Ideias de Chirico


cultura

Elizabeth Sparkle, protagonista de “A Substância”.

Com atraso, após sua premiação de Oscar de “melhor maquiagem e penteados”, assisti ao horror corporal “A Substância”.

O filme narra o declínio de Elizabeth Sparkle, uma ex-atriz premiada que, após ser demitida de um programa televisual de ginástica por ser “muito velha” (segundo seu produtor), aceita um método de rejuvenescimento do mercado ilegal.

O método consiste em injetar em si mesmo uma substância que faz gerar a partir do corpo do injetante uma versão mais jovem sua. Cada versão tem a consciência da pessoa “matriz” por uma semana, enquanto a outra fica inconsciente. Isso requer uma manutenção que, caso não seja feito regularmente por ambas as partes, faz com que uma delas se deteriore e envelheça prematuramente.

Mais do que uma crítica ao patriarcado, “A Substância” centra-se no problema do etarismo. O patriarcado é um mal estrutural antigo, e há peças mais ilustrativas sobre esse tema do que esse filme. Porém, para a nossa sociedade de desempenho (em termos do filósofo coreano-alemão Byung-Chul Han), envelhecer é um problema, pois os mais velhos não produzem nem dão lucro.

Criticá-lo frontalmente é o ponto mais brilhante e sensível deste longa-metragem. Elizabeth mesma deixou de ser lucrativa para o produtor a partir do momento em que envelheceu e ficou menos “televisível”. Foi então descartada do estafe sem grandes cerimônias, malgrado a sua longa carreira.

A velhice nunca esteve tão distante da beleza e do bem-estar como agora. No ano de 2025, quer-se sempre jovem e potente, seja por aparência, seja por “essência”. E, ironicamente, com menor taxa de nascimento, menor poder de compra e maior desigualdade entre as classes, estamos nos encaminhando para uma sociedade mais velha e sem suporte aos mais idosos.

Os momentos mais marcantes do filme premiado são de Sue “discutindo” com Elizabeth, a chegar até o paroxismo daquela surrar esta. Isso representa tanto a nossa relação com nossos eus futuros, que desprezamos, quanto a relação dos mais jovens com os mais velhos. Mesmo.

Sue, a versão mais jovem de Sparkle.

O “SAC” da “Substância” rejuvenescedora, quando contatada, com frequência diz que “Vocês são uma só”. Mas como uma versão pode fazer mal à outra se ambas fazem parte de uma mesma consciência? Aí reside a genialidade do filme. Conforme as semanas avançam e uma versão adquire mais prestígio do que a outra, cada qual passa a agir displicentemente, sem considerar versão da semana seguinte, a ponto de cada uma adquirir consciência autônoma e até a criar rivalidade entre si. Nas cenas finais do filme, Sue fala em entrevistas de Elizabeth como se essa fosse outra pessoa.

Isso nos faz refletir sobre a relação entre a responsabilidade e a juventude. O senso comum associa a juventude à inconsequência, porque “essa é a sua natureza”, já que “não tem o cérebro totalmente formado” etc. Sue nada mais é do que uma mulher de 50 anos em um corpo de 30. Ainda assim, ela é inconsequente. O que poderia justificar essa postura?

Poder.

E poder no sentido mais concreto de todos: “poder-fazer”. Há gente que com muita frequência desejaria “voltar no tempo com a cabeça que tem hoje”. Mas o poder-fazer cega. Quem garante que se voltássemos no tempo faríamos diferente? Quem garante que não cairíamos na sedutora delícia do erro? Há vezes em que erramos, não porque somos imaturos, mas porque sabemos que aquele é um erro sem a possibilidade de ser repetido...

O longa-metragem apresenta duas falhas notáveis: a falta de aprofundamento nas personagens e de coadunação estética.

Passamos duas horas assistindo a uma mulher que já foi uma Oscar-premiada e não sabemos sequer como foi sua vida de atriz e como sucumbiu à programação barata de televisão, ou por que ela vive sozinha etc. Além de tudo, reduzir uma personagem feminina à sua aparência e sua vida profissional é danoso mesmo em um filme que procura criticar a objetificação feminina.

Outra coisa esquisita é a confusão estética. O cenário e o hábito é todo oitentista, vistos na vestimenta, no uso do jornal e do telefone fixo com fio. Só que a trilha sonora é moderna, e volta e meia damos de cara com telefones celulares e televisões de plasma.

Por outro lado, quando se justapõem cenários, hábitos e tecnologias antigos e modernos, é como se se delineasse uma identificação entre a época atual à sua antecessora. Forma-se daí a ideia de que, nos aspectos apontados pelo filme (patriarcado e etarismo), não evoluímos como sociedade.

