Ideias de Chirico


Em lembrança do pintor surrealista greco-italiano Giorgio de Chirico (1888 - 1978), o maior ilustrador de ideias de jerico ― e de Chirico! Um blogue sobre cultura, cotidiano e tecnologia mantido por Arlon de Serra Grande.

Imagem de uma teia de aranha molhada por orvalho

Alguns dos linques mais interessantes que encontrei durante o mês de setembro, com alguma reflexão que eles me trouxeram... Para quem não fala o idioma inglês, infelizmente eles não servirão de muita coisa.

Rewind Museum, uma “Wikipédia” de eletrônicos domésticos antigos ― de rádio à fita cassete, dos primeiros microcomputadores ao gramofone, de televisões analógicas aos videogames. É legal para mostrar para o Enzo que não tem ideia de como as coisas eram antes do esmartefone.

Lista de fotografias consideradas as mais importantes. Autoexplicativo. De vez em quando me pego vendo esta lista e acho uma das coisas mais fascinantes da Wiki.

Sítio web de “Dias Perfeitos”, filme teuto-japonês sobre o qual já escrevi nestas Ideias de Chirico. Sua página inicial promete mostrar “353 dias da vida de Hirayama não mostradas no filme”. Não é para tanto. Há, porém, outras informações relevantes: créditos completos, trilha sonora, entrevistas, dados sobre o estafe e referências de livros.

A visita acima de tudo vale a pena por ser uma obra prima de sítio. Muito caprichado mesmo. Esse é um tipo de material que satisfaz um pouco aquela necessidade de “extras” que vinham junto nos discos DVD, como cortes não incluídos no filme e faixa com comentários do diretor. Quem dera se essa moda de desenhar sítios web para filmes pegasse!

Como ter um banho mais sustentável? Essa é a pergunta levantada pelo ambientalista Kris de Decker em seu novo texto no blogue Low-Tech Magazine, “Communal Luxury: The Public Bathhouse”. Para pensar sobre o impacto ambiental desse costume ordinário e universal, Kris faz um levantamento histórico dos hábitos banhistas na Europa e na Ásia ― completamente em casas de banho público ― e qual a diferença de uso de recursos naturais dessa cultura em comparação com o atual e ubíquo costume do “banho privado”.

Recomendo a leitura. Kris escreve muito bem e é muito interessante ver como o hábito de tomar banho mudou com o tempo, e como, se quisermos ter uma vida sustentável, teremos de mudar drasticamente nossa cultura. Durante a leitura do texto também fiquei pensando na hipótese de nós brasileiros nos sentirmos extremamente vexados ao estarmos nus na frente de outras pessoas pelo fato de não termos tido uma cultura de banho público.

Isto é mais uma dica do que uma recomendação de sítio web. Sempre estranhei o fato de que no Instagram pelo computador você só consegue visualizar as postagens recomendadas pelo algoritmo. No aplicativo móvel pelo menos há uma opçãozinha escondida para ver a lista de favoritos (para ver publicações de perfis selecionados pelo usuário) e a lista de seguindo (para ver as últimas publicações em ordem cronológica). Na versão mobile nenhum desses feeds mostra propagandas e são menos viciantes, já que eles “têm fim”, digamos.

Durante esta semana, no entanto, eu soube que há, sim, um modo de acompanhar postagens recentes e a lista de favoritos pela versão desktop do Instagram, só que os desenvolvedores, claro, a fim de limitar os recursos dessa versão e forçar o usuário ao retorno da versão mobile, simplesmente ocultaram a droga dos botões. Bigtech sendo Bigtech, como sempre.

Na versão desktop, para você entrar na lista de favoritos, tem de pôr <?variant=favorites> depois de , e para entrar na lista das últimas postagens, tem de pôr <?variant=following> depois do mesmo domínio. Ficando assim:

https://www.instagram.com/?variant=following

https://www.instagram.com/?variant=favorites

Praticamente uma easter egg. Cada dia que passa mais eu desejo o fim do predomínio desta que é talvez a rede social mais mal feita da web 2.0. Deixo avisado que a experiência do Instagram por computador é muito mais positiva, já que é menos viciante (por ter mais espaço de tela), e por a gente ter a possibilidade de não ver propagandas. Neste último caso, recomendo a instalação da extensão Ublock, disponível para Mozilla Firefox e Google Chrome.

Que tal zapear por alguns canais do Youtube como se fosse por uma tevê analógica? Essa é a proposta de YTCH. Como a própria sigla acusa (Youtube Channel), a ideia do sítio é mostrar, à moda televisual, uma reprodução ininterrupta e aleatória de canais interessantes do Youtube.

Há separação por categorias como “ciência”, “documentário”, “comida” etc. Independente de qual seja a categoria, os vídeos sempre surpreendem pela qualidade. Sua edição em geral tem aquele quê de canais educativos que é bem relaxante… A sacada é genial e espero que inspire projetos para outras plataformas que necessitam urgentemente de uma curadoria humana de conteúdo, como o TikTok.

