Curtos e grossos
Diz-se que alguém é “curto e grosso” quando é direto ao ponto, sem rodeios, às vezes ― e este o sentido principal ― grosseiramente objetivo. Percebo que esse traço não é benquisto no Brasil, ao menos em sociedade. Passei a o notar no período em que ensinei português para estrangeiros. Ao contrário do brasileiro médio, a pessoa do Congo, do Quênia ou da Colômbia não tem muitos dedos para dizer um “não” ou “não gostei”.
O “curto e grosso” não é bem aceito no Brasil. Em sociedade. Em literatura, acho particularmente a forma ideal de se passar uma informação ou macroinformação a alguém que nunca ouviu falar a respeito de determinada matéria. Salvo alguns belos calhamaços como “The Cantos”, de Pound, os livros que mais me marcaram ou que mais me ensinaram, não tinham mais do que 150 páginas. Nesta publicação quero falar um pouco delas.
Os livros “curtos e grossos”, para além de serem breves, também são aqueles que, por alguma razão fizeram-me reler ao menos uma vez na vida; aqueles que, em avulsos momentos de dispersão, me visitam sem fazer alarde ou epifanias; obras que ficaram não só na memória, mas na memória muscular. Sua leitura flui tão bem que eu o poderia ler em uma tarde, malgrado o fato de conterem em si um alto grau de informação.
“O que é comunicação poética” (1987), de Décio Pignatari
A primeira obra que me vem à mente quando penso nessas características é esse antológico livro do poeta, ensaísta, tradutor e paulista Décio Pignatari. Na primeira leitura que fiz, há dez anos, me encantou em especial a forma com a qual o autor fazia o uso da palavra para explicar os processos da própria arte da palavra ― coisa rara em prosa em língua portuguesa é um texto introdutório bem escrito!
Com esse livrinho, Pignatari pretende fornecer os recursos para possibilitar o mínimo de competência poética ao leitor, e de certa forma dessacralizar a poesia, tornando-a uma arte como qualquer outra (citando Pound logo no início, o autor diz que a poesia estaria mais próxima das artes plásticas do que da literatura); e que, como arte, necessita mais de técnica do que de inspiração.
Também foi através de “O que é comunicação poética que peguei o gosto por semiótica, a ciência que busca entender os processos das linguagens. O autor comenta versos ou construções poéticas não pelo campo do discurso ou do simbólico (verbal), mas pelo campo da sintaxe formal e da estrutura (não verbal). Cheguei a o ler três ou quatro vezes, e em todas elas tenho lampejos sobre a linguagem poética e aprendo um pouco mais sobre escrever, tanto poesia, quanto prosa, visto que Pignatari não escreve ― ele joga bola com as palavras.
“Saber ver arquitetura” (1948), de Bruno Zevi
Nos primeiros dias em que cursei arquitetura, em um longínquo ano de 2016, uma pergunta circundava todas as aulas: o que é arquitetura?
Confunde-se arquitetura com engenharia e até mesmo com design (diz um meme que “Arquitetura é design de edifícios”). Isso porque as três áreas, em maior ou menor grau, trabalham com estruturas.
No entanto, foi com a leitura de um livrinho introdutório sobre a matéria que a minha dúvida foi sanada.
Duas coisas saltaram-me aos olhos nessa leitura: o texto muito bem escrito de um autor que não tem a escrita como principal meio de expressão, e o modo com o qual o autor relaciona todas as linguagens e áreas. Para o arquiteto italiano Bruno Zevi, o desenvolvimento da Teoria da Relatividade e também da linguagem cubista na pintura foram imprescindíveis para o desenvolvimento de uma linguagem e de uma teoria da arquitetura modernas como conhecemos.
A razão dessas influências? Através dessas duas macroideias, os teóricos de arquitetura perceberam a importância do fator tempo para a linguagem arquitetônica ― de tal modo que Zevi defende que um edifício só pode ser entendido à distância através de um registro em vídeo, não tanto por fotografia ou planta baixa...
Outro exemplo da dialética e interdisciplinaridade na arquitetura: o arquiteto Aldo Rossi aponta que a teoria linguística de Ferdinand de Saussure (que Jung vai adotar em sua teoria de psicanálise) foi determinante em seus projetos, já que trabalham com modelos e estereótipos coletivos.
Ler sobre arquitetura mostra-nos que as coisas não estão assim setorizadas com as gostaríamos, mas sim em eterno diálogo e triálogo com outras artes, linguagens, tecnologias e ciências.
Saí do curso de arquitetura em 2019 para ingressar na graduação de Letras, porém as lições que Zevi deixou sobre interdisciplinaridade fizeram-me estar sempre alerta nas aulas do Centro de Humanidades quando alguém quer delimitar e setorizar conhecimentos. A importância desses estudos é tanto que, mesmo depois de sair do curso, segui lendo sobre arquitetura, sobretudo arquitetura contemporânea, área na qual não pude me aprofundar durante essa graduação.
