente apelativo da história, que beira aos programas policiais, os produtores não nos contaram sobre como os meios de comunicação peruanas reagiram depois do episódio de assassinato, dos quais eles próprios foram catalisadores.

Uma pena.

Coisas de que mais gosto no Fediverso

  1. a comunidade capivarinha.club;

  2. a comunidade ayom.media e o seu ecossistema;

  3. o humor incessante do @miugnutos@bolha.one;

  4. a disponibilidade e gentileza geral dos membros;

  5. a diversidade de integrantes ― eu não tinha interagido na internet com pessoas neurodivergentes, surdas ou cegas até eu chegar aqui;

  6. a não hegemonia de usuários de língua inglesa;

  7. o tino slow web, com posts concentrados que só com muito esforço podem viciar o integrante fediversal;

  8. a autogestão;

  9. o respeito à privacidade em todos os sentidos ― você não precisa mostrar nenhuma informação pessoal se quiser, mas se quiser pode;

  10. Jefferson, flearows e bamblers;

  11. a infinidade de opções de plataformas e de interfaces disponíveis para interagir ― código aberto é poder!;

  12. o fato de que ninguém nunca obterá este espaço como mercadoria ou poderá censurá-lo, já que ele é 🌠 descentralizado 🌠 ;

  13. instâncias bem, bem barristas, tipo a masto.nyc (para usuários de Nova York) e a mastodon.bahia.no (para usuários da Bahia);

  14. e por falar em bairrismo e identidade, gosto também de como cada instância pode ter uma cara própria, com emojis próprios e uma cultura própria;

  15. a polyglot.city, que é a minha comunidade espiritual;

  16. o fato das redes fediversais serem de baixa manutenção, ou seja, você não precisa estar entrando todo dia nem de se esforçar para conseguir seguidores para, a curto ou longo prazo, ter uma boa experiência;

  17. ah, já ia me esquecendo do principal: não há influenciadores, trolls, propagandas ou empresas;

  18. a curadoria musical do @gaviota@weatherishappening.network (te amo, Gaviota!);

  19. como o Fediverso nunca segura o membro em seu espaço, já que estamos sempre nos redirecionando para outros sítios web;

De todas as filias, a pior é a filIA

Li em um blogue a seguinte frase:

Nós que somos entusiastas de IA.

Entusiastas de IA. Entusiastas de IA. Entusiastas de IA. Entusiastas de IA...

Incrível é como é comum encontrar esse perfil dentro da neoblogosfera!

Novamente o computador

Não sou de ter saudade, mas sinto falta de quando o computador era a grande tecnologia do momento. Com o computador como portal único da internet, havia um limite entre estar desconectado e conectado. Todos os meus esforços para tornar meu telefone um aparelho offline first provavelmente vá nesse sentido...

Offpunk

Estou simplesmente encantado pelo navegador #Offpunk/ #XKCDpunk, desenhado pelo escritor belga @ploum@mamot.fr. É um navegador para protocolo #Gemini, que roda totalmente no #terminal do sistema e que pode funcionar sem internet, mantendo páginas visitadas ou agendadas em cache.

Agora passo a maior parte do meu tempo no computador desconectado e a sensação é ótima.

Você pode saber como clonar ou instalar o Offpunk por aqui.

Explicando o Fediverso

Como vcs explicam pra alguém de forma simples o q é o fediverso?

Fediverso é Twitter, Youtube, Facebook e Instagram, tudo junto e misturado, só que sem influenciador, parente e nem bilionário.

Outra imagem do mesmo homem, mostrando o seu dorso. Ele está vestido em um kimono, na mesma posição. Tem seu punho sobre uma mesa, no qual pende uma pena, e abaixo do qual está um papel. Ele olha diretamente para a câmera.

Outra vez Osamu Dazai.

Youtube formicapunk

Partindo de um conceito vindo do @bouletcorp2@mastodon.social, o formicapunk ― aqui a arte de onde vem o conceito ―, o @ghettobastler@mastodon.art desenhou e executou o 3615-Youtube, um gravador de vídeos do Youtube para fitas VHS a partir de um Minitel, um terminal francês de vídeo-texto de 1978.