#cultura #tecnologia #notas #surfandoweb


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Reflexões sobre a escuridão na cultura ocidental

Imagem de sombras de folhas de árvores no chão.

Imagem: quadro final de “Dias Perfeitos” (2023). Por que nos negamos às sombras?

Quando chego em casa pela noite, não acendo as luzes. Não. Limito-me a cruzar a sala tateando com o olhar. Tem sido assim desde que notei uma sensibilidade à luz ― tenho astigmatismo. Quando a percebi, tratei logo de evitar luzes fortes. Tudo quanto faço, se possível, faço sem luz: me agrada tomar banho com a luz que vem de fora do banheiro, faço as refeições noturnas em penumbra, às vezes até me preparo no escuro para sair...

Mas isso não é tudo ― passei também a ver beleza na escuridão. É bela a vida escura! E o estranho é o quanto se demora para o perceber. Vivendo a maior parte do tempo com uma forte luz sobre nós, não nos atemos ao fato de que as sombras também possuem seu encanto, que não podem ser vistas somente como um mero realçador da luz, mas também como elemento que circunscreve sua própria beleza.

Além do fato de eu ter sentido sensibilidade à luz, um ensaio me foi essencial para compreender o belo possível da penumbra: “Em louvor da sombra”, de Junichiro Tanizaki. Em um Japão tradicional do século XX ameaçado pela luz elétrica, intelectuais como Tanizaki buscaram registrar a apreciação pelas sombras ― ou, se possível, resgatá-las.

“Em louvor da sombra” é a descrição mais genuína possível do contraste entre as sombras dos espaços internos tradicionais do Japão e a luz ofuscante da era moderna, vinda da Europa ― luz que, ironicamente, marca muito mais o Japão contemporâneo do que a sombra.

Se por um lado esse ensaio de Tanizaki a respeito do impacto da luz elétrica sobre a arquitetura, a moda e a culinária japoneses soa conservador, por outro nos faz refletir o quanto de sensibilidade é perdida a cada nova invenção que envolva os sentidos mais imediatos do ser humano ― como a visão noturna ante a luz artificial.

Mais de uma vez, tentei mostrar neste blogue a minha afeição pelas coisas de baixa definição, como quando escrevi sobre o longa-metragem “Dias Perfeitos”. Falo de “baixa definição” em termos de Marshall McLuhan, falo das coisas que não estão dadas, que nos pedem para “ligar os pontinhos”, que requerem a nossa participação para a sua plenitude.

Poemas, fotografias em baixa definição, memes shitpost, música lo-fi, quadrinhos, vídeo-chamadas, palavras polissêmicas, al-guém que... FAla... meiotipoassinsabe?: esses são signos que não nos vêm “empacotados” ― participamos de sua “linha de montagem”.

As sombras possibilitam essa experiência de baixa definição. Um momento em penumbra é uma fuga desta nossa vida de consumo que ansia pela alta definição: a iluminação intensa dos supermercados, as superfícies lisas de ambientes públicos, o signo fácil das propagandas. Afinal: baixa definição = baixo estímulo; logo, alta definição = alto estímulo.

As coisas, em estado penumbral, podem ser quaisquer outras. Uma cadeira com roupas por dobrar pode ser uma poltrona; um cisco no assoalho do banheiro pode ser uma barata ou um naco de sabonete; todos os talheres na gaveta da cozinha, quando escura, são iguaizinhos. Nas sombras, devemos estar atentos, devemos nos preparar para tudo...

A sombra também é atraente em sua qualidade simbólica. Textos “sombreados”, obtusos, são aqueles que não se definem de cara, que convidam o leitor a uma coautoria, que ampliam o branco de sua página esperando ser terminada. É o texto de um Mikhail Bakhtin, deste já citado Marshall McLuhan, de um Machado de Assis, da maioria dos poetas, sobretudo os modernos.

A sensualidade mesmo está diretamente relacionada às sombras. Pensemos nas danças de strip tease ― são feitas à contraluz. Esses mesmos movimentos, se feitos em sol-a-pino, seriam de um humor vulgar e, em lugar de provocar, trariam uma irresistível vergonha alheia.

Esquisito é a campanha milenar dentro da cultura ocidental (ou ocidentalizada) contra as sombras. Nos filmes de terror, os piores monstros saem da escuridão; as rodas de contação de histórias macabras são feitas em torno de uma fogueira ou de um foco de luz, que faz os ouvintes evitarem olhar o seu entorno sombreado; as áreas de sombras nas casas são aquelas mais temidas pelas crianças, cujos pais, por nada neste mundo, não as ensinam a se sentir confortáveis no escuro.

