Notas costuradas
Imagem: “Tintin en Amérique”, gibi belga de Hergé.
Vocês já sabem... Notas costuradas são um compêndio de escritos esparsos e recomendações, que não renderiam uma publicação independente. Alerta: nestas Notas, muita gente pelada.
Interlúdios
A melhor hora de todas é entre 16h e 18h aos finais de semana e feriados. Mor silêncio. E, quando há um ruído, é suave. Sem contar com a luz gentil do sol, igualmente suave. Não há trabalho, não há compromisso. O que deveria ser feito no dia, já foi feito. Aqui em Fortaleza em específico a essa hora há um vento agradável e não é tão quente quanto o restante do dia. Mor paz.
Futurismo Cassete
Gosto de como é o envio de feed RSS para o Kindle via calibre: plugo um cabo, se a hora da importação automática de feed estiver correta, começa-se a baixar a lista das publicações recentes. Quando baixada, é enviada automaticamente para o dispositivo. Depois basta ejetar o dispositivo e desplugar o cabo. É como uma experiência de Futurismo Cassete: todo o processo é tangível e confiável, ainda que digital. É o raro design de uma tecnologia como uma ferramenta ― responsiva e utilitária ―, não como brinquedo ― viciante e distrativo.
Seis horas da manhã
Todas as manhãs de quartas-feiras, saio bem cedinho para correr. É o sol brilhar, já estou de pé, quente para dar algumas voltas pela praça José Bonifácio, a duas quadras da minha casa.
Antes de correr propriamente, giro duas vezes em sentido anti-horário em torno do calçadão retangular que cerca a imponente construção do quartel-prisão cinza em estilo neoclássico da Polícia Militar de Fortaleza, em destaque na Praça. Faço-o de fones de ouvidos, a fim de não me distrair e me concentrar somente na corrida. E então é correr e correr...
Lá pelas tantas, logo após a primeira volta, vejo um vulto brotando em minha direção a dois metros da minha esquerda ― é o velhinho meu vizinho de quarteirão, que sempre me cumprimenta quando passo perto de sua casa. Infelizmente nunca temos tempo de conversar, já que, por azar, sempre estou em trânsito quando nos vemos.
― Olha ele, rapá! ― diz algo assim. E dá-lhe a correr atrás de mim.
Como eu não o ouvia bem, também não lhe respondi. Quando então ele tentara fisgar meu braço para me deter e talvez trocar uma palavra comigo, me esquivei. Afinal, eu tinha que seguir com a corrida no pouco tempo que me restava. Tudo isso aconteceu em não mais do que cinco segundos.
Fui rude, eu sei. Na outra volta, pensando em me redimir, ainda pensei em lhe acenar, mas já era tarde: sentado, virou o rosto enquanto eu passava e fez que não me via...
Já se dizia no Pequeno Príncipe: “Tornar-te-ás eternamente responsável por aquilo que cativas”. Mas o problema não é meu se o que cativo decidir ir atrás de mim enquanto corro cedo da manhã usando fones de ouvido.
Imagem: Arlene Gottfried, via Flashbak.
Resenhazinhas
A redenção da cinebiografia estadunidense?
Assisti ao “A Complete Unknown” (2024), cinebiografia de Bob Dylan, com atuação de Timothée Chalamet. Esse foi o primeiro filme a ter a apoio do cantor e o compositor estadunidense, que resiste a assistir a todo documentário ou cinebiografia a seu respeito.
“A Complete Unknown” cobre os primeiros anos da carreira de Bob Dylan, desde a sua chegada a uma Nova York sessentista a pleno vapor criativo, às margens do Maio de 68, passando pelas difíceis relações pessoais do jovem cantautor, tanto da sua vida profissional (artistas e gente grande da indústria fotográfica), como da sua vida romântica (com foco sobretudo na relação de Bob com Joan Baez).
Vale o destaque do esforço de Timothée de não utilizar nenhum recurso de melhoramento vocal como inteligência artificial ou playback, que o levou inclusive a ter aulas com coachs vocais.
Tenho a impressão de que a indústria cinematográfica estadunidense finalmente entendeu que cinebiografia é cinema, mas também biografia, o que se baseia em fatos, e não em sua romantização compulsória.
Após fiascos (em termos biográficos) como “Total Eclipse” (biografia de Arthur Rimbaud, com atuação de um jovem Leonardo Di Caprio), “Modigliani” (biografia do pintor moderno italiano Amadeo Modigliani) e “Searching for Fischer” (biografia do enxadrista mirim Joshua Waitzkin), parece que é o fim de toda uma era de filmes estadunidense que tentam transformar qualquer atividade humana em aventura (desde escrever um poema e jogar xadrez até pintar um quadro), e de tentar superdramatizar vidas, que na maioria das vezes, eram ordinárias.