Aqui o vídeo do projeto sendo operado: https://www.youtube.com/watch?v=kMp8XH5ZHtM

Favoritismos

No último dia 14, fui à palestra do escritor cearense de biografias Lira Neto sobre seu recém-lançado “Oswald de Andrade: Mau Selvagem”, no auditório da reitoria da UFC. No último momento da palestra, na rodada de perguntas, elaborei uma questão que pensara durante toda a sua fala. Saquei o telefone do bolso, no bloco de notas escrevi

Eu me interesso por Oswald de Andrade, porque me interesso por Décio Pignatari, cujos amigos denominaram o “Oswald magro”. Como um fio puxa outro, queria saber se, em suas andanças acadêmicas, houve alguma relação entre você e Pignatari, mesmo que bibliograficamente. Além disso, poderia falar mais sobre a relação entre Oswald de Andrade e o movimento de Poesia Concreta?

e o guardei.

Passaram-se duas falas de pessoas célebres da cultura de Fortaleza; outras de pessoas não tão célebres, mas próximas ao autor; outras de pessoas nem tão célebres e nem tão próximas ao autor, mas arrumadinhas. Quando o meu sinal para a pergunta foi notado, o organizador da palestra disse que o tempo para perguntas já havia encerrado. Com o livro debaixo do braço, humildemente saí do auditório, sabendo que essa pergunta não seria respondida ali. De qualquer forma, na maioria das vezes a audiência não é tão interessante quanto o palestrante.

Publico essa dúvida neste espaço na esperança de que alguém me a responda e como forma de protesto contra eventos literários, que sempre parecem ser feitas para dez pessoas.

Na palestra. Flagra do ator Ricardo Guilherme, no canto superior direito da foto.

Frasezinhas e ready-mades

Openbar é pá pimbar.

― Ouvi de relance em algum lugar.

Vantagens de ensinar para adultos: eles se comportam e prestam atenção na aula. Desvantagens de ensinar para adultos: eles não desenham o professor e nem lhe escrevem cartinhas.

Eu não sou pobre, eu sou sóbrio, de bagagem leve. Vivo com apenas o suficiente para que as coisas não roubem minha liberdade.

— Pepe Mujica (R.I.P.), esse Hirayama do Uruguai.

Lidar só com gente simpática em Fortaleza ― meu Deus... que solidão.

O bom de falar em LIBRAS é que ninguém cospe no outro.

Interpreto capinha como “roupinha de telefone”. Quando ele está em casa, fica sem nada, peladinho como veio ao mundo.

#notas #tecnologia #cultura


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Em 1972 o escritor italiano Italo Calvino publicou o seu Le città invisibili, uma série de descrições de cidades imaginárias, ambientadas em algo que seria um Mediterrâneo ou um Oriente Médio medievais; essas descrições partem de diálogos imaginados entre o viajante Marco Polo e o monarca Kublai Kan, imperador dos Tártaros. Cada cidade é uma metáfora, e boa parte delas seguem a estética do maravilhoso.

Li Le città invisibili ano passado, e ele foi a minha primeira leitura de um livro completo em língua italiana. Há alguns dias o trecho que selecionei para esta Ideia de Chirico rodava em volta de minha cabeça, porém eu não conseguia lembrar de onde ele vinha. Ontem finalmente decidi buscá-lo e fazer-lhe uma tradução em português, também como forma de praticar um pouco do italiano, que me tem estado em baixa. Espero que vocês gostem e que isso os incentive a ler Calvino, um dos mais originais autores da Itália moderna.

Excepcionalmente esta publicação não trará imagens, a fim de que as descrições não sejam “infectadas” por elas nas suas imaginações.

As cidades e as trocas. 2.

Em Cloe, grande cidade, as pessoas que passam pelas ruas não se conhecem. Ao verem-se, imaginam mil coisas um do outro, os encontros que poderiam ter entre si, as conversas, as surpresas, as carícias, as mordidas. Mas ninguém saúda ninguém, os olhares cruzam-se por um segundo e depois se afastam, buscando outros olhares ― não param.