Certo, há uma razão envolvendo a segurança das crianças que faz com que esses mesmos pais ensinem-nas a evitar os espaços assombrados. No entanto, esse medo é levado à vida adulta em forma de aversão. Saídos da infância, nunca mais nos arriscamos a ver as sombras com a atenção que damos à luz.

É compreensível que o homem rupestre, em um ambiente imprevisível, evitasse o escuro. Este era o lugar dos animais selvagens ou pençonhentos, era o lugar do mistério natural. Mas por que o homem moderno, com casa, energia e alimentação armazenada ainda segue com essa oposição ao escuro?

Essa aversão ao escuro é também encontrada no campo da linguagem figurativa. Quando passamos por um momento de dificuldade, dizemos que “procuramos ver a luz no fim do túnel”. Uma pessoa instruída é uma pessoa “esclarescida”. Qual a expressão afirmativa análoga à “Com certeza”? “É claro”! Quando temos dúvida sobre algo, buscamos alguém para “nos esclarescer”. A que está relacionado o Deus cristão? À “luz eterna”...

Não defendo que se evite toda a tecnologia eletrônica que nos ilumina e nos circunda. Não. Creio que devemos emular em nossas vidas o equilíbrio de uma floresta ensolarada. É impossível não se encantar com os feixes de luz que atravessam suas folhas. As sombras destacam a poeira iluminada pela luz solar. O sol não nos é tão quente em uma sombra arborizada, e é nessa mesma sombra que se desenha o movimento das árvores... Isso é komorebi!

“Komorebi” (木漏れ日) é a palavra japonesa para designar a dança entre a luz e as sombras, criada pelas folhas das árvores balançadas ao vento ― isso só existe uma vez, no momento em que é percebida. Apreciar tanto as sombras quanto as luzes nos educa também a viver o aqui-agora sem a perturbação constante do ali-depois. É na apreciação da impermanência, acredito, que reside a felicidade.

#cultura #tecnologia


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Imagem de Yui Kamiji, uma mulher amarela cadeirante, usando boné branco e camisa vermelha, fazendo um lance de tênis com uma raquete em mãos.

Imagem: Yui Kamiji, tenista japonesa, jogando durante os Jogos Paralímpicos (ou Paraolímpicos?).

Você sabe porque falamos “paralimpíadas” e não “paraolimpíadas” ou, o que seria mais natural, “parolimpíadas”?

Para responder essa questão, não é necessário nenhuma explicação gramatical mirabolante.

Segundo o Pasquale Cipro Neto, no programa “A nossa língua de todo dia” da Rádio CBN da semana passada¹, o Comitê Paralímpico Internacional (sediado nos EUA) “pediu” que todas as variantes vocabulares das línguas de países envolvidos com esses jogos seguissem o padrão anglófono “paralympic”. Fim. É isso. Essa é a razão pela qual falamos “paralimpíadas”.

A maior representação de colonialismo foi, segue sendo e será expressa pela língua de um povo.


¹: Ouça o episódio através deste linque. Para saber mais das discussões a respeito desse termo, leia este artigo do sítio Ciberdúvidas.

#cultura #notas


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Hirayama e Niko, personagens de “Dias Perfeitos”, respectivamente interpretadas por Koji Yakusho e Arisa Nakano.

Quando criança, durante um longo carnaval em casa, assisti diversas vezes ao “Garfield” (2004). Sentado no chão da sala, me encantava com seu brilho, sua cor, seu movimento (a história era um detalhe). Meus parentes, cansados de ver e ouvir a animação em lupe, imploravam para que eu largasse a televisão. Mas, apenas subiam os créditos finais, lá estava eu outra vezes tocando o “play”. Rodei aquele disco no aparelho de DVD como um pião na mão.

Raras foram as vezes que, depois da infância, voltei mais de uma vez a um filme. Um longa-metragem, entretanto, tem recuperado aquele encanto que eu tinha diante da tela, me fazendo retornar a ele diversas vezes. Falo de “Dias Perfeitos” (2023), um drama dirigido pelo alemão Wim Wenders.

“Dias perfeitos” mostra a rotina de um zelador de banheiros de Tóquio chamado Hirayama. Hirayama é um profissional dedicado: cumpre suas horas com natural pontualidade (não usa sequer despertador), tem seu próprio material de limpeza, e, em horário comercial, não se comunica com ninguém sobre outra coisa que não envolva o trabalho.

Duas coisas marcam Hirayama: ele é um introvertido homem de terceira idade, solteiro, e mora sozinho; e seu grande afeto pelas tecnologias analógicas ― ouve música em fita cassete enquanto vai ao trabalho, fotografa com sua câmera analógica durante o horário de almoço e religiosamente lê romances antes de dormir.

No entanto, Hirayama não toma seu ofício como sua vida: nas horas livres, encontra-se com amigos em bares, pedala por diversão, vai à livraria com frequência (é até tido por “intelectual” pela garçonete do seu bar favorito) e mostra gosto por jardinagem.

