Ideias de Chirico

Em lembrança do pintor surrealista greco-italiano Giorgio de Chirico (1888 - 1978), o maior ilustrador de ideias de jerico ― e de Chirico! Um blogue fediversal sobre cultura, cotidiano e tecnologia gerenciado por Arlon de Serra Grande e mantido em servidor coletivo da Ayom Media.

Ressalva: Nesta Ideia de Chirico, traduzi um ensaio que eu já compartilhara em alguma das Notas Costuradas. Trata-se de “The computer build to last 50 years”, onde se fala sobre o conceito de um computador eterno, de manutenção permanente, como o são as máquinas de escrever. O texto foi escrito em inglês por Lionel Dricot (m.c.c. Ploum), famoso blogueiro e escritor belga, que recentemente publicou um romance distópico, o “Bikepunk”. Outro dia trarei outros textos do Ploum traduzidos do francês.

Esta tradução foi sugerida por @diegopds@bolha.us, que também fez a revisão do texto. Termos técnicos que não têm relativas precisas em português foram mantidos ou têm sua forma original entre parênteses, antecedida de uma sugestão de tradução. Afora esses casos, tentei ao máximo buscar traduções ou mesmo criar palavras que se adequem ao português. Logo, reconheçam esta tradução como propositiva. Isso faz parte de uma política linguística aqui nas Ideias de Chirico de, sempre que possível, usar termos estrangeiros traduzidos ou aportuguesados. Tal política está melhor desenvolvida na aba “Sobre”, ao topo desta página.

Para aqueles que gostarem deste texto e souberem o idioma inglês, também sugiro a leitura de “Reinventing How We Use Computers”, em que Ploum discorre mais sobre como imagina o Forever Computer em termos visuais e ergonômicos.

Boa leitura!

Três máquinas de escrever e um dispositivo de escrever similar à máquina de escrever sobre um piso de tacos. Imagem granulada e em preto e branco

“O computador feito para durar 50 anos”, escrito por Lionel Dricot (Ploum) em 2021

Como criar um computador duradouro que poupará sua atenção, sua carteira, sua criatividade, sua alma e o planeta. Acabar com monopólios será somente uma das consequências.

Cada vez que vejo minha máquina de escrever Hermes Rocket (à esquerda na imagem), fico surpreso pelo fato dela parecer bem moderna e, depois de uma limpeza, funcionar como por mágica. O aparelho tem 75 anos e é uma peça de tecnologia bem complexa, com mais de 2000 partes móveis. Isso ainda é uma das melhores ferramentas para focar na escrita. Bem, nem tanto. Prefiro a mais jovem Lettera 32, que tem quase 50 anos (à direita na imagem).

Máquinas de escrever são uma peça de maquinaria incrivelmente complexa e precisa. Em seu auge, nas décadas em torno da Segunda Guerra Mundial, as fabricávamos tão bem que hoje já não precisamos mais fabricar máquinas de escrever. Simplesmente temos o suficiente delas na Terra. Você pode contestar que isso se deve porque ninguém mais as usa. Não é verdade. Um monte de escritores seguem as usando, elas ficaram na moda durante os anos 2010 e, para escapar da vigilância, alguns serviços secretos voltaram a utilizá-las. É um mercado bem nichado, mas existente.

Aprofundemos essa ideia: basicamente fabricamos o suficiente de máquinas de escrever para o mundo em menos de um século. Se quisermos mais máquinas, a solução não será fabricar mais, mas encontrá-las em sótãos e restaurá-las. Para a maioria das máquinas de escrever, restauração é somente questão de tomar tempo para fazê-lo. Não há habilidades ou ferramentas complexas envolvidas. Mesmo as operações mais difíceis poderiam ser aprendidas sozinhas, por simples tentativa e erro. Toda a teoria necessária para entender a máquina de escrever é a própria máquina de escrever.

Por outro lado, precisamos mudar nossos notebooks a cada três ou quatro anos. Nossos celulares a cada dois anos. E todas as outras peças de equipamento (carregadores, roteadores, modem, impressoras...) precisam ser trocadas regularmente.

Mesmo com a devida manutenção, elas simplesmente pifam. Não ficam mais compatíveis com seu ambiente. Já é impossível alguém sozinho saber perfeitamente o que elas estão fazendo, imagine consertá-las. Baterias se desgastam. Telas trincam. Processadores tornam-se obsoletos. Programas [software] tornam-se inseguros, isso quando não quebram ou se recusam a ser executados.

Não é que você mudou alguma coisa nos seus hábitos. Você ainda basicamente comunica-se com as pessoas, busca informações, vê vídeos. Mas hoje seu trabalho está no Slack, o que requer um CPU moderno para carregar a interface do que basicamente é um IRC enxuto. Seu programa de videoconferência usa um novo codec que requer um novo processador. E um novo roteador de rede sem fio [wi-fi]. Seu cliente de e-mail agora só roda em 64 bits. Se você não atualiza, fica largado ao léu.

Claro, computadores não são máquinas de escrever. Eles fazem bem mais do que máquinas de escrever.

Mas poderíamos imaginar um computador feito como uma máquina de escrever? Um computador que ficaria com você por toda sua vida e seria passado para seus filhos?

Poderíamos fazer um computador desenhado para durar ao menos 50 anos?

Bem, dado o modo como usamos os recursos do nosso planeta, a questão não é se poderíamos ou não. Precisamos fazê-lo, não importa como.

Então, como poderíamos fazer um computador que dure 50 anos? Isso é o que quero explicar neste ensaio. Em minhas notas, estou me referindo a esse objeto como o #ForeverComputer. Você deve ter um nome melhor. Isso não importa de fato. Não é o tipo de objeto que terá uma palestra anual para apresentar o modelo novo em folha, nem anúncios por todos os lados nos falando o quão revolucionário é.

Focando em casos de uso atemporal

Não tem jeito de se prever qual será o próximo codec de vídeo ou o próximo padrão de rede sem fio. Não há porquê de tentá-lo. Não se pode adivinhar que tipo de atividade online estará na moda nos próximos dois anos.

Em vez de tentar fazer isso tudo, a gente poderia focar em montar uma máquina que fará atividades atemporais, e fazê-lo bem. Minha máquina de escrever de 1944 ainda está escrevendo. Ainda está fazendo algo que acho útil. Em vez de tentar criar um plataforma de jogos genérica ou um computador para assistir à Netflix, vamos aceitar algumas limitações.

A máquina será feita para comunicar-se em formato escrito. Isso significa escrita e leitura. Isso já cobre um monte de usos. Escrita de documentos. Escrita de e-mails. Leitura de mensagens, documentos, livros digitais. Busca por informação na rede. Leitura de blogues, newsletters e fóruns.

Isso não parece muito, mas, se você pensar nisso, já é bastante. Muita gente ficaria feliz por ter um computador que faz somente isso. Claro, designers gráficos, produtores de filmes e gamers não ficariam felizes com um computador assim. Esse não é o ponto. É só que a gente não precisa de um computador novinho toda hora. Espaços de trabalho dedicados e poderosos ainda poderiam existir, mas poderiam ser compartilhados ou ser renovados menos frequentemente se todo mundo tivesse acesso ao seu próprio dispositivo para escrita e leitura.

Restringindo o uso, a gente cria muitas oportunidades de design.

Peças [hardware]

A meta de um computador de 50 anos não é ser miúdo, ultraportátil e ultrapotente. Em vez disso, tem de ser robusto e resiliente.

Na época da máquina de escrever, um aparelho de cinco quilos era considerado como ultraportátil. Como eu era acostumado a um MacBook de 900g e senti que meu Thinkpad de 1,1kg era volumoso, pude me imaginar sobrecarregado. Mas, assim que comecei a escrever em um Freewhite (na imagem, entre minhas máquinas de escrever), percebi algo importante. Se quisermos criar objetos duradouros, os objetos precisam ser capazes de criar uma conexão conosco.

A sensação com um objeto mais pesado e bem desenhado é diferente. Você não precisa dele sempre consigo só por precaução. Você não o joga na sua mochila sem pensar. Ele não está lá para lhe aliviar do tédio. Ao contrário, carregar o objeto é um comprometimento. Um ato consciente de que você precisa dele. Você o sente em suas mãos, sente o peso. Você está dizendo ao objeto: “Eu preciso de você. Você tem um propósito”. Quando tal comprometimento é feito, o propósito raramente é “rolar um fio sem fim de vídeos de gatos”. Ter um propósito torna mais difícil jogar o objeto fora porque uma versão novinha acabou de ser lançada. Isso também ajuda a desenhar uma linha entre os momentos nos quais você usa o objeto e os momentos em que não o usa.

Além de robustez, um dos principais objetivos do ForeverComputer seria usar o mínimo de eletricidade possível. Baterias devem ser facilmente substituíveis.

A fim de que se torne relevante para os próximos 50 anos, o computador precisa ser feito com partes facilmente substituíveis. As inspirações são o Fairphone e o notebook da MNT Reform. As especificações de todas as partes precisam ser de código aberto, logo todo mundo pode produzi-las, consertá-las ou mesmo inventar alternativas. As partes poderiam ser separadas em alguns blocos lógicos: a unidade da computação, o que inclui a placa-mãe, CPU e RAM; a unidade de energia, ou seja, a bateria, a tela, o teclado; a unidade de rede, a unidade de som e a unidade de armazenamento. Tudo isso vem em um revestimento.

Claro, cada bloco poderia ser feito de componentes separados que poderiam ser consertados, mas fazer blocos lógicos claros com interfaces definidas nos permite uma compatibilidade mais fácil. O corpo requer atenção especial porque isso vai ser a essência do objeto. Assim como para o navio de Teseu, o computador pode permanecer o mesmo ainda que você substitua cada parte. Mas o revestimento protetor é especial. Desde que você mantenha o revestimento original, a sensação para com o objeto seria a de que nada foi mudado.

Em vez de ser produzido em massa na China, ForeverComputers poderiam ser fabricados localmente, a partir de cópias do projeto, de código aberto. Manufaturadores poderiam trazer em jogo suas próprias habilidades, suas próprias experiências. A gente poderia ir mais longe conectando cada ForeverComputer a um sistema do tipo Mattereum, em que modificações e reparos serão listadas. Assim, cada computador seria único, com uma história de pertencimento. Assim como o Fairphone, o computador deveria ser fabricado com materiais da forma mais ética possível. Se você quer criar uma conexão com um objeto, se você quiser dar-lhe uma alma, esse objeto deveria ser o mais respeitoso possível com seus princípios éticos.

Escolhas optativas

Logo que temos a escolha de usar sobretudo um computador para a interação escrita, faz sentido, no estado atual da tecnologia, usar uma tela de tinta eletrônica [e-ink]. Telas de tinta eletrônica economizam bastante energia. Isso faria toda a diferença entre um dispositivo que você tem de recarregar toda noite, trocando a bateria a cada dois anos, e um dispositivo que basicamente fica ocioso por dias, algumas vezes por semanas, e que você recarrega uma vez ou outra. Ou que você nunca precisa recarregar se, por exemplo, o revestimento protetor externo vier com painéis solares ou uma manivela emergencial.

Tela de tinta eletrônica atualmente é mais difícil de ser usada com mouses e dispositivos de apontar [pointing devices]. Mas a gente pode construir um computador sem nenhum dispositivo de apontar. Geeks e programadores sabem do benefício de fluxos de trabalho voltados ao teclado. Eles são eficientes, mas difíceis de aprender.