Passa uma moça que roda uma sombrinha apoiada no ombro, e também um pouco o redondo dos quadris. Passa uma mulher vestida de preto que demonstra a todos os seus anos, com os olhos inquietos sob o véu e os lábios trêmulos. Passa um gigante tatuado; um homem jovem de cabelos brancos; uma anã; duas gêmeas vestidas de coral. Algo corre entre eles, uma troca de olhares como linhas que ligam uma figura a outra e desenham flechas, estrelas, triângulos, até que todas as combinações em um átimo desaparecem, e outros personagens entram em cena: um cego com uma onça na corrente, uma cortesã com leque de plumas de avestruz, um mancebo, uma mulher-bala. Assim, entre aqueles que por acaso encontram-se juntos a abrigar-se da chuva sob o pórtico, ou amontoam-se sob uma tenda de feira, ou param para escutar a banda na praça, consumam-se encontros, seduções, abraços, orgias, sem que se troque uma palavra, sem que se toque um dedo, quase sem levantarem os olhares.

Uma vibração luxuriosa move continuamente Cloe, a mais casta das cidades. Se homens e mulheres começassem a viver os seus efêmeros sonhos, cada fantasma tornar-se-ia uma pessoa com quem começar uma história de perseguições, de fingimentos, de mal-entendidos, de irritações, de opressões, e o carrossel das fantasias pararia.


Le città e gli scambi. 2.

A Cloe, grande città, le persone che passano per le vie non si conoscono. Al vedersi immaginano mille cose uno dell’altro, gli incontri che potrebbero avvenire tra loro, le conversazioni, le sorprese, le carezze, i morsi. Ma nessuno saluta nessuno, gli sguardi s’incrociano per un secondo e poi si sfuggono, cercano altri sguardi, non si fermano.

Passa una ragazza che fa girare un parasole appoggiato alla spalla, e anche un poco il tondo delle anche. Passa una donna nerovestita che dimostra tutti i suoi anni, con gli occhi inquieti sotto il velo e le labbra tremanti. Passa un gigante tatuato; un uomo giovane coi capelli bianchi; una nana; due gemelle vestite di corallo. Qualcosa corre tra loro, uno scambiarsi di sguardi come linee che collegano una figura all’altra e disegnano frecce, stelle, triangoli, finché tutte le combinazioni in un attimo sono esaurite, e altri personaggi entrano in scena: un cieco con un ghepardo alla catena, una cortigiana col ventaglio di piume di struzzo, un efebo, una donna-cannone. Così tra chi per caso si trova insieme a ripararsi dalla pioggia sotto il portico, o si accalca sotto un tendone del bazar, o sosta ad ascoltare la banda in piazza, si consumano incontri, seduzioni, amplessi, orge, senza che ci si scambi una parola, senza che ci si sfiori con un dito, quasi senza alzare gli occhi.

Una vibrazione lussuriosa muove continuamente Cloe, la più casta delle città. Se uomini e donne cominciassero a vivere i loro effimeri sogni, ogni fantasma diventerebbe una persona con cui cominciare una storia d’inseguimenti, di finzioni, di malintesi, d’urti, di oppressioni, e la giostra delle fantasie si fermerebbe.


In: “Le città invisibili” (1972), de Italo Calvino. Tradução de Arlon de Serra Grande.

P. S. (7 abr. 2025): tradução atualizada com as gentis recomendações do italófilo Renato Stanz, companheiro do Clube Poliglota.

#tradução #cultura


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Elizabeth Sparkle, protagonista de “A Substância”.

Com atraso, após sua premiação de Oscar de “melhor maquiagem e penteados”, assisti ao horror corporal “A Substância”.

O filme narra o declínio de Elizabeth Sparkle, uma ex-atriz premiada que, após ser demitida de um programa televisual de ginástica por ser “muito velha” (segundo seu produtor), aceita um método de rejuvenescimento do mercado ilegal.

O método consiste em injetar em si mesmo uma substância que faz gerar a partir do corpo do injetante uma versão mais jovem sua. Cada versão tem a consciência da pessoa “matriz” por uma semana, enquanto a outra fica inconsciente. Isso requer uma manutenção que, caso não seja feito regularmente por ambas as partes, faz com que uma delas se deteriore e envelheça prematuramente.

Mais do que uma crítica ao patriarcado, “A Substância” centra-se no problema do etarismo. O patriarcado é um mal estrutural antigo, e há peças mais ilustrativas sobre esse tema do que esse filme. Porém, para a nossa sociedade de desempenho (em termos do filósofo coreano-alemão Byung-Chul Han), envelhecer é um problema, pois os mais velhos não produzem nem dão lucro.

Criticá-lo frontalmente é o ponto mais brilhante e sensível deste longa-metragem. Elizabeth mesma deixou de ser lucrativa para o produtor a partir do momento em que envelheceu e ficou menos “televisível”. Foi então descartada do estafe sem grandes cerimônias, malgrado a sua longa carreira.