Hirayama mostra-se satisfeito com seus dias equilibrados, até que um dia tem de receber sua sobrinha Niko (filha de uma irmã com a qual há muito não fala), que inesperadamente aparece em sua casa (precisa de abrigo ― fugiu da mãe).

Temos aí o mais belo culto à simplicidade e à rotina dos últimos tempos, com uma personagem que leva uma invejável vida idílica e minimalista ― parafraseando as palavras do blogue sol2070 em resenha sobre o filme ―, personagem que toma corpo através de um ator que torna fresco cada gesto ordinário, capaz de nos mostrar a ação diária como o movimento de uma dança silenciosa e sem fim.

Mas, para além disso, “Dias Perfeitos” me encanta por seu mistério. Claro, não possui as cores e os movimentos de “Garfield” (é um filme, na maior parte do tempo, escuro), mas tem bastantes e deliciosas lacunas; mesmo tendo duas horas de duração, sabemos muito pouco sobre o protagonista¹.

Não temos reminiscências de Hirayama, e não sabemos sequer quais são seus pensamentos ― apenas seus sonhos, que envolvem sombras (um signo chave para o longa). As poucas informações que temos são pequenos detalhes, mostrados a conta-gotas através de outras personagens ― nem tão próximas do protagonista, ainda por cima.

“Dias Perfeitos” nos convida a uma profunda e constante participação. Já que o longa-metragem não nos vem como um objeto completo, somos impelidos a montá-lo, como se fosse um mosaico de pequenas e brilhantes pedrinhas. Cada gesto, cada figurante e cada objeto de “Dias Perfeitos”, paulatinamente percebidos a cada visita, interferem no enredo, o que o torna um filme novo a cada nova visita.

Sua natureza de baixa definição lembra-me outro longa-metragem, também japonês, chamado “Mind Game” (2004) ― um misto de “Pinóquio” e “Yellow Submarine”. Em filmes assim, só podemos especular, estipular alguma protointerpretação. Hirayama viria de uma família abastada?, tornou-se zelador por vontade própria ou passou por algum momento de necessidade?, desejou um romance impossível com a garçonete, o que o fez voltar a experimentar cigarros e bebidas?

Só nos resta revisitar o longa-metragem teuto-japonês mais uma vez logo após lhe assistimos ― como fazíamos quando éramos crianças ―, quem sabe dessa vez nos apareça algum dado que “ilumine” suas belas sombras?


¹: (post scriptum, 17 de setembro de 2024) recentemente descobri que o longametragem tem um websítio próprio onde nos são apresentados “353 dias da vida de Hirayama não mostradas no filme”. Não o visitei por completo, mas, além de fornecer informações que podem preencher esses vazios dos quais comentei, tem também dados sobre os atores e outras curiosidades. Vale a visita: https://www.perfectdays-movie.jp/en/

Esta publicação foi mencionada nos textos “A sedução pelas sombras” e “O futuro do futuro é o presente” destas Ideias de Chirico.

#cultura


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Fotografia de uma máquina de escrever sobre uma mesa de plástico com um lençol cor de creme em cima. Há um papel de com amarela posto em seu carro.

Estas Ideias de Chirico agora são escritas nesta Remington 15 (juro para vocês como isso não tem nada a ver com a fonte monoespaçada deste blogue).

Este texto está sendo escrito em uma máquina de escrever. Embora isso não faça uma notável diferença na sua leitura, faz uma cabal diferença na minha escrita.

Em um mundo ansioso pela novidade tecnológica, lançar mão de ferramentas obsoletas, antes predominantes, parece um ato de inadequação, e até mesmo de insanidade. Acontece que não é pela máquina de escrever ser conveniente na maior parte das minhas tarefas que eu a utilizo, mas sim por ela me fornecer um outro tato com o texto que outras não fornecem, e até por me oferecer um outro meio pelo qual pensar.

Costumo dizer que sou um entusiasta de tecnologias. Quando o digo, não me refiro somente aos dispositivos e aos veículos de ponta ― seja a inteligência artificial, o Fediverso, ou assistentes de voz. Quando o digo, também me refiro às tecnologias tradicionais, como o rádio, a televisão e a máquina de escrever.

Neste texto falarei das razões pelas quais decidi adotar este instrumento, como tem sido minha experiência com ele, bem como o modo com o qual tenho o conjugado com outros intrumentos de escrita.

Como adquiri

A máquina de escrever, por ser um artigo de colecionador, é muito difícil de ser encontrado no mercado comum ― e difícil de ser encontrado por um preço acessível. Antes então de conseguir uma, pensava em primeiro experimentá-la.

Porém, na última viagem que fiz, a São Paulo, me encontrava frequentemente com um amigo poeta, Diego Dias, que por acaso também é colecionador de máquinas de escrever.