Com um programa dedicado, esse problema poderia ser resolvido de forma inteligente. O Freewrite tem uma parte dedicada na tela, sobretudo usada para estatísticas textuais ou para a disposição da hora. Esse conceito poderia ser estendido para mostrar comandos disponíveis. Boa parte das pessoas está pronta para aprender como usar suas ferramentas. Mas, ao mudar a interface toda hora com atualizações imprevistas, ao pedir que designers inovem em vez de focar em utilidade, a gente esquece de qualquer aprendizado a longo prazo, considerando usuários como idiotas em vez de os empoderar.

Podemos criar uma interface para o usuário orientada ao texto com uma curva de aprendizado gradual? Para um dispositivo que deve durar 50 anos, isso faz sentido. Por essência, tal dispositivo deve revelar a si mesmo, desbloqueando seus potenciais gradualmente. Um design cuidadoso não será sobre “mirar um dado segmento consumidor”, mas “fazê-lo útil para humanos que dedicaram tempo para aprender”.

Claro, alguém pode imaginar a substituição de um bloco de inserção de dados [input block] para ter um teclado com um dispositivo de apontar, como o famoso ponto vermelho da Thinkpad. Ou um mouse USB poderia ser conectado. Ou a tela poderia ser sensível ao toque. Mas e se a gente tentasse fazer o máximo que pudermos sem eles?

Tinta eletrônica sem dispositivo de apontar mataria qualquer rolagem infinita, forçando-nos a pensar na interface do usuário como uma ferramenta textual que deve ser eficiente e servir ao usuário, mesmo que isso requeira algum aprendizado. Ferramentas precisam ser aprendidas e cuidadas. Se você não precisa aprender, se você não precisa cuidar, então provavelmente não é uma ferramenta. Você não está a usando, você está sendo usado.

Claro, isso não significa que todo usuário precisa aprender a programar a fim de estar preparado para usar isso. Uma boa interface durável requer algum aprendizado, mas não requer quaisquer modelos mentais complexos. Você entende intuitivamente como uma máquina de escrever funciona. Você pode aprender alguns recursos mais complexos como tabulações. Mas você não precisa entender como o mecanismo interno funciona para recuar o papel com cada pressionar de tecla.

Offline por padrão

Nossos dispositivos atuais esperam estar online todo o tempo. Se você se desconecta por qualquer motivo, verá um monte de notificações, um monte de erros. Em 2020, usuários de MacOS infamemente descobriram que seus SO estavam enviando várias informações para os servidores da Apple, porque, por algumas horas, esses servidores não estavam respondendo, resultando em uma epidemia de bugues e erros. Ao mesmo tempo, simplesmente tentar usar meu notebook offline permitiu-me encontrar um bugue na distribuição Regolith Linux. Esperando estar online, uma pequena aplicação [applet] tentava reconectar furiosamente, usando toda a CPU disponível. O bugue nunca foi achado antes de mim porque poucos usuários ficam offline por um extenso período de tempo (deve-se notar que isso foi consertado nas horas que se seguiram ao meu informe inicial, código aberto é massa).

Essa conectividade permanente tem um efeito profundo na nossa atenção e no modo com que usamos computadores. Por padrão, o computador está nos notificando o tempo inteiro com sons e popapes. Desligá-los requer uma configuração avançada e, algumas vezes, raque [hack]. No MacOS, por exemplo, você não pode ligar o modo Não Perturbe permanentemente. Propositalmente, não ser perturbado é algo que deve ser raro. O raque que eu usava era configurar o modo para ser ativado automaticamente entre 3h da manhã e 2h da manhã.

Quando você está online, seu cérebro entende que algo pode estar acontecendo, mesmo sem notificação. Pode haver um novo e-mail esperando por você. Qualquer coisa nova em um website aleatório. Está lá, bem no seu computador. Basta mover a janela aberta para fora e você pode ter algo que você está ansiando: novidade. Você não tem de pensar. Logo que você tenha algum pensamento difícil, seus dedos provavelmente irão encontrar alguma diversão espontaneamente.

Mas essa conexão permanente é uma escolha. A gente pode desenhar um computador para ser offline por padrão [offline first]. Uma vez conectado, ele sincronizará tudo de que precisa: e-mails serão enviados e recebidos, notícias e podcasts serão baixados dos seus websites e RSS, arquivos serão subidos, alguns websites ou gemini pods podem até mesmo ser baixados até uma dada intensidade. Isso seria algo consciente. O estado da sua sincronização será mostrada em tela cheia. Por padrão, você não seria permitido de usar o computador enquanto estivesse online. Você verificaria se toda a sincronização foi finalizada para então deixar o computador offline de volta. Claro, a tela cheia poderia ser contornada, mas você precisaria fazê-lo conscientemente. Estar online não seria um padrão irracional.

Esse projeto de “offline por padrão” também teria um profundo impacto nas peças. Isso significa que, também por padrão, o bloco de rede poderia ser cabeado. Tudo de que você precisaria seria um simples conector RJ-45.

A gente não sabe como os protocolos de rede sem fio mudarão. Há uma grande possibilidade de que a rede sem fio de hoje em dia não seja suportado pelos roteadores de amanhã ou apenas seja um plano de recuperação alternativo. Mas há chances de que o RJ-45 permanecerá por ao menos algumas décadas. E se não o RJ-45, um simples adaptador poderia ser impresso.

Rede sem fio tem outros problemas: ela suga energia. Precisa de sempre estar escaneando em plano de fundo. Não é confiável e é complexa. Se você quer conectar-se à rede sem fio só por um instante, precisa habilitá-la, esperar pela busca em plano de fundo, escolher a rede para se conectar, cruzar seus dedos para que não haja nenhum ponto de acesso aleatório que queira espiar seus dados, escrever a senha. Esperar. Reescrever a senha porque provavelmente você escreveu um zero em vez de um O. Esperar. Parece que está conectado. É isso? Todos os arquivos estão sincronizados? Por que a conexão foi interrompida? Será que estou fora da área? Será que as paredes são muito grossas?

Por outro lado, tudo isso poderia ser alcançado plugando um conector RJ-45. Tem uma luzinha verde ou laranja? Sim, então o cabo está bem plugado, problema resolvido. Isso também acrescenta consciência de conexão. Você precisa andar até o roteador e fisicamente conectar o cabo. A sensação é de estar enchendo o tanque com informação.

Claro, a concepção de código aberto significa que qualquer um pode produzir uma placa de rede sem fio ou 5G que você pode plugar em um ForeverComputer. Mas, assim como os dispositivos de apontar, vale a pena tentar ver o quão longe podemos ir sem ela.

Apresentando a conectividade ponto a ponto (P2P)

O paradigma de “offline por padrão” leva a uma nova era de conectividade: P2P (physical peer to peer)¹. Em vez de conectar-se a um servidor central, você pode conectar dois computadores aleatórios com um simples cabo.

Durante essa conexão, ambos computadores dirão um ao outro do que eles necessitam e, se por algum caso puderem satisfazer alguma dessas necessidades, as satisfarão. Eles poderiam também transmitir mensagens criptografadas para outros usuários, como garrafas no mar. Se acontecer de você encontrar Alice, por favor, dê-lhe esta mensagem.

Conexão entre pares implica em forte criptografia. Informação privada deve ser criptografada sem nenhum outro metadado que não o destinatário. O computador conectando-se a você não tem ideia se você é o remetente original ou somente um nó da cadeia de transmissão. Informação pública deve ser assinada, então você tem a certeza de que vêm do usuário que você confia.

Isso também significa que nossos discos rígidos enormes poderiam ser usados totalmente. Em vez de assentar-se em um monte de discos rígidos vazios, seu armazenamento agirá como um mensageiro para outros. Quando estiver cheio, de forma inteligente apagará coisas mais velhas e provavelmente menos importantes.

A fim de usar meu computador offline, eu baixei a Wikipédia, com gravuras, usando o programa Kiwix. Isso só tomou 30GB do meu disco rígido e posso ter a Wikipédia comigo todo o tempo. Só me falta uma toalha para ser um verdadeiro mochileiro das galáxias.

Nesse modelo, grandes servidores centrais apenas servem como um portal que faz as coisas acontecerem mais rápido. Eles não são mais necessários. Se um portal central desaparecer, não há um grande problema.

Mas não é só sobre Wikipédia. Protocolos como IPFS pode nos permitir construir toda uma internet P2P e sem servidores. Em algumas áreas rurais do planeta, onde o acesso à banda larga não é fácil, tais Redes Tolerantes a Atraso (Delay Tolerant Networks ― DTNs) já são funcionais e extensivelmente em uso, incluindo para navegar na internet.

Programas [Software]

Não precisa dizer que, a fim de construir um computador que poderia ser usado pelos próximos 50 anos, todo programa deve ser de código aberto.

“Código aberto” significa que bugues e problemas de segurança podem ser resolvidos muito tempo depois de que a empresa que os codificou desapareceu. Mais uma vez, veja as máquinas de escrever. Muitas empresas desapareceram ou se transformaram a ponto de não serem mais reconhecidas (tente trazer de volta o seu IBM Selectric para um atendente da IBM pedindo por um conserto, só para ver a cara dele. E, sim, seu IBM Selectric provavelmente tem exatamente 50 anos). Mas máquinas de escrever ainda são uma coisa porque você não precisa de uma empresa para consertá-las para você. Tudo de que precisa é um pouco de tempo, destreza e conhecimento. Para as partes faltantes, outras máquinas de escrever, algumas vezes de outras marcas, podem ser recolhidas.

Para um computador de 50 anos atinja o mercado, precisamos de um sistema operacional. Essa é a parte mais fácil já que os melhores sistemas operacionais que há já são de código aberto. Precisamos também de uma interface de usuário que deve ser dedicada para nossas necessidades particulares. Isso é um trabalho duro, mas viável.

A parte da rede P2P offline por padrão é talvez a parte mais desafiadora. Como dito antes, peças essenciais como IPFS já existem. Mas tudo tem que ser colado junto com uma boa interface de usuário.

Claro, faz sentido confiar primeiramente em alguns servidores centrais. Por exemplo, codificar em Debian e conseguir subir todos os recursos dedicados como parte do repositório oficial do Debian já oferece alguma garantia a longo prazo.

O ponto principal é mudar nossa postura psicológica a respeito de projetos tecnológicos. Descartemos a mentalidade do Vale do Silício de tentar permanecer na surdina para então, do nada, tentar ter o máximo de fatia de mercado possível a fim de contratar mais desenvolvedores.

O próprio fato de eu estar escrevendo isto publicamente é um compromisso com o espírito do projeto. Se nós conseguirmos mesmo fazer um computador que seja utilizável por 50 anos e eu estiver envolvido, quero que se destaque que, desde sua primeira descrição, tudo foi feito de forma aberta e livre.

Mais sobre a perspectiva

Um computador feito para durar 50 anos não é sobre fatia de mercado. Não é sobre levantar uma marca, arrecadar dinheiro de capital de risco [venture capital] e ser vendido por um monopólio. Não é sobre criar um unicórnio ou mesmo um bom negócio.

É tudo sobre criar uma ferramenta que ajude a humanidade a sobreviver. É tudo sobre tomar o melhor de oito bilhões de cérebros para criar esta ferramenta, em vez de contratar alguns programadores.

Claro, a gente precisa pagar as contas. Uma empresa pode ser um bom veículo para criar um computador ou ao menos partes dele. Não há nada de errado com empresas. Na verdade, penso que uma empresa é atualmente a melhor opção. Mas, logo no início, tudo deve ser feito levando em consideração que o produto deve durar mais do que a empresa.