No mais, achei o longa-metragem bem próximo do gênero de ficção científica, e me fez refletir sobre o papel da ciência na busca compulsória pela juventude e, por consequência, na pressão social pela conservação da aparência. Por isso, “A Substância” entra para a lista de filmes que poderiam muito bem ser um episódio de Black Mirror.

(Até porque, dado o seu baixo desenvolvimento de personagens e seu trabalho pobre em fotografia ― sobretudo baseado em closes ―, mais parece um episódio de série do que um filme).

#cultura


CC BY-NC 4.0Ideias de ChiricoComente isto via e-mailInscreva-se na newsletter


Estava pensando no final de “Manhattan” (1979), de Woody Allen.

Sempre que penso em cinema clássico, é a cena final de “Manhattan” que me vem à cabeça. Posso não ter visto suficientes filmes, mas sinto que é como se Woody Allen tivesse criado com essa sequência o paradigma de final de filme romântico.

É magistral a montagem inteira do filme; a sincronia entre música e fotografia; sem falar dos diálogos, que têm um taime e um ritmo maravilhosos.

Infelizmente Allen nunca conseguiu repetir o que fez em “Manhattan”. “Manhattan” é o paroxismo alleniano. Não há outro filme como “Manhattan”.

#notas #cultura


CC BY-NC 4.0Ideias de ChiricoComente isto via e-mailInscreva-se na newsletter


Um dos grandes diferenciais da música em relação a outras linguagens é de ela ser um “signo puro” ― ou algo perto disso. Com isso quero dizer: a música, algumas vezes, não faz referência outra que não a ela mesma. Daí que temos essa vastidão de canções e peças musicais que são verdadeiras paisagens, que não são outra coisa senão elas mesmas. Não é como a arte da palavra que, mesmo em estado de poesia, necessita de um referencial no mundo para se legitimar.

Pensando nessa ausência de referencial, eis então a sensação que eu tinha ao ouvir o disco “Ao som dos planetas” (2015), o primeiro de Alberto Continentino: a de estar em uma sala clara, ou algum outro ambiente limpo, que se movimenta.

Esta, porém, não era uma sensação aleatória. Explico.

Na capa do disco, vemos Alberto Continentino, que faz os baixos elétrico e erudito e as composições; à sua direita, Vivian Muller, sua esposa, que faz os vocais, acompanhando ou acompanhada de Alberto; abaixo deles, uma curva de pele arrepiada; e, ao fundo de tudo, o breu do espaço sideral.

Em um primeiro momento, poderíamos pensar neste “planeta” arrepiado como a representação de êxtase causado pelo disco. Mas não. Alberto e Vivian, que durante o processo de gravação esperavam o nascimento de um filha, decidiram estampar a barriga de grávida na capa.

Sabendo desse fato, podemos agora pensar que os “planetas” do disco não são só as do espaço sideral, mas também as do espaço uterino... Antes eu falara que esse álbum me causa a sensação de estar em um espaço limpo que se move. Qual o único espaço esterilizado no mundo que está naturalmente em movimento? O útero!

Um dos motivos pelos quais o disco debutante de Continentino nos dá a sensação de se estar em um espaço sideruterino é a constante alternância de gêneros musicais, que ocorre de uma faixa à outra. Alberto fez sua carreira como baixista, e já colaborou com nomes como Marcos Valle, João Donato, Adriana Calcanhotto, Edu Lobo e Milton Nascimento.

Podemos ver toda essa versatilidade da carreira de Continentino enquanto somos levados por um jazz brincante como o de “Tic Tac”, pela bossa nova de “Tudo” e “Náufrago” e pelo soft rock de “Sessão da Tarde” e “Summer's Day” ― tudo isso involucrado em extrovertidos instrumentos musicais que giram e giram, como naves espaçomusicais.

Ouvimos em “Tic Tac” os vibrafones que, junto aos metais de sopro e essa espécie de “dueto” de guitarras (que, graças ao excelente trabalho de ambientação binaural do disco, rodam em nossos ouvidos), e dão um teor, mais do que bem humorado, humorístico a uma canção que fala de amor.

A mesma impressão de ambiguidade e ironia é deixada por “Double Dip”, que inicia como um tenso quarteto de guitarra, baixo, vibrafone e bateria vassourada que, a princípio, daria uma ótima trilha sonora de um filme policial, quando, apenas o trompete é chegado ao coro, o passo astuto do detetive torna-se um caminhar de pato. Nesta faixa, ainda vale notar o brilhante protagonismo do contrabaixo, mesmo quando em posição de cama harmônica ou contraponto.