A velhice nunca esteve tão distante da beleza e do bem-estar como agora. No ano de 2025, quer-se sempre jovem e potente, seja por aparência, seja por “essência”. E, ironicamente, com menor taxa de nascimento, menor poder de compra e maior desigualdade entre as classes, estamos nos encaminhando para uma sociedade mais velha e sem suporte aos mais idosos.

Os momentos mais marcantes do filme premiado são de Sue “discutindo” com Elizabeth, a chegar até o paroxismo daquela surrar esta. Isso representa tanto a nossa relação com nossos eus futuros, que desprezamos, quanto a relação dos mais jovens com os mais velhos. Mesmo.

Sue, a versão mais jovem de Sparkle.

O “SAC” da “Substância” rejuvenescedora, quando contatada, com frequência diz que “Vocês são uma só”. Mas como uma versão pode fazer mal à outra se ambas fazem parte de uma mesma consciência? Aí reside a genialidade do filme. Conforme as semanas avançam e uma versão adquire mais prestígio do que a outra, cada qual passa a agir displicentemente, sem considerar versão da semana seguinte, a ponto de cada uma adquirir consciência autônoma e até a criar rivalidade entre si. Nas cenas finais do filme, Sue fala em entrevistas de Elizabeth como se essa fosse outra pessoa.

Isso nos faz refletir sobre a relação entre a responsabilidade e a juventude. O senso comum associa a juventude à inconsequência, porque “essa é a sua natureza”, já que “não tem o cérebro totalmente formado” etc. Sue nada mais é do que uma mulher de 50 anos em um corpo de 30. Ainda assim, ela é inconsequente. O que poderia justificar essa postura?

Poder.

E poder no sentido mais concreto de todos: “poder-fazer”. Há gente que com muita frequência desejaria “voltar no tempo com a cabeça que tem hoje”. Mas o poder-fazer cega. Quem garante que se voltássemos no tempo faríamos diferente? Quem garante que não cairíamos na sedutora delícia do erro? Há vezes em que erramos, não porque somos imaturos, mas porque sabemos que aquele é um erro sem a possibilidade de ser repetido...

O longa-metragem apresenta duas falhas notáveis: a falta de aprofundamento nas personagens e de coadunação estética.

Passamos duas horas assistindo a uma mulher que já foi uma Oscar-premiada e não sabemos sequer como foi sua vida de atriz e como sucumbiu à programação barata de televisão, ou por que ela vive sozinha etc. Além de tudo, reduzir uma personagem feminina à sua aparência e sua vida profissional é danoso mesmo em um filme que procura criticar a objetificação feminina.

Outra coisa esquisita é a confusão estética. O cenário e o hábito é todo oitentista, vistos na vestimenta, no uso do jornal e do telefone fixo com fio. Só que a trilha sonora é moderna, e volta e meia damos de cara com telefones celulares e televisões de plasma.

Por outro lado, quando se justapõem cenários, hábitos e tecnologias antigos e modernos, é como se se delineasse uma identificação entre a época atual à sua antecessora. Forma-se daí a ideia de que, nos aspectos apontados pelo filme (patriarcado e etarismo), não evoluímos como sociedade.

No mais, achei o longa-metragem bem próximo do gênero de ficção científica, e me fez refletir sobre o papel da ciência na busca compulsória pela juventude e, por consequência, na pressão social pela conservação da aparência. Por isso, “A Substância” entra para a lista de filmes que poderiam muito bem ser um episódio de Black Mirror.

(Até porque, dado o seu baixo desenvolvimento de personagens e seu trabalho pobre em fotografia ― sobretudo baseado em closes ―, mais parece um episódio de série do que um filme).

#cultura


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Capa do disco “Nadadenovo”.

Em um tempo quando ouvir música na internet não era fácil, tive o hábito de gravar CDs com álbuns que eu, com muito esforço, baixava. Ao passar dos anos, guardei alguns deles e, ao contrário do restante dos meus arquivos pessoais, eles perduraram. Com o tempo, fui os acumulando e organizando por ano (o disco de 2016, de 2017 etc.) ou por ordem alfabética (A-P, M-Z etc.).