Diego, que vira que eu tinha um genuíno interesse em adquirir uma, certa noite dispôs uma parte de sua coleção sobre a mesa de seu escritório, que fica no Largo do Paissandu. Entre vários modelos, estavam uma Baby Hermes vermelha (seu xodó), algumas Remingtons, e até mesmo um modelo com alfabeto russo.

Experimentei duas delas e gamei com uma Remington 15 de cor creme ― esta em que bato agora. Foi amor à primeira batida. Ela respondia bem ao toque, não era tão pesada e tinha todos os caracteres da língua portuguesa. Diego, que fumava seu habitual cigarro de tabaco, disse um direto e gentil “Pode ficar com ela!”. Depois de resistir um pouco ― já que eu pensava que iria subtrair sua coleção ―, aceitei o presente.

Vocês não imaginam o trabalho que deu de transportá-la para o Ceará... Um estojo de 20 centímetros por 25 não cabia em nenhuma mala de uma viagem curta como aquela ― eu passei somente algumas semanas em terras oswaldianas. Eu teria, então, de levá-la como uma bagagem à parte! No entanto, valeu a viagem.

Porque adquiri

Já havia um tempo que eu escrevia todos os meus textos em um bloco de notas ridiculamente simples do computador, sem recursos de formatação ― papel o qual eu deixava para o LibreOffice Writer. Me interessava sobretudo desenvolver o escrito. Queria tirar todo o atrito e toda a burocracia que existia entre mim e o computador.

Para isso, fiz de tudo, desde inicializar o sistema operacional sem senha, até configurar o bloco de notas como programa de inicialização. Ainda assim, existiam o boot necessário e as atualizações eventuais, que demandavam alguns minutos de atenção.

Cheguei a pesquisar programas que emulassem a experiência da máquina de escrever (que era o meu ideal de instrumento sem distrações), como o Cold Turkey Writer¹, e até mesmo cheguei a pesquisar projetos que fossem um híbrido de notebook e máquina de escrever, como os dispositivos da marca Freewrite e o Zerowriter. No entanto, ainda assim existiria o atrito da eventual necessidade de eletricidade e ocasionalmente internet.

Além disso tudo, fiquei com ainda mais vontade de conseguir uma máquina de escrever após a leitura de um texto de Lionel “Ploum” Dricot, “A complexidade da simplicidade” ― que ainda pretendo traduzir algum dia para o português. Neste texto Dricot comenta, entre outras coisas, o efeito desse instrumento em seus escritos.

Não tinha jeito: a única ferramenta dedicada à escrita, que me permitiria sentar e já começar a digitar sem parar e sem me preocupar com questões laterais, seria a máquina de escrever.

Claro, tenho enfrentado algumas questões com o instrumento, como o seu barulho, que dificulta a escrita durante alta noite, e a necessidade de constante força física na digitação². Essa força é em parte remediada por conta do touchtyping que desenvolvi, isto é, a memória muscular com o teclado de computador, que me permite que eu digite sem olhar para o teclado e que eu não tecle somente com dois dedos.

Tudo isso, porém, é compensado pelo seu conforto visual (já que não emite luz), pelo foco ininterrupto que o texto recebe e pela possibilidade de ser guardada de modo que esteja preparada para o próximo uso, uma vez que posso pô-la no estojo com um papel posto no seu carro.

E o computador?

Blocos de notas, máquinas de escrever, gravadores de voz e computadores são ferramentas, e, ferramentas que são, atendem a propósitos bem determinados e distintos. Nenhum elimina o papel do outro; antes complementam-se.

Com pequenas notas de bolso, redijo os principais tópicos de um texto vindouro; através de um gravador ― recurso sobre o qual já escrevi ―, registro meus primeiros insaites; com a máquina de escrever, desenrolo o fio do pensamento a partir dos recursos anteriores; e com o computador, faço o acabamento textual e a formatação, e incluo linques, imagens e o mais que a publicação final precisar.

Além disso, ter mais de um recurso para a mesma tarefa permite que um esteja no lugar de outro quando necessário. Caso a tinta da caneta ou o papel acabe na hora em que eu mais precisar fora de casa, ainda terei o gravador de voz para tomar notas urgentes e rápidas; caso eu não tenha bateria suficiente no telefone, mas esteja em casa, ainda terei o computador para redigir notas; e caso o computador dê pane, ou minha vista estiver cansada demais para olhar para telas, ainda terei a máquina de escrever para desenvolver textos “grossos”.

A este conjunto de recursos de escrita conjugado chamo de “caixa de ferramentas de escrever”!


¹: Ainda a respeito de programas emulando máquinas de escrever e dispositivos zero-distração, sugiro a leitura de um fio da Nina Kalinina no Mastodon falando a respeito de sua jornada para construir um “ambiente de trabalho feliz”, isto é, sem distrações. Conheci o Cold Turkey Writer através desse fio. Este foi outro texto também valioso para eu tomar a decisão de conseguir um equipamento dedicado à escrita.