Quando não há o famoso “papapá” a fim de fazer a vontade de cantar cobrir a falta de letra, como dito pelo próprio compositor em entrevista à Globo, as letras são de uma delicadeza irreconhecível ao lado da fanfarra de outras músicas. A introdução de “Sistema de Som”, por exemplo, tem uma cadência de fazer inveja ao maior dos trovadores:

Mesmo sem ter uma direção,

Não podemos parar...

Agora, não.

O disco debutante de Alberto Continentino foi capaz de unir opostos e contradições, em uma postura que, além de versátil, é contemporânea, conseguindo pôr lado a lado o amor e o humor, a seriedade e a ironia, o velho e o novo, a dança e a quietude, podendo causar no ouvinte efeitos de hipnose, introspecção ou extrema atenção. Um disco que vale a escuta e uma homenagem em 2025, quando o seu lançamento completará 10 anos.

#cultura


CC BY-NC 4.0Ideias de ChiricoComente isto via e-mailInscreva-se na newsletter


Imagem de vários pixels soltos formando duas mãos escrevendo sobre uma máquina de escrever

Imagem: Serenity Strull/BBC/Getty Images.

Reportagens dos últimos dois anos:

Os “telefones burros” voltaram? (vídeo da CNBC, março de 2023).

Porque as câmeras digitais estão retornando (vídeo da TODAY, fevereiro de 2023).

As fitas cassete voltaram, o dilema é encontrar um toca-fitas. (matéria da New York Times, outubro de 2024)

Por que as máquinas de escrever estão tendo um renascimento na era digital (vídeo da PBS NewsHour, outubro de 2024).

Uma tiktoker de 23 anos faz vídeos sobre como e porquê voltou à mídia impressa (artigo da Slate, setembro de 2023).

Graças a entusiastas do minidisc, é possível adicionar músicas do seu smartphone em um tocador de minidisc (matéria da The Verge, outubro de 2024).

Por que tem se falado tão pouco desse súbito renascimento de várias tecnologias de comunicação antigas? De um lado uma indústria gastando rios de dinheiro na promoção das realidades virtual e aumentada, na streaminguização e na bluetoothização das coisas, e, é claro, na inteligência artificial; de outro, a nova geração reciclando aqui e ali várias tecnologias analógicas, como a máquina de escrever, ou tecnologias eletrônicas “ultrapassadas”, como a câmera digital ou mesmo como os blogues, que participam do movimento da chamada Web Revival, da qual estas Ideias de Chirico fazem parte. Tolice pensar que isso é moda de gente saudosista e ludista...

Essa não parece ser simplesmente uma onda sazonal e gratuita, concentrada em estética. Não é também como a moda hipster dos anos 2010, entusiasta sobretudo do vinil e da máquina de escrever ― eventualmente da fita cassete, como em 2016. Essa nova onda revivalista investe em muito mais tecnologias. Não é organizada em um movimento, mas dela pode se apontar um recorte geracional, nacional e de classe ― gente do norte global, de classe média, com idades em torno de 25 a 35 anos.

Há uma ímpar, crescente e geral insatisfação pelas tecnologias digitais ― seja por conta da bostificação, seja por conta do lock in, seja por conta da economia de atenção. O que esse pequeno movimento (mesmo que nichado) diz a respeito do Vale do Silício? O que posso dizer é que, definitivamente, o analógico é o novo hi-tech. E o offline é o novo online. Não é por outra razão que o filme “Dias Perfeitos” fez sucesso com o público abaixo de 30 anos... Eis aí todo um mundo ocultado pela digitalização compulsiva da vida. “O futuro do futuro é o presente”, já dizia o midiólogo Marshall McLuhan ― o que implica em dizer que o futuro do presente é o passado. Enquanto uma nova tecnologia for ofertada, não como ferramenta, mas imposta como meio de exclusão social (tal como o carro), o analógico seguirá como vanguarda.

#cultura #tecnologia #notas


CC BY-NC 4.0Ideias de ChiricoComente isto via e-mailInscreva-se na newsletter


Imagem de uma teia de aranha molhada por orvalho

Alguns dos linques mais interessantes que encontrei durante o mês de setembro, com alguma reflexão que eles me trouxeram... Para quem não fala o idioma inglês, infelizmente eles não servirão de muita coisa.

Rewind Museum, uma “Wikipédia” de eletrônicos domésticos antigos ― de rádio à fita cassete, dos primeiros microcomputadores ao gramofone, de televisões analógicas aos videogames. É legal para mostrar para o Enzo que não tem ideia de como as coisas eram antes do esmartefone.

Lista de fotografias consideradas as mais importantes. Autoexplicativo. De vez em quando me pego vendo esta lista e acho uma das coisas mais fascinantes da Wiki.