O que significa que os clientes comprarão uma ferramenta. Um objeto. Isso lhes pertencerá. Eles poderão fazer o que quer que seja com isso posteriormente.

Parece óbvio, mas hoje em dia quase todos os itens de alta tecnologia que compramos não nos pertence. Nós os alugamos. Dependemos da empresa para os utilizar. Não somos permitidos a fazer o que queremos. Somos até mesmo forçados a fazer coisas que não queremos como atualizar programas em um momento inadequado, enviar dados sobre nós, e hospedar programas que não queremos usar, que não podem ser removidos, ou usar serviços de nuvem proprietários.

Parando para pensar, o computador feito para durar 50 anos é uma tentativa de lidar com o consumo excessivo de dispositivos, de combater monopólios, de reivindicar nossa atenção, nosso tempo e nossa privacidade e de nos libertar de indústrias abusivas.

Não é muito para um único dispositivo? Não, porque esses problemas são todos faces diferentes de uma mesma moeda. Você não pode combatê-los separadamente. Você não pode combatê-los em seus próprios campos. A única esperança? Mudar o campo. Mudar as regras do jogo.

O ForeverComputer não é uma substituição. Ele não será melhor do que seu MacBook ou seu tablet Android. Não será mais barato. Será diferente. Será uma alternativa. Lhe permitirá que use seu tempo em um computador de forma diferente.

Ele não precisa substituir tudo o mais para vencer. Precisa somente existir. Fornecer um espaço seguro. O Mastodon jamais substituirá o Twitter. O Linux para computadores jamais substituiu o Windows. Mas eles são um imenso sucesso porque existem.

Podemos sonhar. Se o conceito tornar-se popular o suficiente, alguns negócios podem tentar tornar-se compatíveis com esse mercado de nicho. Alguns sites ou serviços populares podem tentar tornar-se acessíveis em um aparelho que fica offline a maior parte do tempo, que não requer por padrão um dispositivo de apontar e que requer somente uma tela de tinta eletrônica.

Claro, esses negócios poderiam encontrar algo mais do que publicidade, taxa de cliques e visualizações para arrecadar dinheiro. Esse é o ponto principal. Cada oportunidade de substituir um trabalho de publicidade (o que inclui todos os funcionários da Google e do Facebook) por um meio honesto de arrecadar dinheiro é um passo de destruir um pouco menos o nosso planeta.

Construindo as primeiras camadas

Há um equilíbrio delicado em jogo quando uma inovação tenta mudar nossa relação com tecnologia. A fim de ter sucesso, precisam-se de tecnologias, um produto e conteúdos. A maioria dos tecnólogos tenta primeiro fazer as tecnologias, então os produtos inseridos nelas, então espera pelo conteúdo. Ou isso falha, ou torna-se um troço de nicho. Para ter sucesso, deve haver um jogo de vai-e-vem entre essas etapas. As pessoas têm de gradualmente usar os novos produtos sem o perceber.

O ForeverComputer que descrevi aqui nunca ganharia tração real se lançado hoje. Seria incompatível com muitos dos conteúdos que consumimos todo dia.

O primeiríssimo pequeno passo que imaginei é fazer algum conteúdo que poderia mais tarde já estar compatível. Como não sou o cara do hardware (sou um escritor com experiência em software), isso também é o passo mais fácil que eu mesmo poderia fazer hoje.

Eu chamo esse primeiro passo de WriteOnly [“Só-Escreva”]. Ele não existe ainda, mas é bem mais realista do que o ForeverComputer.

WriteOnly, como o imagino, é uma ferramenta minimalista de publicação para escritores. A meta é simples: escrever arquivos de texto em Markdown no seu computador. Mantê-los. E publicá-los pelo WriteOnly. Os leitores escolherão como ler. Eles podem ler em um site como um blogue, receber seu texto por e-mail ou RSS se eles estiverem inscritos, podem também optar por ler através do Gemini, do DAT ou do IPFS². Podem receber uma notificação através de uma rede social ou através do Fediverso. Isso não lhe interessa. Você não deve se importar com isso, só escrever. Seus arquivos de texto que são sua escrita.

Os recursos são mínimos. Sem comentários. Sem rastreio. Sem estatísticas. Imagens ficam granuladas [dithered] e em escala de cinza por padrão (um formato que permite que fiquem incrivelmente leves ao tempo que ficam mais informativas e mais nítidas do que imagens totalmente coloridas quando dispostas em uma tela de tinta eletrônica).

A meta do WriteOnly é impedir que escritores fiquem preocupados com onde publicar um determinado escrito. Ele também é uma luta contra a censura e o conformismo cultural. Escritores não devem tentar escrever para agradar aos leitores de uma dada plataforma, de acordo com a métrica dos magnatas dessa plataforma. Eles devem conectar-se com seus eus internos e escrever, lançando palavras aos ventos.

Nunca sabemos qual será o impacto de nossas palavras. Devemos deixar nossa escrita livre em vez de reduzi-la a uma ferramenta de marketing para vender coisas ou a nós mesmos.

O benefício de uma plataforma como WriteOnly é que, ao adicionar um novo método de publicação, todo o conteúdo existente seria adicionado nela. A meta final é manter sua escrita acessível para qualquer um sem deixar hospedado em nenhum lugar certo. Poderia ser através de IPFS, DAT ou qualquer novo protocolo em cadeia de blocos [blockchain]. Não sabemos ainda, mas já podemos trabalhar no WriteOnly como uma plataforma de código aberto.

Também podemos já trabalhar no ForeverComputer. Provavelmente haverá diferentes versões. Alguns podem falhar. Outros podem reinventar a computação pessoal como a conhecemos.

Em todo caso, sei o que quero amanhã.

Quero um computador de código aberto, sustentável, descentralizado, offline por padrão e durável.

Quero um computador feito para durar 50 anos e posto na minha mesa próximo à minha máquina de escrever.

Quero um ForeverComputer.

Faça acontecer

Como falei, sou um cara do software. É improvável que eu consiga fazer o ForeverComputer acontecer sozinho. Mas ainda tenho um monte de ideias de como fazê-lo. Também quero focar primeiro no WriteOnly. Se você acha que poderia me ajudar a torná-lo realidade e quer investir nesse projeto, contate-me por lionel@ploum.net.

Se você gostaria de usar um ForeverComputer ou um WriteOnly, pode também seguir este blogue (que está sobretudo em francês) ou inscrever-se aqui em um grupo de discussão [mailing-list] dedicado. Não venderei esses endereços, não os compartilharei e não os usarei para nada além de informá-los sobre o projeto quando se tornar realidade. Na verdade, há uma boa chance de que nenhuma mensagem seja enviada para este grupo de discussão dedicado. E, para tornar as coisas mais difíceis, você terá que confirmar seu endereço de e-mail clicando em um link dentro de uma mensagem de confirmação escrita em francês.

ATUALIZAÇÃO de dezembro de 2022: o grupo de discussão agora é uma lista de discussão aberta:

https://lists.sr.ht/~lioploum/forevercomputer

Leituras complementares

“The Future of Stuffs”, de Vinay Gupta. Um livro curto, de leitura obrigatória, sobre nossa relação com os objetos e a fabricação.

“The Typewriter Revolution”, de Richard Polt. Um livro e guia completo sobre a filosofia por trás das máquinas de escrever no século XXI. Quem as utiliza, como e por que usar uma você mesmo em uma era de conectividade permanente.

NinjaTrappeur fez em casa uma máquina de escrever digital com uma tela de tinta eletrônica em um revestimento de madeira:

https://alternativebit.fr/posts/ultimate-writer/

Outro projeto DIY com tela de tinta eletrônica e painel solar inclusos:

https://forum.ei2030.org/t/e-ink-low-power-cpu-solar-power-3-sides-of-the-same-lid/82

SL está usando um sistema operacional velho e experimental (Plan9), que o permite de fazer somente o que ele quer (e-mail, navegação de web simples e programação).

http://helpful.cat-v.org/Blog/2019/12/03/0/

Dois artistas vivendo fora de rede em um barco a vela e conectando-se só raramente.

https://100r.co/site/working_offgrid_efficiently.html

“Se alguém produzisse uma máquina de escrever simples, uma máquina de escrever eletrônica que fosse silenciosa, que eu pudesse usar em aviões, que me mostrasse uma tela de 8,5 por 11, como uma página regular, e eu pudesse armazenar nela e imprimir a partir dele como um manuscrito, eu compraria um na mesma hora!” (Harlan Ellison, escritor de ficção científica e cenarista de Star Trek).

http://harlanellison.com/interview.htm

LowTech magazine tem um artigo excelente sobre uma internet low-tech, incluindo Redes Tolerantes a Atraso: https://solar.lowtechmagazine.com/2015/10/how-to-build-a-low-tech-internet.html

Outro artigo da LowTech magazine sobre o impacto que as máquinas de escrever e os computadores tiveram no trabalho de escritório.

https://solar.lowtechmagazine.com/2016/11/why-the-office-needs-a-typewriter-revolution.html

ATUALIZAÇÃO de 6 de fevereiro de 2020: esqueci completamente de Scuttlebutt, que é uma rede social offline por padrão e P2P. Ela faz exatamente o que estou descrevendo aqui para se comunicar.

https://scuttlebutt.nz/get-started/

Uma boa e curta introdução sobre a rede no BoingBoing:

https://boingboing.net/2017/04/07/bug-in-tech-for-antipreppers.html

ATUALIZAÇÃO de 8 de fevereiro de 2020: o excelente “Tales from the Dork Web” tem uma edição sobre o Computador de 100 Anos, que é surpreendentemente similar a este ensaio.

https://thedorkweb.substack.com/p/the-100-year-computer

Adiciono também esta tentativa a um protocolo offline por padrão: o protocolo Pigeon:

https://github.com/PigeonProtocolConsortium/pigeon-spec

E outra máquina de escrever DIY com tinta eletrônica:

https://hackaday.com/2019/02/18/offline-e-paper-typewriter-lets-you-write-without-distractions/

ATUALIZAÇÃO de 15 de fevereiro de 2020: o designer Micah Daigle propôs o conceito de Prose, um notebook com tinta eletrônica e livre de distrações.


¹: Nota do revisor desta tradução: “P2P físico”, a meu ver, é uma redundância. Aqui, sou obrigado a entrar mais fundo num detalhe técnico. Não sei se Ploum tem conhecimento sobre redes de computadores. Mas a rede ponto a ponto (P2P) surge justamente na rede física composta por dois computadores: um ligado ao outro por meio de um cabo; o P2P não-físico seria, por exemplo, o Torrent (que comumente se dá via internet).

²: Sugestão de leituras sobre os protocolos Gemini e IPFS: Gemini (protocolo) – Wikipédia, a enciclopédia livre, Dat (software) – Wikipedia e Sistema de Arquivos Interplanetário – Wikipédia, a enciclopédia livre.

#tradução #tecnologia


CC BY-NC 4.0Ideias de ChiricoComente isto via e-mailInscreva-se na newsletter


Imagem monocromática de uma rua vazia de cidade pequena.

Imagem de uma rua da Serra Grande, onde estas notas foram costuradas.

O quê? Mais uma coletânea de notas? Paciência. Estou traduzindo dois textos, escrevendo outro, e, enquanto eles não saem, textos improvisados são tudo o que posso oferecer. Eis aí notas que não consegui desenvolver o suficiente para uma publicação independente, publicações minhas de outros lugares, recomendações de links e tutti quanti. Afinal, este blogue é meu data lake.