²: No período em que escrevi este texto, ainda estava, digamos, fazendo “academia digital”, exercitando os dedos para o teclado mecânico. Hoje em dia já não sinto que ele necessita de tanta força, mas sim de precisão.

Esta publicação foi mencionada no texto “Língua, ritmo, instrumento ― estilo” e também em “Scherzo: sem 'eu'” destas Ideias de Chirico.

#tecnologias


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Imagem: série “Marilyn Monroe”, de Andy Warhol. Com o fim da hegemonia dos veículos de massas na comunicação social, todo anônimo tornou-se uma celebridade em potencial e toda “celebridade” tornou-se um anônimo em potencial.

Você desbloqueia seu telefone. Toca em qualquer rede social. Qual é a primeira pessoa que vê? Um artista internacionalmente conhecido, um político regionalmente relevante, ou um empresário do ramo tecnológico? Não. Grande chance há de que seja o amigo de infância que há muito não vê relatando que “O de hoje está pago”, o seu colega de trabalho com o qual fala pouco compartilhando fotos e fatos do último rolê, uma crush da qual você já perdeu o interesse publicando um “tbt” ― em outras palavras: gente anônima.

Permaneça nesta mesma rede social. Role um pouco. Se tiver alguma aba de vídeos curtos com curadoria algorítmica, role ainda mais. Se não for gente anônima, um artista do qual nem você e nem o seu colega de apartamento ouviram falar ― um anônimo. Se não for um artista do qual não se sabe, uma influenciadora de um assunto que o algoritmo jurou que seria do seu interesse ― uma anônima. Se não for uma influenciadora, alguma criança ou senhora engraçada “trendando” ― anônimos, anônimos, anônimos.

Os “quinze minutos de fama” preconizados por Andy Warhol saturaram-se. Agora que todos são famosos, ninguém é conhecido. Pense em duas bandas da atualidade que seja do seu gosto. Agora pergunte ao seu pai, ao seu melhor amigo ou amiga, ao seu colega menos íntimo e a qualquer pedestre avulso que passa em frente a sua casa se eles conhecem essas bandas. Se todos as conhecerem, há uma enorme probabilidade de serem bandas locais ou ligadas ao seu círculo ― ou de serem eles próprios a banda.

A recíproca será verdadeira se pescarmos de uma tela de outdoor ou indoor mais próxima e experimentarmos o inverso, procurarmos algum nome conhecido ― e esta será uma tentativa frustrante.

O fato é que as pessoas desconhecidas, aquelas as quais nunca vimos ― e as quais nunca mais veremos outra vez ―, tomaram o palco das celebridades. Isso porque o palco, que era a televisão e o cinema, mudou de lugar. Os Instagrams, os Tiktoks, os Kwais tornaram-se ubíquos. Neles, as pessoas incógnitas ― os seus próprios usuários ― aparecem mais do que as figuras pop sobre a qual outrora ouvíamos em todos os lugares.

Os veículos de massa, que foram o céu ao qual todos assistiam, perderam a predominância no campo das mídias. Se antes todos olhavam para cima, vendo as “estrelas” e as “celebridades” como figuras distantes, graças à invenção do algoritmo e do feed infinito de publicações, agora todos se cruzam e se olham, como se estivessem em uma movimentada rua do centro da cidade.

O antropólogo Michel Alcoforado em conversa no podcast “Boa Noite, Internet” define o espaço neoliberal como aquele onde tudo ocorre concentradamente ao mesmo tempo e em um só lugar: assim é o shopping, assim é a rede social, assim é um player de vídeos curtos.

Tudo, aqui e agora. Todas as pessoas em todos os lugares ao mesmo tempo. Assim é viver no auge da era da eletricidade. Por conta desse fenômeno, há um estado de “atonalidade” de capital social entre as pessoas: a depender do perfil de um usuário de uma rede social algoritmizada, um influenciador do interior do Ceará pode aparecer tanto quanto Elon Musk no seu feed; e a depender do perfil de outro usuário nas mesmas condições socio-econômicas que o primeiro, essas duas figuras podem lhe não ser mais do que estranhas.

Prevejo contudo que em um futuro breve não haverá mais fama, porque não haverá mais veículos de massas. Como ser famoso à velocidade da luz? Como ser famoso para um público que não tem tempo suficiente de reconhecer o seu rosto? Como ser famoso para um público que não teve sequer a chance de o conhecer graças ao seu isolamento algorítmico?