Sítio web de “Dias Perfeitos”, filme teuto-japonês sobre o qual já escrevi nestas Ideias de Chirico. Sua página inicial promete mostrar “353 dias da vida de Hirayama não mostradas no filme”. Não é para tanto. Há, porém, outras informações relevantes: créditos completos, trilha sonora, entrevistas, dados sobre o estafe e referências de livros.

A visita acima de tudo vale a pena por ser uma obra prima de sítio. Muito caprichado mesmo. Esse é um tipo de material que satisfaz um pouco aquela necessidade de “extras” que vinham junto nos discos DVD, como cortes não incluídos no filme e faixa com comentários do diretor. Quem dera se essa moda de desenhar sítios web para filmes pegasse!

Como ter um banho mais sustentável? Essa é a pergunta levantada pelo ambientalista Kris de Decker em seu novo texto no blogue Low-Tech Magazine, “Communal Luxury: The Public Bathhouse”. Para pensar sobre o impacto ambiental desse costume ordinário e universal, Kris faz um levantamento histórico dos hábitos banhistas na Europa e na Ásia ― completamente em casas de banho público ― e qual a diferença de uso de recursos naturais dessa cultura em comparação com o atual e ubíquo costume do “banho privado”.

Recomendo a leitura. Kris escreve muito bem e é muito interessante ver como o hábito de tomar banho mudou com o tempo, e como, se quisermos ter uma vida sustentável, teremos de mudar drasticamente nossa cultura. Durante a leitura do texto também fiquei pensando na hipótese de nós brasileiros nos sentirmos extremamente vexados ao estarmos nus na frente de outras pessoas pelo fato de não termos tido uma cultura de banho público.

Isto é mais uma dica do que uma recomendação de sítio web. Sempre estranhei o fato de que no Instagram pelo computador você só consegue visualizar as postagens recomendadas pelo algoritmo. No aplicativo móvel pelo menos há uma opçãozinha escondida para ver a lista de favoritos (para ver publicações de perfis selecionados pelo usuário) e a lista de seguindo (para ver as últimas publicações em ordem cronológica). Na versão mobile nenhum desses feeds mostra propagandas e são menos viciantes, já que eles “têm fim”, digamos.

Durante esta semana, no entanto, eu soube que há, sim, um modo de acompanhar postagens recentes e a lista de favoritos pela versão desktop do Instagram, só que os desenvolvedores, claro, a fim de limitar os recursos dessa versão e forçar o usuário ao retorno da versão mobile, simplesmente ocultaram a droga dos botões. Bigtech sendo Bigtech, como sempre.

Na versão desktop, para você entrar na lista de favoritos, tem de pôr <?variant=favorites> depois de , e para entrar na lista das últimas postagens, tem de pôr <?variant=following> depois do mesmo domínio. Ficando assim:

https://www.instagram.com/?variant=following

https://www.instagram.com/?variant=favorites

Praticamente uma easter egg. Cada dia que passa mais eu desejo o fim do predomínio desta que é talvez a rede social mais mal feita da web 2.0. Deixo avisado que a experiência do Instagram por computador é muito mais positiva, já que é menos viciante (por ter mais espaço de tela), e por a gente ter a possibilidade de não ver propagandas. Neste último caso, recomendo a instalação da extensão Ublock, disponível para Mozilla Firefox e Google Chrome.

Que tal zapear por alguns canais do Youtube como se fosse por uma tevê analógica? Essa é a proposta de YTCH. Como a própria sigla acusa (Youtube Channel), a ideia do sítio é mostrar, à moda televisual, uma reprodução ininterrupta e aleatória de canais interessantes do Youtube.

Há separação por categorias como “ciência”, “documentário”, “comida” etc. Independente de qual seja a categoria, os vídeos sempre surpreendem pela qualidade. Sua edição em geral tem aquele quê de canais educativos que é bem relaxante… A sacada é genial e espero que inspire projetos para outras plataformas que necessitam urgentemente de uma curadoria humana de conteúdo, como o TikTok.

#cultura #tecnologia #notas #surfandoweb


CC BY-NC 4.0Ideias de ChiricoComente isto via e-mailInscreva-se na newsletter


Reflexões sobre a escuridão na cultura ocidental

Imagem de sombras de folhas de árvores no chão.

Imagem: quadro final de “Dias Perfeitos” (2023). Por que nos negamos às sombras?

Quando chego em casa pela noite, não acendo as luzes. Não. Limito-me a cruzar a sala tateando com o olhar. Tem sido assim desde que notei uma sensibilidade à luz ― tenho astigmatismo. Quando a percebi, tratei logo de evitar luzes fortes. Tudo quanto faço, se possível, faço sem luz: me agrada tomar banho com a luz que vem de fora do banheiro, faço as refeições noturnas em penumbra, às vezes até me preparo no escuro para sair...