Até que um dia decido revisitar alguns desses discos, que estiveram todos esses anos guardados no fundo da gaveta de minha escrivaninha. Na superfície de um deles, escrevi “2015”. Aquele fora um ano de muita experimentação e de pesquisa de novos gêneros musicais. Eu era capaz de ouvir qualquer coisa que me recomendassem...

Foi nesse período que comecei a ouvir o jazz de um Miles Davis, as sinfonias de Antonín Dvořák ou de Heitor Villa-Lobos, o folk de Bert Jansch e uma série de grupos do assim-chamado “post-rock”, como Godspeed You! Black Emperor, Bark Psychosis e Stereolab. Eu tinha então 19 anos, estava em um período de pré-vestibular, ainda por me entender e me descobrir, com todo o futuro em aberto.

De todos esses grupos, saquei um ao qual no tempo não dei tanta atenção, que fizera muito sucesso entre 2005 e 2015, e que, sabe-se lá o porquê, acabei gravando no disco: “Nadadenovo”, o primeiro do grupo de rock alternativo Mombojó, gravado em 2004.

No princípio da reescuta, me agradou o nostálgico que era o ouvir: ele me fazia recordar daquela época da infância quando se passava a maior parte do tempo em frente à televisão, assistindo à MTV ou qualquer outra bobagem da rede aberta; dos romances que eu ouvia de amigos mais velhos; dos passeios em família, nos quais meu irmão mais velho punha música no carro de nossos pais; também de outras bandas de rock alternativo brasileiro como Los Hermanos, Vivendo do Ócio e Móveis Coloniais de Acaju, que eram muito ao gosto dos hipsters de então; e, por fim, daquele mesmo ano de 2015, de uma difícil, mas feliz, solidão.

Mas claro, não há música de qualidade que sobreviva só de nostalgia. Depois do primeiro encontro, vem o segundo interesse: Mombojó é de um som imprevisível. Como o disco “Ao som dos planetas”, sobre o qual já escrevi nestas mesmas Ideias de Chirico, nas canções de “Nadadenovo” somos a todo momento jogados de um gênero musical a outro, de um ritmo a outro. Mas, diferentemente desse disco de Alberto Continentino, essas variações acontecem em uma mesma faixa, e acontecem gentilmente, por vezes timidamente, sem um movimento brusco.

Temos por exemplo, “Deixe-se acreditar”, a segunda faixa do disco, que se introduz com um envolvente surf music, para então partir para um rock arisco com acordes oitavados, típicos do hardcore, e é encerrada com um tema de bossa-nova ― tudo isso em um pequeno raio de três minutos. Durante a escuta do disco, com muita frequência somos carregados nessa montanha russa rítmica.

Outro ponto forte de “Nadadenovo” é a vastidão de sua paleta de timbres. Durante o disco acompanhamos toda sorte de instrumentos acústicos (como violões clássicos e flautas transversais ― um forte das composições) e instrumentos eletrônicos (como baterias sintéticas e teclados elétricos), bem como o tratamento elétrico-acústico de vocais, com manipulação de frequências, como em “Nem parece”, no qual ouvimos o vocal alternando ora para um timbre limpo de estúdio, ora para um timbre de ligação telefônica.

As letras não possuem muita variação de temas. A maior parte delas são a respeito de romances acabados ou mal acabados, algumas com uma roupagem por vezes surreal ― como em “Faaca”, cujo refrão diz repetida e alegremente:

Eu quero ver você dançar

em cima duma faca

molhada de sangue

enfiada no meu coração.

Somado a esse surrealismo, junta-se um curioso uso de samples por vezes non-sense, como em “Estático” ― disparado a minha faixa preferida. Sua letra fala a respeito de um amante desiludido que acha que o relacionamento “Não vale mesmo a pena, não”. O que faz o contraponto com o vocal principal? As gravações de uma criança na primeira fase da linguagem, que balbucia coisas como “Vai ter de tomar tudo!”, “Eu vou inventar!” e “Vamo'fritar o boi!”

“Nadadenovo” com certeza é um dos discos mais originais de sua geração ― digo... da geração de grupos de rock alternativo. Por isso, guarda os males de um grupo de rock ― sobremaneira o de manter uma linguagem musical convencional.

As composições são em grande parte em compasso quaternário, típico da música mainstream, e não há modulações harmônicas de nenhuma espécie, que são comuns em outros gêneros musicais e que tornam as músicas mais dinâmicas. Isso faz com que algumas mudanças rítmicas soem familiares e gentis, sim, mas, por vezes, sem fundamento.