Pode ser que em breve, não haverá mais figuras pop. Apenas comunidades e nichos. Esses círculos circunscreverão no máximo 150 membros, como defende o número de Dunbar. Assim como a maioria dos cientistas só é conhecido dentro da comunidade acadêmica, amanhã pode ser que haja brilhantes figuras dos mais diversos campos da cultura com públicos “ínfimos” para os padrões atuais. E pode ser que nunca mais conheçamos outros Elvis, outros Marleys, outras Monroes, outros Jacksons, outras Madonnas. Todos serão anonimamente conhecidos e todas as esquinas serão tapetes vermelhos.

#cultura #tecnologia


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Ainda que a cultura de um modo geral esteja em baixa, aquém do ramo da tecnologia em termos de inovação, vez ou outra encontramos algo de fresco em produções das últimas duas décadas.

Em certa manhã de 2022, enquanto eu ia ao trabalho, pela Rádio Universitária de Fortaleza ouvi a jazzista Léa Freire pela primeira vez. O ônibus deslizava sobre um viaduto, a deixar que um sol limpo de nuvens, atravessando edifícios, lá dentro entrasse. Esta é a cena a qual associo o seu “Brincando com Théo”, e que, ao meu ver, melhor o representa.

Mais tarde, pesquisei no Youtube a composição original (para piano solo). Ao azar, tombei com uma versão à voz e piano de Tatiana Parra e Andrés Beeuwsaert no disco “Aqui”, de 2011 ― assista ao seu trailer.

Desde que o conheci, me derreto a cada escuta. Só consigo pensar em beleza ao o ouvir. Andrés, um João Gilberto do piano, bate seu instrumento, mas gom um togue gendil, como se seus martelos fossem espumas. Já Tatiana, em seu canto, ainda que sem texto, fala. Mas fala como o pássaro fala. Farfala.

Os arranjos são simples: vez ou outra aparecem flauta (que Léa Freire toca), violoncelo ou violão ― cada um por vez. A voz e o piano predominam como intrumentos, valem, porém, por vários ― às vezes o piano arrebenta feito bateria ou, sus, suspira como uma segunda voz.

Como o primeiro disco de Rodrigo Campos sobre o qual escrevi, “Aqui” é feito para o movimento, para as gentes, para as cidades. Nas suas interpretações, de tons maiores ― abertas tal sóis ―, seu som é denso, sem ser tenso. Raro herdeiro vivo da bossa-nova, “Aqui” é maximalismo disfarçado de minimalismo.

#cultura #notas


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Imagem de uma folha em branco com uma lapiseira ao lado sobre uma mesa de madeira.

Após apresentar “O Pequeno Príncipe” de Saint-Exupéry à turma de 7° série, o professor de redação pediu-lhes para que apresentassem uma síntese do livro. O único comando que ele dispôs no quadro negro foi “Escrevam apenas o essencial da história”.

Enquanto toda a sala rascunhava rapidamente sobre seus papéis, o pior aluno entregou uma folha em branco. O professor, contrariado, indagou do que se tratava aquilo. E o aluno timidamente respondeu:

― Professor, é que eu aprendi com o Pequeno Príncipe que

O essencial é invisível aos olhos.

Este aluno recebeu a melhor nota da turma.

#cotidiano #notas


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Imagem de uma feira de frutas no interior do Brasil.

“Olha a informação! Informação fresquinha!”

Gosto de pensar a internet como essa grande feira de sites. Nas feiras, se você quer um produto, haverá alguém que conhece um alguém que conhece um alguém que tem o que você quer. São como aqueles galos do João Cabral de Melo Neto. Visita-se um site, e este o direciona para outro, que aponta para outro etc. Essa é a graça inclusive de ter um blogue: participar ativamente dessa rede, seja reconectando-a, seja contribuindo com ela.

Outro dia compartilhei o Internet Artifact, que me chamou a atenção por conta de sua arqueologia internáutica. Agora compartilho outros endereços curiosos envolvendo descoberta e publicação de artes, que já publiquei via #SurfandoWeb pelo meu perfil Akkoma ― que tem sido um grande laboratório para as publicações destas Ideias de Chirico.

Todo som ao mesmo tempo e em todo lugar

Não sabe que música ouvir numa noite aleatória ou quer conhecer novos gêneros musicais dos mais diversos cantos do mundo? Conheça Every Noise At Once.

Ao carregar a página, verá uma nuvem quase infinita de gêneros musicais correlatos por nacionalidade ou por ritmo. Ao tocar em um deles, a página executará um exemplar de mais ou menos 10 segundos de cada gênero. Dica de ouro: dê um Ctrl + F e escreva um gênero ou nacionalidade pelo qual você se interessa, e daí poderá conhecer outros similares.

Every Noise At Once lembrou-me a proposta de Radiooooo que executa sucessos radiofônicos da década e do país da escolha do visitante. No entanto, ao tempo que Radiooooo compartilha sucessos de todas as épocas, Every Noise At Once concentra-se na cena underground contemporânea.

O que pode 10kb?

A Galeria 10kb é um compêndio de imagens com tantos bites quanto este texto que vocês leem ― ou até mesmo mais leve. Visitá-la me faz pensar nas reais necessidades de espaço de disco para a comunicação digital.