Mas isso não é tudo ― passei também a ver beleza na escuridão. É bela a vida escura! E o estranho é o quanto se demora para o perceber. Vivendo a maior parte do tempo com uma forte luz sobre nós, não nos atemos ao fato de que as sombras também possuem seu encanto, que não podem ser vistas somente como um mero realçador da luz, mas também como elemento que circunscreve sua própria beleza.

Além do fato de eu ter sentido sensibilidade à luz, um ensaio me foi essencial para compreender o belo possível da penumbra: “Em louvor da sombra”, de Junichiro Tanizaki. Em um Japão tradicional do século XX ameaçado pela luz elétrica, intelectuais como Tanizaki buscaram registrar a apreciação pelas sombras ― ou, se possível, resgatá-las.

“Em louvor da sombra” é a descrição mais genuína possível do contraste entre as sombras dos espaços internos tradicionais do Japão e a luz ofuscante da era moderna, vinda da Europa ― luz que, ironicamente, marca muito mais o Japão contemporâneo do que a sombra.

Se por um lado esse ensaio de Tanizaki a respeito do impacto da luz elétrica sobre a arquitetura, a moda e a culinária japoneses soa conservador, por outro nos faz refletir o quanto de sensibilidade é perdida a cada nova invenção que envolva os sentidos mais imediatos do ser humano ― como a visão noturna ante a luz artificial.

Mais de uma vez, tentei mostrar neste blogue a minha afeição pelas coisas de baixa definição, como quando escrevi sobre o longa-metragem “Dias Perfeitos”. Falo de “baixa definição” em termos de Marshall McLuhan, falo das coisas que não estão dadas, que nos pedem para “ligar os pontinhos”, que requerem a nossa participação para a sua plenitude.

Poemas, fotografias em baixa definição, memes shitpost, música lo-fi, quadrinhos, vídeo-chamadas, palavras polissêmicas, al-guém que... FAla... meiotipoassinsabe?: esses são signos que não nos vêm “empacotados” ― participamos de sua “linha de montagem”.

As sombras possibilitam essa experiência de baixa definição. Um momento em penumbra é uma fuga desta nossa vida de consumo que ansia pela alta definição: a iluminação intensa dos supermercados, as superfícies lisas de ambientes públicos, o signo fácil das propagandas. Afinal: baixa definição = baixo estímulo; logo, alta definição = alto estímulo.

As coisas, em estado penumbral, podem ser quaisquer outras. Uma cadeira com roupas por dobrar pode ser uma poltrona; um cisco no assoalho do banheiro pode ser uma barata ou um naco de sabonete; todos os talheres na gaveta da cozinha, quando escura, são iguaizinhos. Nas sombras, devemos estar atentos, devemos nos preparar para tudo...

A sombra também é atraente em sua qualidade simbólica. Textos “sombreados”, obtusos, são aqueles que não se definem de cara, que convidam o leitor a uma coautoria, que ampliam o branco de sua página esperando ser terminada. É o texto de um Mikhail Bakhtin, deste já citado Marshall McLuhan, de um Machado de Assis, da maioria dos poetas, sobretudo os modernos.

A sensualidade mesmo está diretamente relacionada às sombras. Pensemos nas danças de strip tease ― são feitas à contraluz. Esses mesmos movimentos, se feitos em sol-a-pino, seriam de um humor vulgar e, em lugar de provocar, trariam uma irresistível vergonha alheia.

Esquisito é a campanha milenar dentro da cultura ocidental (ou ocidentalizada) contra as sombras. Nos filmes de terror, os piores monstros saem da escuridão; as rodas de contação de histórias macabras são feitas em torno de uma fogueira ou de um foco de luz, que faz os ouvintes evitarem olhar o seu entorno sombreado; as áreas de sombras nas casas são aquelas mais temidas pelas crianças, cujos pais, por nada neste mundo, não as ensinam a se sentir confortáveis no escuro.

Certo, há uma razão envolvendo a segurança das crianças que faz com que esses mesmos pais ensinem-nas a evitar os espaços assombrados. No entanto, esse medo é levado à vida adulta em forma de aversão. Saídos da infância, nunca mais nos arriscamos a ver as sombras com a atenção que damos à luz.

É compreensível que o homem rupestre, em um ambiente imprevisível, evitasse o escuro. Este era o lugar dos animais selvagens ou pençonhentos, era o lugar do mistério natural. Mas por que o homem moderno, com casa, energia e alimentação armazenada ainda segue com essa oposição ao escuro?

Essa aversão ao escuro é também encontrada no campo da linguagem figurativa. Quando passamos por um momento de dificuldade, dizemos que “procuramos ver a luz no fim do túnel”. Uma pessoa instruída é uma pessoa “esclarescida”. Qual a expressão afirmativa análoga à “Com certeza”? “É claro”! Quando temos dúvida sobre algo, buscamos alguém para “nos esclarescer”. A que está relacionado o Deus cristão? À “luz eterna”...