Isso o algoritmo não mostra!

Há alguns anos, nos meios antigoverno havia o bordão de que “Isso a Globo não mostra!”. Tinha-se a ideia, não sem razão, de que a TV Globo, mais preocupada em alheiar o telespectador da realidade autóctone, tirava-lhe alguma consciência política, mostrava-lhe o cenário cor de rosa das novelas, do mundo das celebridades.

Quando a internet surgiu, era a expectativa de que o Muro de Berlim dos meios hegemônicos caísse. Toda a informação estaria agora disponível ― mas caoticamente. Como acessar esse mar de dados? Como partir do bit para o dado, do dado para a informação e da informação para o conhecimento?

Curadoria.

Aí residia a importância dos blogues, dos indexadores, de motores de busca e de outras plataformas.

Mas então, com o TikTok, há o sucesso dos algoritmos de curadoria de conteúdo, um tipo de inteligência artificial muito mais danosa para a cultura do que as conhecidas LLM. Se eu abrir neste momento a aba reels do Instagram, saberei exatamente o que verei ― aquilo que mais amo, aquilo com o qual mais me identifico, aquilo que mais me define como pessoa.

Com o algoritmo de curadoria de conteúdo, o outro, aquilo que desconheço e pelo qual sou desconhecido e aquilo que mais me estranha não me é apresentado. E assim a minha noção de alteridade fica estanque e circunscrita a um pequeno circuito.

A esta altura, devemos refletir: a quem servem os algoritmos de curadoria de conteúdo? A quem serve o ser humano cercado daquilo que ele mesmo deixou que um outro lhe apresentasse, um outro que não está aberto ao escrutínio externo, mas que, apesar de tudo, conhece-o como a palma de sua mão invisível e não humana? O que pode acrescentar, nutrir ou expandir uma ferramenta que me mostrará somente aquilo de que gosto e com o qual me identifico?

O que o algoritmo não mostra?

(O midiólogo Marshall McLuhan define o mito de Narciso como a metáfora do ser humano encantado, não por si mesmo, mas pela imagem como a extensão de seu próprio corpo).

Se antes, quando da popularização da internet, o bom uso de um motor de busca residia no uso inteligente das palavras-chaves, agora como fazer um bom uso do algoritmo de curadoria de conteúdo, sem que caiamos em um lupe de conteúdo adocicado, de fácil digestão e que não expande a nossa sensibilidade ou o nosso mapa cultural?

A resposta está, mais uma vez, no hacking.

É preciso trapacear com as tecnologias se quisermos tirar seu máximo de proveito. No caso dos algoritmos de curadoria, é preciso que se aplique ao máximo o conceito zen-budista de “destacamento”: urge que larguemos mão daquilo que mais amamos e mesmo daquilo que mais nos define como pessoa social ― nacionalidade, língua, gênero, gosto cultural. Como fazê-lo? Usando VPN, um alias mail, trocando a língua do dispositivo e evitando um comportamento automático diante do aplicativo ― esta, a trapaça mais difícil de todas.

Posso sair do espectro do conteúdo masculino-jovem-branco-nerd-intelectual sempre que eu puder quando criar uma persona que fuja desse perfil dentro de alguma plataforma.

Somado a isso tudo e também graças à [minha tática de utilizar o TikTok de uma forma não viciante](), o algoritmo levantou um perfilamento errôneo a partir dos escassos dados. Na minha aba principal (For You), aparece-me um conteúdo voltado ao público feminino, branco, empreendedor, de classe média, não falante de português brasileiro (inclusive falando do Brasil em outras línguas).

Só assim, com trapaça e letramento digitais, tem-se acesso àquilo que não está circunscrito ao nosso ambiente ordinário e à nossa identidade cultural, social etc.

A partir do momento em que o algoritmo de curadoria acertar e o aplicativo ficar cada vez mais e mais sedutor, basta que se resete a preferência de conteúdo e criar uma nova persona.

Por uma tecnologia wabi-sabi

Minha escrivaninha tem mais de dez anos. Quanto mais velha, mais charmosa fica, e mais prazerosa é a experiência de se escrever sobre ela. Feita no saguão do meu tio marceneiro, é de uma madeira barata e não tem verniz. Todo o seu tempo está marcado em sua superfície e não há modo ― nem razão ― de o esconder. Aqui, forma e conteúdo respondem um ao outro.

Minha mesa é wabi-sabi. Wabi-sabi é o conceito japonês que, inspirado pela natureza, define a beleza das coisas a partir de sua imperfeição. A natureza é bela, porque é irregural, inconstante e imprevisível.

Meu computador portátil, sobre essa mesma escrivaninha, também tem mais de dez anos. Mas algo falta aqui... Feito de plástico fino, está rachado em um canto, tem Durepox nas dobradiças. Uma ótima representação do navio de Teseu, suas peças já foram trocadas mais de uma vez sem perder, no entanto, sua essência.

Meu computador, ao contrário da mesa feita pelo meu tio, não foi feito para durar e não foi desenhado para durar mais do que dez anos, não foi feito como um objeto que aceita as intempéries do tempo.

A resposta para um design tecnológico wabi-sabi pode ser encontrado no livro “Em louvor das sombras”. Objetos que sejam claros, translúcidos ou que refletem em demasia, tendem a envelhecer mal ― edifícios com revestimento polido, roupas claras de tecidos finos, panelas de alumínio, mesas de madeira compensada lisa, computadores da Apple ―; objetos com porosidade, escuros ou que tendem a conter o reflexo, tendem a envelhecer bem ― edifícios brutalistas, roupas de tecido rústico, panelas de barro, mesas de madeira inteiriça e desvernizada, computadores da IBM.

Objetos wabi-sabi, táteis que são, criam uma boa conexão conosco, já que cada minuto que se passa com eles é apreciado.

Imagem monocromática de uma praça em uma cidade pequena.

Imagem da Serra Grande.

Sobre a lembrança e a escrita

Costumo escrever no meu diário com algum atraso. Por exemplo, se hoje é dia 3 de julho, só vou escrever sobre este dia amanhã ou depois de amanhã.

Porque não sei o peso dos fatos quando estou os vivendo. Já houve mais de uma vez em que busquei algum escrito de algum dia marcante e tudo o que consegui encontrar foram reclamações e comentários de autossubestimação, feitos no calor do momento.

Preciso de um tempo para escrever sobre algo que vivi até que isso se torne uma lembrança sólida. E não há garantias de que a impressão do que você acabou de viver é sólida; tampouco de que a lembrança do que você viveu mês passado é sólida.

Acho que um ou dois dias é o suficiente para apontar uma lembrança relevante e ao mesmo tempo confiável.

Inveja linguística

Há uma expressão em inglês que eu queria muito que tivesse uma equivalente em português ou que fosse aportuguesado.

Em inglês, se você pede ajuda para uma pessoa e ela, ou não se esforça, ou responde uma parada bem óbvia, você pode falar:

Thanks for nothing!

Dizer “Ainda bem que você me falou”, como é corrente no Brasil, é de uma ironia mais sutil… Não é tão escrachado quanto “thx 4 nothing”.

Pior que, se a gente traduzir literalmente, parece que estamos agradecendo e respondendo ao agradecimento ao mesmo tempo: “Obrigado por nada” (“Obrigado!”, “Por nada!”).

Ensaio de uma análise do discurso sobre o verbo “consumir”

Há alguns anos, se algum amigo seu quisesse saber o que você tem assistido, lido ou ouvido, perguntaria assim mesmo: o que você tem assistido, lido ou ouvido? Vocês dois talvez estivessem por encontrar-se em um bar ou restaurante para consumir uma cerveja, consumir uma bebida, consumir algum serviço. Ao fim do encontro, pagariam pelo que consumiram.

Hoje, na mesma situação, “consumir” seria o mesmo verbo utilizado para falar de música, de cerveja, de literatura ou de serviços de streaming.

O curioso é que no período em que não havia outra forma de ter acesso às formas de entretenimento que não pagando por elas, não se falava de “consumir” uma música ou um filme, mas de assistir, ouvir, usufruir ou simplesmente apreciar.

Creio que isso tenha pouco a ver com o fato das formas de entretenimento terem pulado do ramo do compartilhamento virtual livre para o do espaço dos streamings, mas que denuncie a influência da cultura de influenciador sobre as formas de entretenimento.

Isso pode pôr pouco a pouco a cultura e os bens de consumo em um mesmo patamar, como coisas perecíveis e passíveis de um mesmo processo cíclico de produção. Isso é um embrolho que sutilmente pode reduzir o valor do artista e dos trabalhadores da cultura.

Um navegador orientado ao teclado

Estou adorando conhecer o navegador qutebrowser, totalmente orientado ao teclado. Ele é baseado no editor de textos Vim, altamente configurável e torna a navegação muito mais confortável. O trade-off é que você leva um tempo procurando entender o mecanismo e também aprendendo atalhos, mas é algo que se aprende naturalmente.

Mas aprender é o ordinário na tecnologia...

Quando você passa a usar esse tipo de recurso, passa a priorizar bastante a ergonomia e passa a perceber o quão intuitivo é o mouse ― e o quão era difícil usar computadores antes desse periférico.

Por outro lado, ao se utilizar maismente o teclado, está-se mais preparado para uma privação hipotética de um dispositivo de interação mais visual. A importância dessa ideia está melhor desenvolvida no ensaio de Ploum que estou a traduzir, “O computador feito para durar 50 anos”.

Descoberta de um potencial

Em julho de 2025 completou um ano desde que comecei a estudar francês ― sozinho, sem aulas formais. Agora já sou capaz de compreender textos complexos e vídeos de nível C2. Claro, com legendas e sobre determinados assuntos.

De qualquer modo, acho que encontrei um talento...

Citações

Um homem offline é mais elegante.

― Anônimo.

Viver é diferente de estar vivo.

― povo da Serra Grande.

Algumas perguntas que tenho e que não tive o tempo de pesquisar a respeito:

  1. Por que é mais fácil pensar em cores pastéis do que em cores vibrantes?

  2. Por que a cor do sol nascente é mais branco enquanto a cor do sol poente é mais amarelo?

  3. Existe algum mamífero de cor verde?

Linkroll

cute cars, um blogue hospedado na neocities.org sobre carros. Carros fofinhos. Parece um espaço vindo direto dos primórdios da internet só que falando de modelos automotivos modernos. Mesmo que os carros atuais sejam todos muito iguaizinhos e sem graça, ainda há aqueles que atiçam nosso lado “ite, Malia”.

P.S.: fiquei triste pelo meu modelo favorito da atualidade, o Chery QQ3, não estar no cute cars ainda!

Yana Yuhai, em sua newsletter “Contemplation Station”, traz reflexões sobre por que o tempo passava mais devagar durante a infância e dá algumas orientações sobre como podemos trazer essa lentidão de volta.

• why time felt slower when we were kids (and how to get it back)

A página pagemelt, conhecida por seus longos vídeos-ensaios, publicou recentemente um vídeo sobre curadoria na internet. Isso me chamou a atenção, porque raramente alguém tece críticas ao algoritmo, uma inteligência artificial que limita a nossa própria capacidade de explorar a internet e nos põe em um estado de passividade diante de todas as informações.

• be your own algorithm

Andy Clark, importante filósofo e neurocientista que investiga as relações entre o cérebro e as tecnologias, escreve na revista Nature sobre como ele interpreta a inteligência artificial enquanto extensão da mente.

