Coisas deleitáveis
Imagem: caricatura de Paulo Mendes Campos.
Uma lista de coisas deleitáveis, escrita durante uma leitura de lista de coisas deleitáveis, uma crônica de 1962 de Paulo Mendes Campos:
Sombra de árvore em parede ao fim do dia; escrever em máquina de escrever; escrever em teclado mecânico; tirar os sapatos ao fim do dia e tocar os pés no assoalho frio; acertar nota difícil em violino; ouvir sotaque de estrangeiro aprendendo português; acordar cedo sem alarme; comprar queijo coalho barato; ouvir jazz em um bom fone de ouvido; ver álbum de fotos de família de gente desconhecida; a palavra eavesdrop; a voz de Ezra Pound quando estava velho; sol nascente; sol poente; criança pequena ouvindo atentamente alguém falar; cúmbia; ver alguém dançar cúmbia; espanhol argentino; inglês britânico, sobretudo o Cockney; português timorense; francês africano, sobretudo o beninense; perceber a simplicidade de uma coisa aparentemente complexa, como por exemplo, conseguir meditar pensando em nuvens e ondas do mar; beijar mulher engraçada depois de ela fazer rir; ouvir alguma história sobre Oswald de Andrade; ouvir alguma história sobre Erik Satie; visitar um completo desconhecido por convite de um amigo e comer e beber de graça; fita cassete; começar a aprender uma língua nova; vaia cearense; acertar uma expressão em francês depois de muitas tentativas; fazer becape de arquivos; olhar horas “redondas” em relógio mecânico de pulso; falar em espanhol com nativos; a primeira hora de uma paixão; usar chapéu grande debaixo de sol forte; conhecer uma nova palavra que passa a nomear algo que já conhecíamos ― como por exemplo, “serendipidade”; mulheres de cabelo joãozinho; receber elogio de crianças; a série de colagens “Jazz” de Henri Matisse; beijar depois de beber cerveja gelada; ouvir Décio Pignatari falando; ver como gente detestável ficou feia depois dos 20 anos; Johann Sebastian Bach; texto com parágrafos curtos; a feiura de recém-nascidos; qualquer coisa sobre o Japão; reconhecer figuras em caracteres chineses; dicionários que tem transcrição fonética das palavras; ouvir da rua o toque de pedido de viagem Uber; ler João Cabral de Melo Neto e imaginar cenas de construção; ouvir João Cabral de Melo Neto cacoetar com “Compreende?”; filmes tão bons que continuam na nossa cabeça, por meses; experimentar bicicleta alheia; ler jornal de papel em um domingo tranquilo; céuzinho azulzinho ― sobretudo no mês de agosto, às 14h ―; calças de alfaiataria; calças que têm bolsos bem largos e fundos; ser surpreendido com massagem nas costas, enquanto se está no computador; tocar alfaia em grupo; mijar de madrugada no escuro, sentado; lambretas; quando uma criança cai e, em vez de chorar, ela começa a rir; som de aviso do vigia noturno de motocicleta; a atuação de Kôji Yakusho em “Dias Perfeitos”; dia demorado em casa; abajur; luz de abajur; telefones pequenos; o primeiro disco de Arthur Verocai; gatos gordinhos; televisão de tubo; quando acham que você é mais jovem do que de fato é; usar acento grave indicador de crase da forma correta; o modo como os cubanos levantam os ombros enquanto argumentam sobre um assunto delicado; andar de skate depois de anos sem ter subido em um; perceber a comunicação não verbal dos músicos em serviço; dispositivos com tela “de papel”; lembrar que é sexta-feira, e não quinta-feira; lembrar que é sábado, e não domingo; automóveis coloridos e miudinhos; notar que os músculos estão crescendo; dormir fácil; jogar xadrez com um colega de trabalho no intervalo; banho de cachoeira da Serra da Ibiapaba; banho de rio do sítio Ingazeiras; o primeiro banho do dia; a cidade de Fortaleza durante a hora dourada; Serra da Ibiapaba debaixo de neblina; ler debaixo de sombra de árvore; acordar cedo descansado e lépido; conseguir sentar em modo seiza; dicionários de bolso da Collins Gem; fazer listas.
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