Não defendo que se evite toda a tecnologia eletrônica que nos ilumina e nos circunda. Não. Creio que devemos emular em nossas vidas o equilíbrio de uma floresta ensolarada. É impossível não se encantar com os feixes de luz que atravessam suas folhas. As sombras destacam a poeira iluminada pela luz solar. O sol não nos é tão quente em uma sombra arborizada, e é nessa mesma sombra que se desenha o movimento das árvores... Isso é komorebi!

“Komorebi” (木漏れ日) é a palavra japonesa para designar a dança entre a luz e as sombras, criada pelas folhas das árvores balançadas ao vento ― isso só existe uma vez, no momento em que é percebida. Apreciar tanto as sombras quanto as luzes nos educa também a viver o aqui-agora sem a perturbação constante do ali-depois. É na apreciação da impermanência, acredito, que reside a felicidade.

#cultura #tecnologia


CC BY-NC 4.0Ideias de ChiricoComente isto via e-mailInscreva-se na newsletter


Imagem de Yui Kamiji, uma mulher amarela cadeirante, usando boné branco e camisa vermelha, fazendo um lance de tênis com uma raquete em mãos.

Imagem: Yui Kamiji, tenista japonesa, jogando durante os Jogos Paralímpicos (ou Paraolímpicos?).

Você sabe porque falamos “paralimpíadas” e não “paraolimpíadas” ou, o que seria mais natural, “parolimpíadas”?

Para responder essa questão, não é necessário nenhuma explicação gramatical mirabolante.

Segundo o Pasquale Cipro Neto, no programa “A nossa língua de todo dia” da Rádio CBN da semana passada¹, o Comitê Paralímpico Internacional (sediado nos EUA) “pediu” que todas as variantes vocabulares das línguas de países envolvidos com esses jogos seguissem o padrão anglófono “paralympic”. Fim. É isso. Essa é a razão pela qual falamos “paralimpíadas”.

A maior representação de colonialismo foi, segue sendo e será expressa pela língua de um povo.


¹: Ouça o episódio através deste linque. Para saber mais das discussões a respeito desse termo, leia este artigo do sítio Ciberdúvidas.

#cultura #notas


CC BY-NC 4.0Ideias de ChiricoComente isto via e-mailInscreva-se na newsletter


Hirayama e Niko, personagens de “Dias Perfeitos”, respectivamente interpretadas por Koji Yakusho e Arisa Nakano.

Quando criança, durante um longo carnaval em casa, assisti diversas vezes ao “Garfield” (2004). Sentado no chão da sala, me encantava com seu brilho, sua cor, seu movimento (a história era um detalhe). Meus parentes, cansados de ver e ouvir a animação em lupe, imploravam para que eu largasse a televisão. Mas, apenas subiam os créditos finais, lá estava eu outra vezes tocando o “play”. Rodei aquele disco no aparelho de DVD como um pião na mão.

Raras foram as vezes que, depois da infância, voltei mais de uma vez a um filme. Um longa-metragem, entretanto, tem recuperado aquele encanto que eu tinha diante da tela, me fazendo retornar a ele diversas vezes. Falo de “Dias Perfeitos” (2023), um drama dirigido pelo alemão Wim Wenders.

“Dias perfeitos” mostra a rotina de um zelador de banheiros de Tóquio chamado Hirayama. Hirayama é um profissional dedicado: cumpre suas horas com natural pontualidade (não usa sequer despertador), tem seu próprio material de limpeza, e, em horário comercial, não se comunica com ninguém sobre outra coisa que não envolva o trabalho.

Duas coisas marcam Hirayama: ele é um introvertido homem de terceira idade, solteiro, e mora sozinho; e seu grande afeto pelas tecnologias analógicas ― ouve música em fita cassete enquanto vai ao trabalho, fotografa com sua câmera analógica durante o horário de almoço e religiosamente lê romances antes de dormir.

No entanto, Hirayama não toma seu ofício como sua vida: nas horas livres, encontra-se com amigos em bares, pedala por diversão, vai à livraria com frequência (é até tido por “intelectual” pela garçonete do seu bar favorito) e mostra gosto por jardinagem.

Hirayama mostra-se satisfeito com seus dias equilibrados, até que um dia tem de receber sua sobrinha Niko (filha de uma irmã com a qual há muito não fala), que inesperadamente aparece em sua casa (precisa de abrigo ― fugiu da mãe).