Na era da eletricidade, tudo está interconectado. O todo afeta as partes e, sobretudo, as partes afetam o todo. Arquitetura ensinou-me a rejeitar uma postura especialista, de gênio individual, para adotar uma postura polímata, de membro de uma equipe.
“Em louvor das sombras” (1933), de Junichiro Tanizaki
A primeira vez em que ouvi uma menção ao ensaio de Tanizaki foi numa conversa entre amigos. Na casa de um deles, que era mantenedor de um sebo virtual, em seu quarto lotado de livros e artigos curiosos, estava “Em louvor das sombras”. Saltou-me aos olhos a fina espessura do livro que se contrastava com a bela capa azul, ilustrada com uma iluminura tradicional japonesa ao centro. Após ler o seu resumo de contracapa, tornou-se uma leitura pendente.
Como não o encontrava disponível em lugar algum (aquele exemplar do sebo virtual estava vendido, ou sendo lido naquele momento), decidi buscar por uma cópia sua na internet. Encontrei uma tradução em português... de Portugal. A linguagem rebuscada do português europeu em nada conversava com o estilo enxuto e direto do ensaísta japonês. Lembro claramente de leituras suas feitas na cama, nas quais eu acabava dormindo ― por mais interessante que fosse o texto.
Há mais ou menos dois anos, porém, em uma leva de livros doados para o Centro Acadêmico de Letras da minha faculdade, lá estava o danado outra vez, mas em versão anglófona: “In praise of shadows”, na primeiríssima edição dos Estados Unidos, pela Leete's Island Books, de 1977. Como eu tinha por mim que a língua inglesa e a japonesa de certa forma aproximavam-se quanto à sintaxe simplificada e à natureza ideogramática, de justaposição de vocábulos, achei que seria uma boa opção. Decidi dar mais uma chance ao livro.
E disso resultou uma das leituras mais fluidas e influentes da minha vida.
“Em louvor das sombras” parte de iniciais reclamações de Tanizaki sobre como as tecnologias elétricas como o abajur, a lâmpada, o ventilador e a grelha elétrica, importadas todas do Ocidente, estavam impactando negativamente sua cultura tradicional, sobretudo a sua arquitetura. No entanto, posteriormente Tanizaki desenha uma cartografia de como as sombras e as penumbras estão presentes na moda, na música, no comportamento e até mesmo na culinária japonesas; contrastando-as com a busca incessante pela luz dentro da cultura ocidental.
Tanizaki não se restringe somente à estética, e fala sobre as implicações de não haver uma ciência local e sobre como as invenções modernas não são desenhadas considerando os mais velhos (isso ainda no primeiro quarto do século XX!)
A edição estadunidense está prefaciada pela professor Charles Moore, da Escola de Arquitetura UCLA, o que pode dar a entender que o livro interessa apenas a quem está envolvido com design ou arquitetura. Ceio que, entretanto, seja um bom livro àqueles que se interessem pela cultura japonesa tradicional de um modo geral, bem como pelo efeito das novas tecnologias em povos que não estão circunscritos no seu desenvolvimento e produção.
Essa obra é mais um lembrete de que as tecnologias, mais do que importar discursos, abalam culturas inteiras...
“Os loureiros estão cortados” (1887), de Edouard Dujardin
Todos os livros sobre os quais falei até agora são aqueles que me instruíram sobre alguma coisa. Porém “Os loureiros estão cortados”, novela de Edouard Dujardin, foi um daqueles que mais me entreteram.
Como diz o escritor francês em uma carta a seus pais: “[O livro] é simplesmente o relato de seis horas da vida de um jovem apaixonado por uma demoiselle ― seis horas durante as quais nada, nenhuma aventura acontece, e, na maior parte do tempo, o personagem está sozinho”. É isso. Um passeio de fim de tarde e começo de noite de uma Paris vitoriana. C'est tout.
No entanto, todo o encanto dos “Loureiros” está em sua linguagem...
O texto todo é composto quase sempre em primeira pessoa, ou em “POV”, como defini “Se em uma noite de inverno um viajante”, de Italo Calvino, em uma das notas costuradas. Encantam em Dujardin a escrita impressionista, colorida e em movimento constante, sem elipses, logo, de “planos sequências”. É como assumir a posição de protagonista do livro.
James Joyce, romancista que escreveu o colossal “Ulisses”, recomendou “Os loureiros” a um amigo, a fim de que esse reconhecesse a inspiração do autor irlandês para o monólogo ininterrupto de Molly Bloom, de cerca de 150 páginas.
Certa vez o li em uma única tarde, durante uma viagem de duas horas na Serra Grande. Gosto de como as cenas são construídas e de como o uso da linguagem é posto como protagonista do livro, sempre a emular o “fluxo de consciência” (conceito esse, inclusive, para o qual essa novela foi determinante).
Se eu fosse escrever uma narrativa, seria algo como “Os loureiros estão cortados”. É um desses livros leves, mas extraordinariamente originais, que se leem quando tudo vai mal.
CC BY-NC 4.0 • Ideias de Chirico • Comente isto via e-mail • Inscreva-se na newsletter