• Extending Minds with Generative AI

Do Clark, li o seu antológico “Natural born cyborgs: Minds, Technologies, and the Future of Human Intelligence” (2003), e gostei muito da escrita e das suas ideias.

Indo além de Marshall McLuhan, Clark acredita que as tecnologias são extensões cérebro e que devem ser inclusive serem tratadas como tais ― o que significa que se você danificar um dispositivo de alguém, está danificando parte de sua cognição.

Pedidos

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#notas #cotidiano #tecnologia


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Imagem de um vaso sanitário sendo utilizado como vaso de plantas em um canto abandonado.

Imagem: Flickr. O hábito de lavar banheiros pode se tornar uma experiência do sagrado ― ou seja, de auto-observação.

As maiores lições da vida, penso, vêm do chão diário. O ordinário é a escola dos pobres, das crianças e dos curiosos.

Pense no espaço mais visitado de sua casa. (Visitado, não permanecido). Você dirá “Meu quarto, claro!” ou “A cozinha!”. No entanto, provavelmente você não dorme, trabalhe ou come com tanta frequência quanto se lave ou use o vaso sanitário...

Meu banheiro é esse espaço, o menor de minha casa de solteiro ― ele tem em torno de seis metros quadrados ― e onde menos permaneço. Apesar disso, frequentemente eu sentia um desprazer ou até vergonha de estar ali.

Tentei de tudo para amenizar esse mal-estar: desde organizar meus objetos de higiene, de modo a deixar no espaço somente aquilo que eu utilizasse de verdade, até pôr ali um aroma de essência, de modo a “enganar” o mal cheiro. Nada feito. Segui desgostoso quanto àquele espaço tão visitado.

Certa volta, pesquisando algumas resenhas sobre o filme “Dias Perfeitos” (2023) no Youtube, encontrei um vídeo não relacionado que falava de 10 hábitos domésticos do Japão. Longe de entrar na real simbologia deste hábito, encantou-me em especial o hábito japonês de lavar o vaso sanitário todos os dias, logo pelas manhãs.

Ótimo! Esta talvez fosse a solução para o meu infindável desprezo pelo espaço sanitário: lavar meu banheiro todos os dias!

O primeiro dia de limpeza foi o mais extenuante de todos ― muito trabalho a fazer. Porém, conforme os dias passavam, percebia certos efeitos a partir desse hábito. E certas lições!

Todo ato no presente é um presente para o futuro

Penso na higiene do espaço sanitário como um ato de autocuidado. É como ir ao dentista: o começo da operação incomoda, mas você sairá de todo o processo satisfeito consigo mesmo de ter tido a iniciativa. Trata-se de um desses sacrifícios que nos fazem bem. Assim é a psicoterapia, a academia de musculação e a universidade.

Quando termino a tarefa, saio com a sensação de que estou cuidando de mim. Ao fim do dia, quando vejo que o banheiro ainda está em boas condições de uso, agradeço ao meu eu do passado por ter me dado aquele presente...

Talvez por conta dessa singela sensação de recompensa, sempre que estou prestes a dormir, sinto-me estranhamente animado ao pensar que no dia seguinte limparei meu banheiro novamente. Seja como for, no momento mesmo da limpeza, ponho boa música para tocar enquanto sinto a brisa matinal. Essa é uma forma de me incentivar a seguir com o serviço.

Ao fim de tudo, sinto uma grande autoestima por ter cumprido uma tarefa pesada logo no início do dia. Vejo que depois que adotei esse hábito, minha rotina tornou-se mais flúida, talvez por conta mesmo desse ímpeto de produtividade que a limpeza do banheiro causou...

Lavar o banheiro tornou-se uma necessidade corporal, como tomar banho e escovar os dentes.

Lavar o banheiro é uma ponte entre o presente, o passado e o futuro. Um regalo que me dou a mim mesmo.

Tarefas difíceis tornam-se fáceis quando repetidas

Os primeiros dias em uma linha de montagem industrial devem ser os mais difíceis. Não estamos ainda habituados às ferramentas; não sabemos qual será o nosso produto final; a nossa excelência varia de turno para turno. Ao cabo de um mês, entretanto, somos peritos em nossos ofícios.

Fazer e fazer e fazer até fazer-se.

Quando trabalhei na Guarda Municipal de Fortaleza como estagiário, cheguei a fazer as tarefas mais repetitivas do mundo ― de digitalizar pilhas de documentos a preencher formulários através de atendimento ao público. À medida que eu sentia menos atrito entre mim e as ferramentas de trabalho, senti-me mais confortável para fazer algo em plano de fundo, como ouvir música ou podcast, ao mesmo tempo que sentia mais satisfação com o próprio trabalho, já que meu grau de excelência subia.

Diz-se que a inspiração no mundo oriental está ligada à constância da prática. Se você pratica muita escrita em prosa, ocasionalmente escreverá uma boa peça literária; se pinta telas regularmente, em algum momento se tornará um grande artista. Não se trata do velho ditado “A prática leva à perfeição”, mas sim “A prática leva à inspiração”.

Assim penso na realização das coisas. A inspiração não vem dos céus, da aleatoriedade ou do mundo das ideias, e sim da terra, da prática e do chão diário. O poeta João Cabral de Melo Neto não mencionava sequer a palavra “inspiração” para falar da criação de seus poemas, mas “fermentação”. “O canto é que faz cantar”, já dizia um dos Fernandos Pessoas.

Dito isso, penso que “estar inspirado” em uma tarefa quer dizer “fazer uma tarefa tranquilamente”, smoothly. É difícil estarmos inspirados para lavar banheiros ― porque é uma atividade que pouco fazemos (mesmo aqueles afeitos ou obrigados à limpeza doméstica). Lavar o banheiro todos os dias, no entanto, tem me ensinado que um trabalho difícil torna-se fácil quando é feito diária e religiosamente. Tem me ensinado a ser paciente com aquilo que é difícil, enfim.

No primeiríssimo dia em que passei a realizá-lo, havia muito por limpar: a pia não fluía, o espelho não refletia como esperado, o vaso sanitário fedia. Levei em todo o processo de limpeza mais ou menos uma hora. Pouco a pouco, porém, conforme os dias passavam e eu ficava mais confortável com os procedimentos, havia menos peças sanitárias a limpar. Consequentemente, o tempo transcorrido para a limpeza diminuía. Nos últimos dias antes de finalizar este texto, não levo mais do que 15 minutos para deixar todo o banheiro pronto para o uso no restante do dia.

Lavá-lo deixou de ser um trabalho e passou a ser uma tarefa.

Rotina é a descoberta das coisas que já conheço

Sempre que higienizo meu banheiro, percebo algo novo a ser cuidado ― uma quina que me passara despercebida no dia anterior, algum produto ou instrumento que cairia melhor em uma dada peça, ou mesmo a própria descoberta de que a atividade em si está mais prática do que antes. Por fim, percebo a mim mesmo como um ser novo. Noto então que ter uma rotina não se trata de fazer tudo da mesma forma todos os dias, mas sim de aperfeiçoar-se a cada nova realização.

A partir do momento em que percebi que ter uma rotina não é repetir, passei a me descobrir dia após dia. Ter uma rotina passou a ser então um meio de auto-observação. Ao fazer atividades previstas e necessárias, tenho a oportunidade de reparar como me saio nelas ou mesmo como me comporto quando elas não saem como esperado. Difícil é a auto-observação a partir de coisas inéditas. Para se conhecer é necessário algum controle ou previsibilidade situacionais. Até por isso, a meditação budista limita-se a estar sentado.

Para nos conhecermos e nos conhecermos melhor, creio também que seja preciso de mais atrito com nossos espaços, isto é, que tenhamos o mínimo de mediadores possível. Como melhor se conhece Brasília: vendo vídeos no Youtube sobre a cidade, falando com alguém que para lá viajou, lendo livros de história do urbanismo brasileiro, ou viajando à Brasília mesmo?

(Em chão brasiliense, está-se de todo, não há mediadores).

Por isso também, sempre que possível, ando a pé. Adoro caminhar. Caminhar, além de matar o tédio, mostra-nos que os trajetos nunca são os mesmos. Os veículos, mesmo os mecânicos ― como a bicicleta e o patinete ―, isolam-nos de nosso entorno e, consequentemente, de nosso percurso. Em um automóvel, percebemos muito menos as mudanças da cidade do que quando caminhamos. A pé, entretanto, cada pedra, cada brisa e cada sombra importa; e assim a descoberta torna-se constante.

E em que lugar temos o mínimo de mediadores no mundo? Em nossas casas. É aí onde podemos ficar nus, onde despejamos no chão nossos sapatos e nossas máscaras sociais. Por coincidência, é em nossas casas onde as rotinas fazem-se mais presentes. E é em nossas casas onde podemos, de algum modo, criar alguma ambiência de previsibilidade e de meditação. Nada nos é mais previsível do que nós mesmos. Logo, nada pode ser melhor compreendido por nós do que nós mesmos ― em nosso #cotidiano.


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Imagem de um círculo feito com pincel grosso e tinta nanquim. À esquerda e à direita há inscrições em japonês.

Círculo Ensō, símbolo sagrado do Zen Budismo. Ensō simboliza coisas como força, elegância, o universo, mente unificada, o estado mental do artista no momento da criação e a aceitação da imperfeição como algo perfeito.

Um compêndio de links, recomendações e textos curtos que não renderiam uma publicação à parte. Enjoy.

A habilidade mais difícil para um introvertido

Depois de aprender informática básica, quatro línguas estrangeiras, taquigrafia, escrita criativa, violino e bateria, estou aprendendo a habilidade mais difícil de todas: falar abobrinha.

Kisscrolling

Lembrei de quando era adolescente e tinha um romance digital com uma moça da cidade vizinha, lá na gloriosa Serra Grande, nos idos de 2010.

Quando eu recebia uma foto dela, costumava beijar a tela do meu Nokia de botõezinhos.

Hoje em dia isso já não daria certo, porque, se você beija a tela sensível ao toque, pode acabar excluindo a foto...

Chère-lock Holmes

Bordão do Detetive Paixão para investigados pegos no flagra:

Conheço você com a palma da minha mão...

Japão estanque: ex-tanque

Ando pensando nesse meu fascínio que tenho pelo Japão. Um fascínio quase ingênuo, de coisa exótica. Nos últimos dois anos tenho lido e estudado sobre tudo que acho da cultura nipônica ― fugindo do lugar comum e do pop.

Agora mesmo estou assistindo a um filme do Ozu, um cineasta clássico do Japão. O conheci pelo Wim Wenders, que fez inclusive um filme dedicado ao diretor nipônico, chamado “Tokyo Ga”.

Falo tudo isso porque enquanto estou nessa obsessão por uma cultura estrangeira, penso que há algo muito semelhante bem “do lado de casa” ― os povos indígenas do Brasil.

Alguns intelectuais japoneses de esquerda defendem o decrescimento como uma tendência positiva, e o percebem exatamente no Japão. Ailton Krenak, escritor indígena brasileiro, também tem ideias que apontam o desacelacionismo como meio de conservação da natureza e, por consequência, da humanidade.

Não sei ainda organizar esse pensamento. Até lá, fico fascinado pelo que de extraordinário tem o Japão antigo ― o gosto pela sombra e pelo estático ―; e pelo que de comum têm o Brasil e o Japão ― a antropofagia cultural.