Por que afinal queremos tudo em HD 4K? Às vezes 10kb já dá conta do recado! Afinal, é preciso que também nos acostumemos com pouco. Em um mundo ávido por informação em alta-definição, não podemos perder a sensibilidade das coisas em baixa-definição ― mais próximas das tecnologias analógicas e da vida mesmo.

Além de tudo, é interessante ver respostas criativas ao desafio de se criar uma imagem tão leve quanto um arquivo de texto. Como escreve Mike Grindle comentando sobre o porquê de se fazer um site compatível ao espaço de um disquete,

Ao meu ver, nada inspira mais criatividade do que limitações. Isso não só lhe deixa pensando “fora da caixa”, mas também lhe estabelece limites nos quais trabalhar.

Essa, inclusive, também é a graça de escrever sob padrões ou limitações precisas, como os velhos 140 caracteres de um tuíte ou como o verso dodecassílabo de um soneto... A ideia de densificar o pensamento e escrever coisas complexas em um espaço limitado é de uma sedução irresistível!

Infelizmente a Galeria está há um bom tempo sem atualizações, porque o organizador está concentrado em outros projetos. Mas já temos um bom arsenal.

Conheço também outros endereços análogos a ela, como o 1MB Club, que ranqueia sites que, de fato, caberiam em um disquete.

Estériques

Ficou curioso a respeito de uma estética específica de um período? Quer entender melhor de um dado zeitgeist? Quer se inspirar para projetar à la um certo “ismo”? Indico o Consumer Aesthetics Research Institute (CARI).

O CARI é como um Radiooooo visual. Ao entrar na sua página inicial, você terá várias abas de filtros para curadoria, como período, palavras-chaves ou ordem alfabética.

Claro, como o próprio nome diz, ele é voltado à estética do consumo, não à estética artística, que se preocupa com o puro prazer... estético. No entanto, esta é muito influenciado por aquela, e até a inspira! Vide o pop-art ou, um pouco atrás, o art-nouveau.

#cultura #notas


CC BY-NC 4.0Ideias de ChiricoComente isto via e-mailInscreva-se na newsletter


Imagem de Mário de Andrade, um homem pardo e calvo usando óculos de grau redondos e terno. Sua face está sendo iluminada por uma luz que vem debaixo.

Mário de Andrade

é um desafiador da servil e adocicada e grandiloquente cultura oficial, um criador de palavras que morrem de inveja da música, e que são, contudo, capazes de ver e dizer ao Brasil e também capazes de o mastigar, por ser o Brasil um sabaroso amendoim quente.

De férias, pelo puro gosto de se divertir, Mário de Andrade transcreve ditos e feitos de Macunaíma, herói sem nenhum caráter, tal como os escutou do dourado bico de um papagaio. Segundo o papagaio, Macunaíma, negro feio, nasceu no fundo da selva. Até os seis anos, por preguiça, não pronunciou uma palavra, dedicado como estava a decapitar formigas, a cuspir na cara de seus irmãos e a meter a mão nas graças de suas cunhadas. As cômicas aventuras de Macunaíma atravessam todos os tempos e todos os espaços do Brasil, em uma grande gozação que não deixa santo por desvestir, nem fantoche com cabeça.

Macunaíma é mais real do que seu autor. Como todo brasileiro de carne e osso, Mário de Andrade é um delírio da imaginação.


1927, Araraquara

Imagem de Mário de Andrade, um homem pardo e calvo usando óculos de grau redondos e roupão. Mário fuma e tem diante de si um amontoado de papéis.

Mário de Andrade

es un desafiador de la servil y dulzona y grandilocuente cultura oficial, un creador de palabras que se mueren de envidia de la música y que son sin embargo capaces de ver y decir al Brasil y también capaces de masticarlo, por ser el Brasil un sabroso maní caliente.

En vacaciones, por el puro gusto de divertirse, Mário de Andrade transcribe dichos e hechos de Macunaíma, héroe sin ningún carácter, tal como los escuchó del dorado pico de un papagayo. Según el papagayo, Macunaíma, negro feo, nació en el fondo de la selva. Hasta los seis años no pronunció una palabra, por pereza, dedicado como estaba a decapitar hormigas, a escupir a la cara de sus hermanos y a meter mano a las gracias de sus cuñadas. Las desopilantes aventuras de Macunaíma atraviesan todos los tiempos y todos los espacios del Brasil, en una gran tomadura de pelo que no deja santo por desvestir ni títere con cabeza.

Macunaíma es más real que su autor. Como todo brasileño de carne y hueso, Mário de Andrade es un delirio de la imaginación.


In: “Memoria del fuego III. El siglo del viento” (1986), de Eduardo Galeano. Tradução de Arlon de Serra Grande.

#cultura #tradução


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