Temos aí o mais belo culto à simplicidade e à rotina dos últimos tempos, com uma personagem que leva uma invejável vida idílica e minimalista ― parafraseando as palavras do blogue sol2070 em resenha sobre o filme ―, personagem que toma corpo através de um ator que torna fresco cada gesto ordinário, capaz de nos mostrar a ação diária como o movimento de uma dança silenciosa e sem fim.

Mas, para além disso, “Dias Perfeitos” me encanta por seu mistério. Claro, não possui as cores e os movimentos de “Garfield” (é um filme, na maior parte do tempo, escuro), mas tem bastantes e deliciosas lacunas; mesmo tendo duas horas de duração, sabemos muito pouco sobre o protagonista¹.

Não temos reminiscências de Hirayama, e não sabemos sequer quais são seus pensamentos ― apenas seus sonhos, que envolvem sombras (um signo chave para o longa). As poucas informações que temos são pequenos detalhes, mostrados a conta-gotas através de outras personagens ― nem tão próximas do protagonista, ainda por cima.

“Dias Perfeitos” nos convida a uma profunda e constante participação. Já que o longa-metragem não nos vem como um objeto completo, somos impelidos a montá-lo, como se fosse um mosaico de pequenas e brilhantes pedrinhas. Cada gesto, cada figurante e cada objeto de “Dias Perfeitos”, paulatinamente percebidos a cada visita, interferem no enredo, o que o torna um filme novo a cada nova visita.

Sua natureza de baixa definição lembra-me outro longa-metragem, também japonês, chamado “Mind Game” (2004) ― um misto de “Pinóquio” e “Yellow Submarine”. Em filmes assim, só podemos especular, estipular alguma protointerpretação. Hirayama viria de uma família abastada?, tornou-se zelador por vontade própria ou passou por algum momento de necessidade?, desejou um romance impossível com a garçonete, o que o fez voltar a experimentar cigarros e bebidas?

Só nos resta revisitar o longa-metragem teuto-japonês mais uma vez logo após lhe assistimos ― como fazíamos quando éramos crianças ―, quem sabe dessa vez nos apareça algum dado que “ilumine” suas belas sombras?


¹: (post scriptum, 17 de setembro de 2024) recentemente descobri que o longametragem tem um websítio próprio onde nos são apresentados “353 dias da vida de Hirayama não mostradas no filme”. Não o visitei por completo, mas, além de fornecer informações que podem preencher esses vazios dos quais comentei, tem também dados sobre os atores e outras curiosidades. Vale a visita: https://www.perfectdays-movie.jp/en/

Esta publicação foi mencionada nos textos “A sedução pelas sombras” e “O futuro do futuro é o presente” destas Ideias de Chirico.

#cultura


CC BY-NC 4.0Ideias de ChiricoComente isto via e-mailInscreva-se na newsletter


Imagem: série “Marilyn Monroe”, de Andy Warhol. Com o fim da hegemonia dos veículos de massas na comunicação social, todo anônimo tornou-se uma celebridade em potencial e toda “celebridade” tornou-se um anônimo em potencial.

Você desbloqueia seu telefone. Toca em qualquer rede social. Qual é a primeira pessoa que vê? Um artista internacionalmente conhecido, um político regionalmente relevante, ou um empresário do ramo tecnológico? Não. Grande chance há de que seja o amigo de infância que há muito não vê relatando que “O de hoje está pago”, o seu colega de trabalho com o qual fala pouco compartilhando fotos e fatos do último rolê, uma crush da qual você já perdeu o interesse publicando um “tbt” ― em outras palavras: gente anônima.

Permaneça nesta mesma rede social. Role um pouco. Se tiver alguma aba de vídeos curtos com curadoria algorítmica, role ainda mais. Se não for gente anônima, um artista do qual nem você e nem o seu colega de apartamento ouviram falar ― um anônimo. Se não for um artista do qual não se sabe, uma influenciadora de um assunto que o algoritmo jurou que seria do seu interesse ― uma anônima. Se não for uma influenciadora, alguma criança ou senhora engraçada “trendando” ― anônimos, anônimos, anônimos.

Os “quinze minutos de fama” preconizados por Andy Warhol saturaram-se. Agora que todos são famosos, ninguém é conhecido. Pense em duas bandas da atualidade que seja do seu gosto. Agora pergunte ao seu pai, ao seu melhor amigo ou amiga, ao seu colega menos íntimo e a qualquer pedestre avulso que passa em frente a sua casa se eles conhecem essas bandas. Se todos as conhecerem, há uma enorme probabilidade de serem bandas locais ou ligadas ao seu círculo ― ou de serem eles próprios a banda.

A recíproca será verdadeira se pescarmos de uma tela de outdoor ou indoor mais próxima e experimentarmos o inverso, procurarmos algum nome conhecido ― e esta será uma tentativa frustrante.