Apesar daquela mudança constante de gêneros e ritmos, ela não é feita sob costura sígnica alguma, isto é, parece arbitrária, não constrói significados. Isso mantém a parte instrumental e a parte “verbal” em planos distintos, como se um não se reconhecesse no outro.

À parte disso, “Nadadenovo” é um disco que vale a pena revisitar quando já o temos esquecido por anos no fundo de uma gaveta, logo depois da primeira escuta ― que deve ser feita de preferência sob o céu limpo de uma tarde de namoro.

#cultura


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Estava pensando no final de “Manhattan” (1979), de Woody Allen.

Sempre que penso em cinema clássico, é a cena final de “Manhattan” que me vem à cabeça. Posso não ter visto suficientes filmes, mas sinto que é como se Woody Allen tivesse criado com essa sequência o paradigma de final de filme romântico.

É magistral a montagem inteira do filme; a sincronia entre música e fotografia; sem falar dos diálogos, que têm um taime e um ritmo maravilhosos.

Infelizmente Allen nunca conseguiu repetir o que fez em “Manhattan”. “Manhattan” é o paroxismo alleniano. Não há outro filme como “Manhattan”.

#notas #cultura


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Um dos grandes diferenciais da música em relação a outras linguagens é de ela ser um “signo puro” ― ou algo perto disso. Com isso quero dizer: a música, algumas vezes, não faz referência outra que não a ela mesma. Daí que temos essa vastidão de canções e peças musicais que são verdadeiras paisagens, que não são outra coisa senão elas mesmas. Não é como a arte da palavra que, mesmo em estado de poesia, necessita de um referencial no mundo para se legitimar.

Pensando nessa ausência de referencial, eis então a sensação que eu tinha ao ouvir o disco “Ao som dos planetas” (2015), o primeiro de Alberto Continentino: a de estar em uma sala clara, ou algum outro ambiente limpo, que se movimenta.

Esta, porém, não era uma sensação aleatória. Explico.

Na capa do disco, vemos Alberto Continentino, que faz os baixos elétrico e erudito e as composições; à sua direita, Vivian Muller, sua esposa, que faz os vocais, acompanhando ou acompanhada de Alberto; abaixo deles, uma curva de pele arrepiada; e, ao fundo de tudo, o breu do espaço sideral.

Em um primeiro momento, poderíamos pensar neste “planeta” arrepiado como a representação de êxtase causado pelo disco. Mas não. Alberto e Vivian, que durante o processo de gravação esperavam o nascimento de um filha, decidiram estampar a barriga de grávida na capa.

Sabendo desse fato, podemos agora pensar que os “planetas” do disco não são só as do espaço sideral, mas também as do espaço uterino... Antes eu falara que esse álbum me causa a sensação de estar em um espaço limpo que se move. Qual o único espaço esterilizado no mundo que está naturalmente em movimento? O útero!

Um dos motivos pelos quais o disco debutante de Continentino nos dá a sensação de se estar em um espaço sideruterino é a constante alternância de gêneros musicais, que ocorre de uma faixa à outra. Alberto fez sua carreira como baixista, e já colaborou com nomes como Marcos Valle, João Donato, Adriana Calcanhotto, Edu Lobo e Milton Nascimento.

Podemos ver toda essa versatilidade da carreira de Continentino enquanto somos levados por um jazz brincante como o de “Tic Tac”, pela bossa nova de “Tudo” e “Náufrago” e pelo soft rock de “Sessão da Tarde” e “Summer's Day” ― tudo isso involucrado em extrovertidos instrumentos musicais que giram e giram, como naves espaçomusicais.

Ouvimos em “Tic Tac” os vibrafones que, junto aos metais de sopro e essa espécie de “dueto” de guitarras (que, graças ao excelente trabalho de ambientação binaural do disco, rodam em nossos ouvidos), e dão um teor, mais do que bem humorado, humorístico a uma canção que fala de amor.

A mesma impressão de ambiguidade e ironia é deixada por “Double Dip”, que inicia como um tenso quarteto de guitarra, baixo, vibrafone e bateria vassourada que, a princípio, daria uma ótima trilha sonora de um filme policial, quando, apenas o trompete é chegado ao coro, o passo astuto do detetive torna-se um caminhar de pato. Nesta faixa, ainda vale notar o brilhante protagonismo do contrabaixo, mesmo quando em posição de cama harmônica ou contraponto.