Sobre o feed infinito e a noção de passado

Ouvi uma crítica justa aos stories e outras mídias similares, vinda do antropólogo Michel Alcoforado. O que vemos em um story damos por “presente”. Não interessa se o rosto do perfil publicado está muito diferente desde a última vez em que o vimos.

Em um certo fim de semana, publiquei imagens minhas no Instagram que estavam distantes temporalmente, imagens com cinco anos de diferença. Todas as pessoas que comentaram foram levadas a pensar que tudo aquilo acontecia comigo naquele momento.

Esmartefone + feed infinito: ideia de um presente contínuo interminável. Há aí tanto a mudança da noção de tempo, quanto a mudança da ideia de história e de nostalgia.

“O Centro é o lugar do imprevisível ):)”

Outro dia fui a um passeio didático pelo centro da cidade feito para meus alunos estrangeiros do curso de português.

Chamaram um professor de geografia que fez loas ao caráter caótico do centro da cidade, contrastando-a com os shopping-centers:

Se você for ao shopping, tudo acontecerá como planejado; mas se você for ao centro da cidade, pode ser surpreendido a todo momento.

Só que, momentos depois, enquanto ele falava, dois moradores de rua começaram a intervir no que ele falava, batendo palmas, interceptando. Vocês não conseguem imaginar a cara de contrariado que ele tinha…

Linkroll

Ótima resenha da New Yorker sobre o filme Perfect Days (2023), também resenhado nestas Ideias de Chirico.

• Perfect Days and the perils of minimalism.

Esse texto me atentou para um traço incomum da personagem Hirayama, que o torna ímpar e fora do zeitgeist contemporâneo: ele é um indivíduo sem curiosidade. Depois que li esse texto, fiquei pensando sobre o porquê de eu mesmo levar o cenário de Perfect Days como ideal, já que não me vejo no futuro como um homem sem curiosidade. O título é um pouco impreciso, porque se fala pouquíssimo sobre o minimalismo do ambiente do protagonista.

Mina Le, ensaísta e influenciadora do campo da moda, fala em seu vídeo-ensaio sobre o porquê de as redes sociais não serem mais divertidas.

• why is social media not fun anymore?

Os motivos apontados por Le: o algoritmo de curadoria de conteúdo e a ironia crônica das comunidades atuais. Em outras palavras, somente o algoritmo: ele é anticultural, porque sempre vai ofuscar a recomendação orgânica ― de pares para pares ―, e é anticomunitário, porque sempre vai privilegiar o discurso inflamatório (no qual está a ironia), que retém mais engajamento dos usuários. Enquanto todos temem e criticam a inteligência artificial generativa, eu digo: o algoritmo de recomendação de conteúdo é muito mais danoso para a cultura e para a criatividade do que qualquer outra tecnologia que será desenvolvida a partir de agora.

O filme Jaws (na versão brasileira, “Tubarão”) nesta sexta-feira (20/06) completará 50 anos desde o seu lançamento em 1975. Por que esta efeméride é interessante, paralém da relevância desse suspense estadunidense? Porque foi o filme Tubarão que se inaugurou a expressão blockbuster como alcunha de filmes de grande sucesso.

Block em inglês significa quadra. No dia do lançamento do longametragem, a fila para o cinema rodou o quarteirão. Os jornais da época então mencionaram Jaws como um blockbuster. Blockbuster seria aquilo que “destrói quarteirões” ― um termo primeiramente utilizado para se referir a bombas no contexto da Segunda Guerra Mundial.

Soube desta efeméride pelo podcast Xadrez Verbal nº 423 e tirei outras informações a partir destes textos:

• Why Hit Movies Are Called Blockbusters.

• 50 years ago, ‘Jaws’ scared us senseless. We never got over it.

Um youtubeiro decidiu trancar o próprio esmartefone em um cofre, porque estava cansado de ler notícias sobre as quais não queria saber. O movimento de entropia é interessantíssimo: para compensar a ausência do aparelho, ele comprou cadernetas, um despertador analógico e um telefone com fio.

I hate my phone so I got rid of it

O problema de toda essa experiência, acho, está em tentar acessar os mesmos espaços sem esmartefone como se vivesse com um. Já espoilerando: em alguns momentos ele precisou pedir emprestado o aparelho de outras pessoas enquanto esteve fora de casa.

Experiências assim fazem pensar que é preciso inventar um viver distinto àqueles que não se adequam ou se negam a viver a vida digital compulsória. O clube ludista de Nova York já deu o primeiro passo.

Imagem monocromática de Matt Smith, programador de jogos para ZX Spectrum, um homem jovem de cabelos altos e lisos, utilizando um moletom. Ao seu redor há vários teclados ou computadores do modelo ZX Spectrum. À sua frente há uma televisão, que antigamente era utilizada como tela de computador.

Matt Smith, programador de jogos para ZX Spectrum.

Citações

Poems are basically like dreams... Something that everybody likes to tell other people, but nobody actually cares about when it's not their own.

― Autoria desconhecida.

Poema é igual a peido ― cada um só aguenta o seu.

Uma variação da citação anterior.

Jamais vou me esquecer de quando eu fui em um planetário e alguém vaiou quando mostraram a Terra.

― Algum vídeo curto que vi por aí.

Sinto que muita gente abre uma empresa e acaba caindo no modelo de que “somos uma família”, certo? E isso é um sinal de alerta gigante porque toda família é disfuncional. Todas, todas são.

― James Hoffmann, via Manual do Usuário.

Quando algum gringo zombar do seu sotaque diga: “Você fala inglês porque é o único idioma que você sabe; eu falo inglês porque é o único idioma que você entende”.

― Algum vídeo curto.

A vida é como uma toalha de banho: o lado que você passa na bunda hoje pode passar na sua cara amanhã”

― Um meme boomer.

A computer is like air conditioning – it becomes useless when you open Windows.

― Linus Torvalds.

Email is the cockroach of the internet – it outlives every wave trying to kill it. Forget Slack, forget Discord, forget chat apps. Email is universal, decentralized, and asynchronous. It's not sexy, but it's the ultimate survivor.

― JA Westenberg (@Daojoan@mastodon.social)

#notas #cotidiano #tecnologia


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Imagem de uma pessoa escrevendo agilmente em um teclado de notebook

Imagem: Flickr.

Imagine que você vive em um mundo no qual não se usa outro meio de transporte a não ser o das próprias pernas. Todas as pessoas nesse mundo caminham, não importa qual a distância. Não se pilota motocicleta, não se dirige carro, não se voa de avião, nem mesmo se pedala com bicicleta ― muito embora essas tecnologias já existam. Vem alguém e lhe oferece um curso gratuito de automóvel, no que você retruca: “Por que eu deveria aprender mais uma habilidade de locomoção? Levei três anos para caminhar!”. “Aprender a pedalar? Eu já dou no pé todo dia, obrigado”. “Avião? Por que voar se posso andar?”

Volte ao mundo em que você vive. A situação imaginada acima sobre locomoção é parelha com a situação real da escrita nos dias de hoje. Uma brutal parte das pessoas digitam, escrevem longos textos, namoram, fazem negócios e cálculos utilizando uma tecnologia do século XIX e não o percebem... Surgem outras mais atualizadas e propícias para novas necessidades e ainda assim as pessoas recusam. “Já está bom assim”. “Não preciso aprender outra habilidade”. “Por que eu deveria reaprender a escrever?” etc., etc., etc.

Essa tecnologia a que me refiro é a máquina de escrever. Você sabia que a disposição das nossas teclas nunca mudou desde a invenção desse equipamento mecânico? Escrevemos em nossos telefones, em nossos tablets e em nossos computadores pessoais da mesma forma como se escrevia há quase dois séculos!

Escrevo este texto para mostrar meu testemunho do porque é importante reaprendermos a viver, isto é, aprimorarmos atividades tão cotidianas como é o próprio escrever.

Este texto que vocês leem é um desses de metalinguagem em que comento sobre uma tecnologia ao tempo que a utilizo para o redigir. Elaborei a publicação sobre gravador de voz tecendo notas esporádicas com um aplicativo de gravador de voz para telefone, assim como escrevi sobre o uso de máquina de escrever escrevendo com minha Remington 15.

Estou neste momento escrevendo em um teclado de leiaute Dvorak. Não sinto meus dedos tensos. Mal os movimento. Quem me observa de longe, provavelmente pensa que estou blefando minha escrita: não tiro a mão esquerda da linha central; mesmo a direita, mais ativa, quase não sai do lugar ― a não ser para teclar backspace. Por consequência, o teclado não faz tanto ruído, e de certa forma mantem-se conservado, já que a digitação não é tão agressiva. A escrita do dia a dia é bem mais prática e até os atalhos mais comuns são mais confortáveis, pois as teclas mais frequentes são mais próximas umas das outras.

O teclado Dvorak é designado como um padrão feito para movimentar ao mínimo os dedos, uma vez que as teclas mais utilizadas (a princípio, em língua inglesa) são postas na linha central. Ao tempo que a mão esquerda ocupa-se da digitação das vogais e das pontuações, a direita fica com as consoantes, com os acentos gráficos e com o backspace. Disso resulta que boa parte das palavras podem ser escritas sem que se movimente tanto as mãos.

Tem sido assim há pouco mais de um ano e não penso em deixar de teclar dessa forma. Assim como pedalar e falar em inglês, aprender um novo leiaute é uma dessas habilidades que requerem uma dura dedicação de alguns meses, mas seus frutos são para toda a vida. É um presente que você dá para o seu eu do futuro.

Sei,sei... Nesta ideia de Chirico me superei. Por que diabos perder tempo reaprendendo a digitar? Eu poderia muito bem só digitar olhando para o teclado, “catando milho” com dois dedos, como fazem os estudantes italianos, não é mesmo?

Porém, antes de me chamarem de doido, procurem me entender.

Precedentes

Não sou o primeiro e não serei o último a estranhar a naturalização da utilização de instrumentos e modelos disfuncionais. Um dos registros de reclames mais antigos sobre o leiaute padrão de máquinas de escrever e computadores vem do escritor de ficção científica Isaac Asimov, que no prefácio de seu livro “Histórias de Robôs – Volume 3” declara como

Mais estranha ainda é a tenaz oposição a qualquer modificação no teclado das máquinas de escrever, embora o padrão universal de hoje em dia seja um disparate criado pelo inventor do instrumento por motivos banais. O mais avançado dos computadores atuais [...] emprega este teclado. Na realidade, ele diminui a velocidade datilográfica por causa da utilização desproporcional das duas mãos, principalmente ao favorecer a maior aplicação da canhota num mundo em que noventa por cento da população é mais hábil com a direita.

Por que essa atitude refratária com as mudanças?

Simplesmente pelo medo que se tem do processo de reeducação! As pessoas adultas gastam infinidades de horas para se habituar com polegadas e milhas, com os vinte e oito dias de fevereiro, com letras que não se pronunciam, em night e debt por exemplo, com exercícios de datilografia e sabe Deus mais o quê. Introduzir algo completamente inédito implica recomeçar tudo de novo, voltar à estaca zero da ignorância e correr no velho risco, tão conhecido, de possíveis fracassos.

Citação de Asimov a partir da fotografia da página do livro.

Reprodução do prefácio “Os robôs, os computadores e o medo” do livro “Histórias de Robôs”, de Isaac Asimov. Cortesia de @diegopds@bolha.us

Desde que ingressei no curso de Letras, em 2019, o volume de textos por digitar no computador aumentou. Somado a isso, durante 2020 comecei a trabalhar como ~semiescravo~, digo, treinador de inteligência artificial. Forneci input por quase um ano ao sistema de transcrição automática de texto da ByteDance, empresa chinesa que administra o TikTok.