Arterotismo
Imagem: “Little Ego”, de Vittorio Giardino.
Sem falsa hipocrisia, quantas peças de pornografia você conhece que se preocupam com a concepção do belo? Quantas tem em si emparelhadas metáforas psicanalíticas?
Em “Litle Ego”, quadrinho erótico do italiano Vittorio Giardino, tratam-se de surreais, curtos e pouco conexos sonhos sexuais de uma jovem mulher da qual pouco sabemos. Suas fantasias oníricas envolvem desde objetos do dia a dia, como guarda-chuvas e flores, dismorfia corporal, até animais e povos de outros continentes.
Há nessas breves sonhos o sexo simbolizado. O voo de um avião, pode ser tido como metáfora do orgasmo. Em certo episódio, transcende-se o mito de Narciso, quando a heroína, enquanto se olha no espelho, multiplica-se em 12 e faz sexo com várias de si mesma, em uma imensa auto-orgia.
Ao fim de cada episódio, a heroína onírico-erótica diz, quando acordada, que deve visitar o seu psicoterapeuta, aplicando uma pitada de humor às curtas narrativas. As cores de “Little Ego” são surpreendentes e o seu traço são de um amálgama entre cartazes pin-up e vitrais art nouveau, o que transforma cada quadrinho em uma peça visual suficiente por si só.
Uma onda de Bossa Nova na Europa?
E por falar em art nouveau, quero falar de Liana Flores, artista britânica, filha de mãe brasileira.
Tenho ouvido nos últimos dias “Flower of the Soul”, seu primeiro disco gravado em estúdio. Após o sucesso de “Rises the moon”, música viral no Tiktok, a conta cantora pôs a mão na massa em seu disco de estreia, de 2024. Aqui podemos ver um belo mosaico de folk, bolsa nova e jazz, bem envolucrados na linguagem musical das novas gerações.
Ao lado de Laufey, cantora finlandesa, Flores é talvez uma das mais representantes receptadoras das influências das primeiras raízes da bossa nova brasileira na música europeia contemporânea. De seu “Flower of the Soul”, recomendo as faixas “Orange-coloured day” (quase um “Take Six”, ao estilo de Dave Brubeck), “Nightvisions”, com um belo arranjo de acordes vocais e surpreendentes modulações tonais, e “Halfway Heart”, o melhor exemplar de bossa nova do disco, que faz lembrar vozes clássicas como a de Joyce Moreno e Gertrude Gilberto.
Uma leitura sobre uma leitura sobre uma leitura
Terminei na semana passada “Se una notte d'inverno un viaggiatore” de Italo Calvino, em texto original, em língua italiana. Nesta obra, o escritor italiano faz o que já seria previsto na história do romance moderno (desde “Ulysses”, de James Joyce), isto é, um romance sobre um romance. Ou melhor: um romance sobre romances. Ainda mais: um romance sobre o próprio ato de ler romances.
Em “Se una notte d'inverno un viaggiatore” lemos sobre o Leitor (isso mesmo, alguém identificado como Leitor). O grande diferencial deste livro ao meu ver está em estar em uma perspectiva em “POV” (point of view, ou seja, ponto de vista). Ela é narrada não em primeira, não em terceira, mas em segunda pessoa. Ou seja, é um narrador externo, que nos descreve o que estamos “vendo”, quase como se estivéssemos em um role playing game (RPG); o que quer dizer que nós, leitores, é que de certa forma somos a personagem principal de “Se una notte d'inverno un viaggiatore”.
Durante o romance, o Leitor inicia a leitura de “Se una notte d'inverno un viaggiatore”, um livro que ele não chega a concluir, por estar mal impresso. Em busca da devolução do livro, ele acaba por entrar em um vórtice de leituras laterais interrompidas, sempre acompanhado de Ludmilla, a Leitora pelo qual o Leitor se apaixona durante sua aventura literária.
Calvino leva a ideia de escrever um livro sobre livros a outro nível, apelando muitas vezes à incepção. Em certa altura, a narrativa passa a descrever um livro que não é lido pelo Leitor, mas que facilmente identificamos como o próprio “Se una notte d'inverno un viaggiatore”.