Quando não há o famoso “papapá” a fim de fazer a vontade de cantar cobrir a falta de letra, como dito pelo próprio compositor em entrevista à Globo, as letras são de uma delicadeza irreconhecível ao lado da fanfarra de outras músicas. A introdução de “Sistema de Som”, por exemplo, tem uma cadência de fazer inveja ao maior dos trovadores:

Mesmo sem ter uma direção,

Não podemos parar...

Agora, não.

O disco debutante de Alberto Continentino foi capaz de unir opostos e contradições, em uma postura que, além de versátil, é contemporânea, conseguindo pôr lado a lado o amor e o humor, a seriedade e a ironia, o velho e o novo, a dança e a quietude, podendo causar no ouvinte efeitos de hipnose, introspecção ou extrema atenção. Um disco que vale a escuta e uma homenagem em 2025, quando o seu lançamento completará 10 anos.

#cultura


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Imagem de vários pixels soltos formando duas mãos escrevendo sobre uma máquina de escrever

Imagem: Serenity Strull/BBC/Getty Images.

Reportagens dos últimos dois anos:

Os “telefones burros” voltaram? (vídeo da CNBC, março de 2023).

Porque as câmeras digitais estão retornando (vídeo da TODAY, fevereiro de 2023).

As fitas cassete voltaram, o dilema é encontrar um toca-fitas. (matéria da New York Times, outubro de 2024)

Por que as máquinas de escrever estão tendo um renascimento na era digital (vídeo da PBS NewsHour, outubro de 2024).

Uma tiktoker de 23 anos faz vídeos sobre como e porquê voltou à mídia impressa (artigo da Slate, setembro de 2023).

Graças a entusiastas do minidisc, é possível adicionar músicas do seu smartphone em um tocador de minidisc (matéria da The Verge, outubro de 2024).

Por que tem se falado tão pouco desse súbito renascimento de várias tecnologias de comunicação antigas? De um lado uma indústria gastando rios de dinheiro na promoção das realidades virtual e aumentada, na streaminguização e na bluetoothização das coisas, e, é claro, na inteligência artificial; de outro, a nova geração reciclando aqui e ali várias tecnologias analógicas, como a máquina de escrever, ou tecnologias eletrônicas “ultrapassadas”, como a câmera digital ou mesmo como os blogues, que participam do movimento da chamada Web Revival, da qual estas Ideias de Chirico fazem parte. Tolice pensar que isso é moda de gente saudosista e ludista...

Essa não parece ser simplesmente uma onda sazonal e gratuita, concentrada em estética. Não é também como a moda hipster dos anos 2010, entusiasta sobretudo do vinil e da máquina de escrever ― eventualmente da fita cassete, como em 2016. Essa nova onda revivalista investe em muito mais tecnologias. Não é organizada em um movimento, mas dela pode se apontar um recorte geracional, nacional e de classe ― gente do norte global, de classe média, com idades em torno de 25 a 35 anos.

Há uma ímpar, crescente e geral insatisfação pelas tecnologias digitais ― seja por conta da bostificação, seja por conta do lock in, seja por conta da economia de atenção. O que esse pequeno movimento (mesmo que nichado) diz a respeito do Vale do Silício? O que posso dizer é que, definitivamente, o analógico é o novo hi-tech. E o offline é o novo online. Não é por outra razão que o filme “Dias Perfeitos” fez sucesso com o público abaixo de 30 anos... Eis aí todo um mundo ocultado pela digitalização compulsiva da vida. “O futuro do futuro é o presente”, já dizia o midiólogo Marshall McLuhan ― o que implica em dizer que o futuro do presente é o passado. Enquanto uma nova tecnologia for ofertada, não como ferramenta, mas imposta como meio de exclusão social (tal como o carro), o analógico seguirá como vanguarda.

#cultura #tecnologia #notas


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Imagem de uma teia de aranha molhada por orvalho

Alguns dos linques mais interessantes que encontrei durante o mês de setembro, com alguma reflexão que eles me trouxeram... Para quem não fala o idioma inglês, infelizmente eles não servirão de muita coisa.

Rewind Museum, uma “Wikipédia” de eletrônicos domésticos antigos ― de rádio à fita cassete, dos primeiros microcomputadores ao gramofone, de televisões analógicas aos videogames. É legal para mostrar para o Enzo que não tem ideia de como as coisas eram antes do esmartefone.