A digitação tornou-se, então, cotidiana. Havia dias em que eu mais escrevia do que falava. Com a pandemia, surgiu um tempo livre para estudar datilografia. Através de treinos pelo sítio web KeyBR (que, apesar do nome, não é um domínio brasileiro), aprendi touchtyping, uma técnica pela qual se digita através da memória muscular, sem olhar para o teclado.

A partir do touchtyping, passei a digitar rápida e focadamente, pois, sem a necessidade de dividir a atenção entre a tela e o teclado, a chance de me perder na linha sobre a qual escrevo é bem menor. Saber essa técnica também me deu mais segurança para ocasionalmente buscar um leiaute datilográfico alternativo.

Inicialmente poder digitar tão confortavelmente e com agilidade foi uma boa decisão. Todavia, passados alguns anos, meu teclado foi degringolando, até que ocasionalmente parou de funcionar. Minha hipótese é de que o teclado QWERTY, o padrão universal de teclados, facilitou o processo de danificação da membrana. Ora, uma vez que no padrão QWERTY as vogais são dispostas muito distantes umas da outras, somos impelidos a movimentar mais os dedos, consequentemente aplicando mais força sobre as teclas.

Logo: datilógrafo agressivo + texto sob prazo apertado + leiaute desenhado para movimentar mais os dedos = laptop velho partido ao meio.

A partir da leitura do Dvorak Zine, que conheci pelo Mastodon em 2023, passei a me interessar por esse leiaute alternativo. Muita informação esparsa sobre o pouco explorado mundo da digitação pode ser encontrada nesse genial textinho do começo do século. A leitura desse zine digital vale a pena sobretudo pela história da falida jornada de August Dvorak em promover a sua invenção.

As pessoas esquecem-se de que o leiaute padrão dos computadores descendem das máquinas de escrever, cujo leiaute, por sua vez, tem suas concepção cercada de mistérios. Diz-se por um lado que a organização do QWERTY parte da tentativa de retardar a digitação do datilógrafo a fim de evitar que ele trave as sapatas da máquina de escrever; por outro, diz-se que a disposição de seus caracteres buscou facilitar a transcrição de decodificadores de código Morse. Ambas as hipóteses demonstram que o QWERTY é uma configuração que já não faz sentido no contexto computacional, que não trabalha nem com sapatas mecânicas, nem com código Morse.

Por sorte, os computadores são flexíveis quanto ao arranjo de seus periféricos, e, por consequência, a troca da disposição de teclado.

Imagem de uma máquina de escrever com o padrão Dvorak

Imagem: máquina de escrever com padrão Dvorak (c8.alamy.com). Apesar da homérica jornada de August Dvorak de tentar tornar o seu leiaute um padrão comum, o ineficiente padrão QWERTY segue como predominante até os nossos dias.

A promessa do padrão Dvorak, originalmente desenhado para as máquinas de escrever, era a de uma digitação mais ergonômica e potencialmente mais rápida. Esse último aspecto, no entanto, encontra divergências pelo baixo número de digitadores em Dvorak. Mesmo datilógrafos dvorakianos recordistas, como a escritora Barbara Blackburn, têm os seus resultados postos em dúvida. Logo, não há bastantes dados demostrando que a escrita nesse padrão datilográfico seja mais ágil propriamente do que a escrita no velho padrão de máquina de escrever.

Não é por isso, entretanto, que o Dvorak não apresente outros benefícios.

Ergonomia

A primeiríssima razão pela qual alguém abandona o teclado default é por conta do desconforto causado pelo sua disposição caótica. De fato, movimentamos demasiadamente nossos dedos enquanto digitamos. Vez ou outra vejo algum amigo desenvolvedor sofrendo de tendinite. E nisso o teclado com o qual escrevemos tem parte. Escapa aos fabricantes e consumidores uma percepção: o teclado QWERTY não foi feito para uma escrita confortável.

De nada adianta que o modelo do teclado seja ergonômico se se basear no leiaute da máquina de escrever, que não foi pensada para o uso doméstico, mas sim para datilógrafos de escritório do século XIX; se suas teclas não são dispostas de um modo que se movimente ao mínimo os dedos, de nada adianta um teclado ergonômico.

A situação do leiaute dvorakiano é diferente. Ele é por design um padrão feito para que se retirem ao mínimo os dedos da linha central do teclado. Dvorak é por concepção, um padrão ergonômico, que, aí sim, somado a um teclado dito “ergonômico” trará um real benefício à saúde manual do datilógrafo.

Relação entre o leiaute Dvorak e a língua portuguesa

Quando publiquei sobre o leiaute Dvorak no fórum Órbita, do Manual do Usuário, houve alguns comentários como “Mas isso não é um problema para quem não escreve em inglês, já que August Dvorak desenhou o leiaute partindo dessa língua?”

Pela minha experiência, garanto que a escrita em língua portuguesa é na verdade favorecida por essa disposição de teclas. E diria mais: a escrita em língua portuguesa por esse padrão é mais favorecido do que a escrita em língua inglesa. Nas vezes em que escrevi alguma mensagem em língua inglesa, achei esquisita como consoantes comuns em inglês, como “Y” e “K” estão mais para o interior do teclado.. Ademais, o português e o inglês apresentam algumas raízes e influências em comum, como o francês, o grego e o latim, causando algumas felizes palavras cognatas.

Apesar disso, creio também que isso independe da similaridade linguística. Como escreve o programador dvorakiano Nando Florestan sobre esse leiaute:

Pessoalmente não me interessei tanto [pelo Brasileiro Nativo, variante do Dvorak para português], por acreditar que, embora o Dvorak Simplified Keyboard seja otimizado para o inglês (as letras mais usadas ficam na “home row”), o português seja parecido a ponto de não fazer quase nenhuma diferença. Além disso, muitos brasileiros escrevem bastante coisa em inglês...

Pelo sim, pelo não, o QWERTY também não foi desenhado para o português, não é? De qualquer forma, a designação feita por August Dvorak para uma escrita confortável em inglês acaba por beneficiar também lusodigitadores.

Esquema do padrão Dvorak adaptado para português.

Imagem: esquema Dvorak com acentos e o caractere “ç”, adaptada para a língua portuguesa. Ilustração de Heitor Moraes, via blogue do Nando Florestan. Este é a variante que utilizo.

Como as vogais no modelo Dvorak estão mais próximas, torna-se mais fácil fazer ditongos. “A” é ao lado de “O”, que é ao lado de “E” o que permite fazer nossos primorosos “ão” e “ões” com muita fluidez; a vogal “E”, por sua vez, está exatamente ao lado de “U”, o que nos permite o “EU” com muita mais facilidade. Também o fato de que as vogais estão com a mão esquerda e os acentos gráficos estão com a mão direita ajuda a variar a atividade das duas mãos e, por consequência, a tornar a escrita mais flúida e rápida.

Não somente existe proximidade entre as vogais, como também existe entre as consoantes que fazem encontros consonantais, como “TR”, “CR”, “CH” e “NH”. “M”, que sempre antecipa o “B” intervocálico, também se avizinha da letra “B” nesse leiaute alternativo.

Atalhos

Apesar do padrão Dvorak ter sido desenhado bem antes da concepção dos computadores domésticos, a disposição de seus caracteres permite o acionamento de atalhos de uma forma mais prática.

Como falado anteriormente, a maior característica do teclado Dvorak é que as vogais do alfabeto foram dispostos ao lado esquerdo, enquanto que as consoantes ficaram para a mão direita. Essa disposição permite que a mão esquerda fique ocupada com a pressão sobre a tecla Ctrl, enquanto a direita aciona os atalhos, com a possibilidade de acionar três ou quatro comandos sem tirar a mão da mesma posição. Atalhos como Ctrl + C (copiar), Ctrl + V (colar), Ctrl + T (fechar janela), Ctrl + W (fechar aba de navegador), Ctrl + Z (desfazer ação) e Ctrl + F (buscar palavra) podem ser acionados sem que se tire as mãos do lugar. Isso evita distensões de uma mão só com comandos do tipo Ctrl + T, ou Ctrl + V, que são muito comuns para a configuração QWERTY; e tudo isso sem que o datilógrafo precise olhar para o teclado, já que o Dvorak tem como o pilar a escrita através de memória muscular ― o touchtyping.

Outra vez a máquina de escrever...

Apesar de ter encontrado e aprendido um leiaute de teclado que é mais confortável e mais prático e mais conveniente do que o leiaute QWERTY, também tenho uma máquina de escrever. Com o leiaute QWERTY, claro. Para bater em papel. “Anrã... Qual o sentido disso?”, você deve me perguntar, cínico leitor.

Acontece que, como especifiquei em um texto recente, cada ferramenta de escrita cria uma atitude diferente perante o texto, o influenciando. “Nosso equipamento participa na formação dos nossos pensamentos”, escreveu Friendrich Nietzsche em carta para um amigo que elogiou os últimos textos do filósofo alemão depois deste ganhar uma máquina de escrever.

Imagem: reprodução de “A Geração Superficial”, de Nicholas Carr, com o relato de Nietzsche sobre a importância da máquina de escrever em sua escrita. Cortesia de @diegopds@bolha.us

O escritor belga Lionel Dricot ― vulgo “Ploum” ― publicou recentemente um romance distópico, o Bikepunk ― les chroniques du flash. Trata-se de uma história passada 20 anos depois do assim chamado flash, uma imensa luz vertiginosa que emanou sobre toda a terra, e deixou toda a humanidade cega, infértil e sem energia. A personagem protagonista, Gaïa, nascida no ano do flash e farta de sua comunidade sedenta por mulheres férteis, parte para uma fuga com Thy, um ermitão sexagenário que misteriosamente não foi impactado pelo fenômeno. Neste ambiente sem eletricidade, amoral e decadente, a bicicleta é um instrumento de emancipação.

E também a máquina de escrever.

Ploum decidiu lançar mão sobre este instrumento a fim de sentir-se climatizado dentro do enredo. Mas não só: Ploum é entusiasta do low-tech e um grande crítico da imposição de meios elétricos ― apesar de ser professor de informática de código aberto em uma Universidade belga. Além disso, o autor também queria desconectar-se para a redigir o seu livro.

Quando estou sentado de frente para a máquina de escrever, estou impelido por um retorno acústico-tátil da sapata de cada letra chocando-se sobre o papel, o que é capaz de me manter por horas a fio diante do texto e me fazer sentir que estou conectado a ele. Esse feedback falta ao computador. Além disso, um computador, mesmo com um novíssimo disco SSD, tem uma latência em sua inicialização; ao tempo que não levo mais do que dois minutos para acertar o papel sobre o carro da máquina de escrever.

Não minto que já fiz algumas experiências de tornar o computador um instrumento centrado para a escrita e até configurei o programa com o qual escrevo como padrão na inicialização. A retomada de textos já iniciados, entretanto, não é muito feliz: tenho de me esbarrar com filas e mais filas de arquivos, o que acaba por me distrair.

Sim, eu poderia conseguir uma máquina de escrever com o padrão Dvorak. No entanto, além de ser raro uma máquina com Dvorak, me faltariam os acentos, que só vieram ao Dvorak em uma padronização recente nesse leiaute.