O fato é que as pessoas desconhecidas, aquelas as quais nunca vimos ― e as quais nunca mais veremos outra vez ―, tomaram o palco das celebridades. Isso porque o palco, que era a televisão e o cinema, mudou de lugar. Os Instagrams, os Tiktoks, os Kwais tornaram-se ubíquos. Neles, as pessoas incógnitas ― os seus próprios usuários ― aparecem mais do que as figuras pop sobre a qual outrora ouvíamos em todos os lugares.

Os veículos de massa, que foram o céu ao qual todos assistiam, perderam a predominância no campo das mídias. Se antes todos olhavam para cima, vendo as “estrelas” e as “celebridades” como figuras distantes, graças à invenção do algoritmo e do feed infinito de publicações, agora todos se cruzam e se olham, como se estivessem em uma movimentada rua do centro da cidade.

O antropólogo Michel Alcoforado em conversa no podcast “Boa Noite, Internet” define o espaço neoliberal como aquele onde tudo ocorre concentradamente ao mesmo tempo e em um só lugar: assim é o shopping, assim é a rede social, assim é um player de vídeos curtos.

Tudo, aqui e agora. Todas as pessoas em todos os lugares ao mesmo tempo. Assim é viver no auge da era da eletricidade. Por conta desse fenômeno, há um estado de “atonalidade” de capital social entre as pessoas: a depender do perfil de um usuário de uma rede social algoritmizada, um influenciador do interior do Ceará pode aparecer tanto quanto Elon Musk no seu feed; e a depender do perfil de outro usuário nas mesmas condições socio-econômicas que o primeiro, essas duas figuras podem lhe não ser mais do que estranhas.

Prevejo contudo que em um futuro breve não haverá mais fama, porque não haverá mais veículos de massas. Como ser famoso à velocidade da luz? Como ser famoso para um público que não tem tempo suficiente de reconhecer o seu rosto? Como ser famoso para um público que não teve sequer a chance de o conhecer graças ao seu isolamento algorítmico?

Pode ser que em breve, não haverá mais figuras pop. Apenas comunidades e nichos. Esses círculos circunscreverão no máximo 150 membros, como defende o número de Dunbar. Assim como a maioria dos cientistas só é conhecido dentro da comunidade acadêmica, amanhã pode ser que haja brilhantes figuras dos mais diversos campos da cultura com públicos “ínfimos” para os padrões atuais. E pode ser que nunca mais conheçamos outros Elvis, outros Marleys, outras Monroes, outros Jacksons, outras Madonnas. Todos serão anonimamente conhecidos e todas as esquinas serão tapetes vermelhos.

#cultura #tecnologia


CC BY-NC 4.0Ideias de ChiricoComente isto via e-mailInscreva-se na newsletter


Ainda que a cultura de um modo geral esteja em baixa, aquém do ramo da tecnologia em termos de inovação, vez ou outra encontramos algo de fresco em produções das últimas duas décadas.

Em certa manhã de 2022, enquanto eu ia ao trabalho, pela Rádio Universitária de Fortaleza ouvi a jazzista Léa Freire pela primeira vez. O ônibus deslizava sobre um viaduto, a deixar que um sol limpo de nuvens, atravessando edifícios, lá dentro entrasse. Esta é a cena a qual associo o seu “Brincando com Théo”, e que, ao meu ver, melhor o representa.

Mais tarde, pesquisei no Youtube a composição original (para piano solo). Ao azar, tombei com uma versão à voz e piano de Tatiana Parra e Andrés Beeuwsaert no disco “Aqui”, de 2011 ― assista ao seu trailer.

Desde que o conheci, me derreto a cada escuta. Só consigo pensar em beleza ao o ouvir. Andrés, um João Gilberto do piano, bate seu instrumento, mas gom um togue gendil, como se seus martelos fossem espumas. Já Tatiana, em seu canto, ainda que sem texto, fala. Mas fala como o pássaro fala. Farfala.

Os arranjos são simples: vez ou outra aparecem flauta (que Léa Freire toca), violoncelo ou violão ― cada um por vez. A voz e o piano predominam como intrumentos, valem, porém, por vários ― às vezes o piano arrebenta feito bateria ou, sus, suspira como uma segunda voz.

Como o primeiro disco de Rodrigo Campos sobre o qual escrevi, “Aqui” é feito para o movimento, para as gentes, para as cidades. Nas suas interpretações, de tons maiores ― abertas tal sóis ―, seu som é denso, sem ser tenso. Raro herdeiro vivo da bossa-nova, “Aqui” é maximalismo disfarçado de minimalismo.

#cultura #notas


CC BY-NC 4.0Ideias de ChiricoComente isto via e-mailInscreva-se na newsletter