Lista de fotografias consideradas as mais importantes. Autoexplicativo. De vez em quando me pego vendo esta lista e acho uma das coisas mais fascinantes da Wiki.

Sítio web de “Dias Perfeitos”, filme teuto-japonês sobre o qual já escrevi nestas Ideias de Chirico. Sua página inicial promete mostrar “353 dias da vida de Hirayama não mostradas no filme”. Não é para tanto. Há, porém, outras informações relevantes: créditos completos, trilha sonora, entrevistas, dados sobre o estafe e referências de livros.

A visita acima de tudo vale a pena por ser uma obra prima de sítio. Muito caprichado mesmo. Esse é um tipo de material que satisfaz um pouco aquela necessidade de “extras” que vinham junto nos discos DVD, como cortes não incluídos no filme e faixa com comentários do diretor. Quem dera se essa moda de desenhar sítios web para filmes pegasse!

Como ter um banho mais sustentável? Essa é a pergunta levantada pelo ambientalista Kris de Decker em seu novo texto no blogue Low-Tech Magazine, “Communal Luxury: The Public Bathhouse”. Para pensar sobre o impacto ambiental desse costume ordinário e universal, Kris faz um levantamento histórico dos hábitos banhistas na Europa e na Ásia ― completamente em casas de banho público ― e qual a diferença de uso de recursos naturais dessa cultura em comparação com o atual e ubíquo costume do “banho privado”.

Recomendo a leitura. Kris escreve muito bem e é muito interessante ver como o hábito de tomar banho mudou com o tempo, e como, se quisermos ter uma vida sustentável, teremos de mudar drasticamente nossa cultura. Durante a leitura do texto também fiquei pensando na hipótese de nós brasileiros nos sentirmos extremamente vexados ao estarmos nus na frente de outras pessoas pelo fato de não termos tido uma cultura de banho público.

Isto é mais uma dica do que uma recomendação de sítio web. Sempre estranhei o fato de que no Instagram pelo computador você só consegue visualizar as postagens recomendadas pelo algoritmo. No aplicativo móvel pelo menos há uma opçãozinha escondida para ver a lista de favoritos (para ver publicações de perfis selecionados pelo usuário) e a lista de seguindo (para ver as últimas publicações em ordem cronológica). Na versão mobile nenhum desses feeds mostra propagandas e são menos viciantes, já que eles “têm fim”, digamos.

Durante esta semana, no entanto, eu soube que há, sim, um modo de acompanhar postagens recentes e a lista de favoritos pela versão desktop do Instagram, só que os desenvolvedores, claro, a fim de limitar os recursos dessa versão e forçar o usuário ao retorno da versão mobile, simplesmente ocultaram a droga dos botões. Bigtech sendo Bigtech, como sempre.

Na versão desktop, para você entrar na lista de favoritos, tem de pôr <?variant=favorites> depois de , e para entrar na lista das últimas postagens, tem de pôr <?variant=following> depois do mesmo domínio. Ficando assim:

https://www.instagram.com/?variant=following

https://www.instagram.com/?variant=favorites

Praticamente uma easter egg. Cada dia que passa mais eu desejo o fim do predomínio desta que é talvez a rede social mais mal feita da web 2.0. Deixo avisado que a experiência do Instagram por computador é muito mais positiva, já que é menos viciante (por ter mais espaço de tela), e por a gente ter a possibilidade de não ver propagandas. Neste último caso, recomendo a instalação da extensão Ublock, disponível para Mozilla Firefox e Google Chrome.

Que tal zapear por alguns canais do Youtube como se fosse por uma tevê analógica? Essa é a proposta de YTCH. Como a própria sigla acusa (Youtube Channel), a ideia do sítio é mostrar, à moda televisual, uma reprodução ininterrupta e aleatória de canais interessantes do Youtube.

Há separação por categorias como “ciência”, “documentário”, “comida” etc. Independente de qual seja a categoria, os vídeos sempre surpreendem pela qualidade. Sua edição em geral tem aquele quê de canais educativos que é bem relaxante… A sacada é genial e espero que inspire projetos para outras plataformas que necessitam urgentemente de uma curadoria humana de conteúdo, como o TikTok.

#cultura #tecnologia #notas #surfandoweb


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