Há alguns pressupostos que não são atingidos nesse livro, no entanto. Uma delas é de haver pequenas histórias que tenham cada uma um estilo próprio, como Joyce mesmo faz em seu “Ulysses”. A não ser o fato de que as personagens tenham características e traços descritivos distintos, não se tem uma ideia muito forte de que os textos foram escritos por pessoas diferentes; o ritmo de leitura é muito parecido e o uso de palavras idem. A não ser quando surge a voz do narrador, não há uma grande diferença estilística.
Li esta obra em seu texto original, porque estou ainda tentando me familiarizar com a língua literária italiana. No entanto, não há nada que me faça estar convencido de que o texto em italiano oferece algo de diferente de uma tradução. A genialidade de Calvino está no experiência da leitura (pragmática), não na composição do texto (sintática), o que em geral nos leva a ler originais.
De certa forma, fiquei arrependido de ter lido em italiano, porque o bloqueio linguístico fez com que não houvesse tanta fluidez na leitura, exigida pelo texto calviniano.
“Flor do Lácio, sambódromo, Lusamérica, latim em pó”
Nesta semana, terminei a leitura de “Latim em pó: um passeio pela formação do nosso português”, escrito por Caetano Galindo e publicado no ano de 2023. Eu o começara a ler na semana anterior e devorei em sete dias completos.
Esse pequeno livro do linguista e tradutor natural de Curitiba procura falar, de maneira sucinta e com linguagem acessível, sobre o percurso da língua portuguesa até a atual variante brasileira. Além de conhecimentos de linguística, Galindo se vê obrigado a acionar também (muitas) informações de história e de antropologia.
Seu propósito é, sobretudo, desmistificar algumas crenças acerca da LP, entre as quais a de que ela é uma descendente direta do latim imperial, a de que sempre falamos português como língua primária no Brasil colônia e a de que os brasileiros “falamos português errado”. Ao contrário de seu parceiro sociolinguista Marcos Bagno, Galindo decide não tomar partido na discussão sobre a existência de uma língua “brasileira”.
Não sei se posso afirmar que Galindo cumpriu com o objetivo de escrever um livro introdutório sobre linguística, “para leigos”, já que mesmo eu, um veterano de Letras, encontrei muitas informações e curiosidades em torno de minha língua materna as quais não sabia ainda.
Não gosto da ideia de dizer que esse é um livro “para leigos” porque este é um livro muito bem escrito, com uma boa noção de ritmo e de como as palavras podem ser pronunciadas em uma leitura vocal; falar que esse é um livro “para leigos”, pois, seria implicar que livros “para especialistas” são duros, mal escritos e chatos ― o que não se cumpre na prática.
Outro acerto de Galindo ao escrever para o público geral sobre uma língua foi começar seu texto falando sobre um falante em potencial dessa mesma língua. Isso é benéfico para a compreensão de um público amplo por dois motivos: a) porque faz lembrar que as línguas são sobretudo as pessoas que a falam; e b) torna mais carnal e sensível tudo aquilo sobre o qual se falará no livro.
A história da implementação da língua portuguesa em nosso território é um drama,
adverte o autor em sua introdução. Podemos todos o confirmar durante a leitura deste inteligente e sensível livrinho que deve constar desde já nas leituras obrigatórias, não só de calouros de Letras, mas também de todos aqueles que se interessarem pela linguagem e realidade brasileiras.
Citações
O mundo está cada vez mais perigoso, está morrendo gente que nunca morreu antes
Para aqueles de nós que nunca herdarão dinheiro, terra ou imóveis, as pessoas que nos moldam são a nossa riqueza.
― Edna Bonhomme.
Confunda seus inimigos. Se nem você souber o que está fazendo, seus adversários com certeza não vão saber.
― @Ze_Andarilho@capivarinha.club
É aquela lei da natureza, né? No dia que você fala que vai cortar o cabelo ele se comporta. Por isso estou dizendo todo dia que vou cortar o cabelo e não vou, que é pra ele ficar esperto.
Se eleito transformarei os motéis em casas populares e as igrejas em escolas públicas.
“[Se] quer me fuder, me beija, porra!”
― @marte@bolha.one citando a consciência popular.
Linkroll
Em 2022, no aniversário de 15 anos desde o lançamento do primeiro iPhone, The Guardian perguntou a fotógrafos profissionais como (e se) eles usam o smartphone para tirar fotos.
• The iPhone at 15: pro photographers on how it changed their world (The Guardian)
Quadrinho falando sobre a resiliência do protocolo RSS, minha forma favorita de ler na internet.
• RSS is not dead yet (audra mcnamee)
Pedidos
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