A escrita sobre a máquina de escrever pode ser mais lenta, sim, porém é mais focada, não exige muitos recursos, como internet ou eletricidade. Ah, e ― adivinhem só: o papel não emite luz! ― o que é uma salvação para alguém com astigmatismo, como eu.

Somado a tudo isso, tenho utilizado o Ghostwriter, um programa especializado para a escrita de textos longos. Ele me permite escrever no computador sem que o backspace seja habilitado (um recurso conhecido como Hemingway mode), me impedindo de editar o texto. Só me resta então digitar sem “olhar para trás”, como se faz com a máquina de escrever. Além disso, Ghostwriter me permite escrever e visualizar o texto em linguagem Markdown, com o qual publico neste blogue; sem contar com outras disposições, como apresentar o texto sendo escrito sempre próximo ao centro da tela, o que torna a experiência ainda mais similar à máquina de escrever.

Dado esse setape, é como se eu escrevesse em uma máquina de escrever elétrica com leiaute Dvorak. Isso não resolveria todos os meus problemas. Lembro de um causo sobre Gabriel García Marquez que diz que quando o Nobel-laureado escritor foi reclamar com o prefeito da cidade onde morava pelas constantes quedas de energia que atrapalhavam os textos batidos em sua máquina de escrever elétrica, o político respondeu: “Balzac, que era muito melhor do que você, escrevia com pena e papel”.

Certo de que esse causo ilustra sobretudo o descompromisso do governo com a manutenção do bem estar e da cultura, isso faz refletir sobre a necessidade de se ter sempre um plano B, ou mesmo de “se virar com pouco”.

A máquina de escrever mecânica segue como o instrumento de escrita mais resistente. E ainda tem a vantagem de exigir baixa manutenção: só requer uma tampa, a trava de carro (para evitar que alguma peça quebre em uma eventual queda) e uma eventual lubrificação. Agora mesmo escrevo com meu notebook em um jardim da universidade, e estou mais preocupado se meu notebook não toma sol do que se meu texto está bem feito. Claro, será um problema também se cair água sobre uma máquina de escrever, no entanto, deve haver uma grande carga d'água para que lhe dê uma boa ferrugem.

Salvo modelos mais antigos, como a linha Thinkpad da antiga IBM, os notebooks em geral são peças que demandam mais de recursos e de cuidados. Computadores são equipamentos frágeis. Por isso ― para parafrasear Henri Thoreau ―, nós mais pertencemos aos nossos computadores do que eles nos pertencem. É preciso não sermos servos de uma #tecnologia.


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Close no rosto de um homem japonês. Ele tem cabelos longos, ao estilo dos anos 50. Tem uma mão apoiada no queixo e olha, de pálpebras baixas, para um ponto baixo. Foto em preto e branco.

O terno olhar de Osamu Dazai, escritor moderno japonês.

Uma daquelas publicações sem temas específicos, apenas com textos soltos que escrevo por aí, curadoria de links e citações.

Pensar em um computador desconectado

Depois de ler um texto do @ploum@mamot.fr falando sobre a construção de um computador que dure 50 anos ― onde também se fala do princípio de offlinefirst / localfirst ―, tive ganas de criar um repertório de documentos para deixar no disco rígido para consulta rápida e sem internet.

Já baixei alguns mapas (América do Sul, Brasil, Ceará etc.) e alguns dicionários. Tentei baixar o mapa de infraestrutura da minha cidade pelo OpenStreetMaps, mas não consegui direitinho. Penso em baixar o repositório da Wikipédia.

O mundo de fantasia dos motéis japoneses

O sítio web Flashbak, voltado a curiosidades históricas, publicou um artigo com algumas fotografias do francês François Prost mostrando a arquitetura de motéis do Japão.

Aí vê-se de tudo: navios, OVNIs, castelos encantados.

Se no mundo ocidental ou ocidentalizado, a discrição é essencial para um espaço sexual, não é este o caso dos motéis japoneses.

Sex In A Japanese Love Hotel

Reclames sobre um podcast

Odiei um recente episódio da Radio Ambulante, podcast hispanófono que conta crônicas da América Latina. Foi sobretudo com esse programa de áudio que aprendi a língua espanhola. Desde o período que comecei a o escutar ― 2022 ―, a vaibe do programa têm piorado muito.

Costumo pensar dez vezes antes de escutar algum episódio, porque com frequência ao fim dos episódios fica aquele clima de melancolia, de evento mal resolvido. Um episódio recente, La concursante, foi além disso, ele relata o assassinato de uma jovem adulta que participou de um populista programa de auditório do Peru, e que morreu por isso.

Estou espoilerando exatamente porque a escuta não vale a pena, apesar de que a construção narrativa do episódio seja muito bem tecida, e o trabalho de sonoplastia seja impecável, uma das especialidades da Radio Ambulante.

No entanto, afora o clima extremamente apelativo da história, que beira aos programas policiais, os produtores não nos contaram sobre como os meios de comunicação peruanas reagiram depois do episódio de assassinato, dos quais eles próprios foram catalisadores.

Uma pena.

Coisas de que mais gosto no Fediverso

  1. a comunidade capivarinha.club;

  2. a comunidade ayom.media e o seu ecossistema;

  3. o humor incessante do @miugnutos@bolha.one;

  4. a disponibilidade e gentileza geral dos membros;

  5. a diversidade de integrantes ― eu não tinha interagido na internet com pessoas neurodivergentes, surdas ou cegas até eu chegar aqui;

  6. a não hegemonia de usuários de língua inglesa;

  7. o tino slow web, com posts concentrados que só com muito esforço podem viciar o integrante fediversal;

  8. a autogestão;

  9. o respeito à privacidade em todos os sentidos ― você não precisa mostrar nenhuma informação pessoal se quiser, mas se quiser pode;

  10. Jefferson, flearows e bamblers;

  11. a infinidade de opções de plataformas e de interfaces disponíveis para interagir ― código aberto é poder!;

  12. o fato de que ninguém nunca obterá este espaço como mercadoria ou poderá censurá-lo, já que ele é 🌠 descentralizado 🌠 ;

  13. instâncias bem, bem barristas, tipo a masto.nyc (para usuários de Nova York) e a mastodon.bahia.no (para usuários da Bahia);

  14. e por falar em bairrismo e identidade, gosto também de como cada instância pode ter uma cara própria, com emojis próprios e uma cultura própria;

  15. a polyglot.city, que é a minha comunidade espiritual;

  16. o fato das redes fediversais serem de baixa manutenção, ou seja, você não precisa estar entrando todo dia nem de se esforçar para conseguir seguidores para, a curto ou longo prazo, ter uma boa experiência;

  17. ah, já ia me esquecendo do principal: não há influenciadores, trolls, propagandas ou empresas;

  18. a curadoria musical do @gaviota@weatherishappening.network (te amo, Gaviota!);

  19. como o Fediverso nunca segura o membro em seu espaço, já que estamos sempre nos redirecionando para outros sítios web;

De todas as filias, a pior é a filIA

Li em um blogue a seguinte frase:

Nós que somos entusiastas de IA.

Entusiastas de IA. Entusiastas de IA. Entusiastas de IA. Entusiastas de IA...

Incrível é como é comum encontrar esse perfil dentro da neoblogosfera!

Novamente o computador

Não sou de ter saudade, mas sinto falta de quando o computador era a grande tecnologia do momento. Com o computador como portal único da internet, havia um limite entre estar desconectado e conectado. Todos os meus esforços para tornar meu telefone um aparelho offline first provavelmente vá nesse sentido...

Offpunk

Estou simplesmente encantado pelo navegador #Offpunk/ #XKCDpunk, desenhado pelo escritor belga @ploum@mamot.fr. É um navegador para protocolo #Gemini, que roda totalmente no #terminal do sistema e que pode funcionar sem internet, mantendo páginas visitadas ou agendadas em cache.

Agora passo a maior parte do meu tempo no computador desconectado e a sensação é ótima.

Você pode saber como clonar ou instalar o Offpunk por aqui.

Explicando o Fediverso

Como vcs explicam pra alguém de forma simples o q é o fediverso?

Fediverso é Twitter, Youtube, Facebook e Instagram, tudo junto e misturado, só que sem influenciador, parente e nem bilionário.

Outra imagem do mesmo homem, mostrando o seu dorso. Ele está vestido em um kimono, na mesma posição. Tem seu punho sobre uma mesa, no qual pende uma pena, e abaixo do qual está um papel. Ele olha diretamente para a câmera.

Outra vez Osamu Dazai.

Youtube formicapunk

Partindo de um conceito vindo do @bouletcorp2@mastodon.social, o formicapunk ― aqui a arte de onde vem o conceito ―, o @ghettobastler@mastodon.art desenhou e executou o 3615-Youtube, um gravador de vídeos do Youtube para fitas VHS a partir de um Minitel, um terminal francês de vídeo-texto de 1978.

Aqui o vídeo do projeto sendo operado: https://www.youtube.com/watch?v=kMp8XH5ZHtM

Favoritismos

No último dia 14, fui à palestra do escritor cearense de biografias Lira Neto sobre seu recém-lançado “Oswald de Andrade: Mau Selvagem”, no auditório da reitoria da UFC. No último momento da palestra, na rodada de perguntas, elaborei uma questão que pensara durante toda a sua fala. Saquei o telefone do bolso, no bloco de notas escrevi

Eu me interesso por Oswald de Andrade, porque me interesso por Décio Pignatari, cujos amigos denominaram o “Oswald magro”. Como um fio puxa outro, queria saber se, em suas andanças acadêmicas, houve alguma relação entre você e Pignatari, mesmo que bibliograficamente. Além disso, poderia falar mais sobre a relação entre Oswald de Andrade e o movimento de Poesia Concreta?

e o guardei.

Passaram-se duas falas de pessoas célebres da cultura de Fortaleza; outras de pessoas não tão célebres, mas próximas ao autor; outras de pessoas nem tão célebres e nem tão próximas ao autor, mas arrumadinhas. Quando o meu sinal para a pergunta foi notado, o organizador da palestra disse que o tempo para perguntas já havia encerrado. Com o livro debaixo do braço, humildemente saí do auditório, sabendo que essa pergunta não seria respondida ali. De qualquer forma, na maioria das vezes a audiência não é tão interessante quanto o palestrante.

Publico essa dúvida neste espaço na esperança de que alguém me a responda e como forma de protesto contra eventos literários, que sempre parecem ser feitas para dez pessoas.

Na palestra. Flagra do ator Ricardo Guilherme, no canto superior direito da foto.

Frasezinhas e ready-mades

Openbar é pá pimbar.

― Ouvi de relance em algum lugar.

Vantagens de ensinar para adultos: eles se comportam e prestam atenção na aula. Desvantagens de ensinar para adultos: eles não desenham o professor e nem lhe escrevem cartinhas.

Eu não sou pobre, eu sou sóbrio, de bagagem leve. Vivo com apenas o suficiente para que as coisas não roubem minha liberdade.

— Pepe Mujica (R.I.P.), esse Hirayama do Uruguai.

Lidar só com gente simpática em Fortaleza ― meu Deus... que solidão.

O bom de falar em LIBRAS é que ninguém cospe no outro.

Interpreto capinha como “roupinha de telefone”. Quando ele está em casa, fica sem nada, peladinho como veio ao mundo.

#notas #tecnologia #cultura


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Disclaimer: no último dia 15 de fevereiro, na aula de Estágio Supervisionado da minha graduação de Letras, minha professora-orientadora desenvolveu um debate sobre o papel da escola em torno do letramento digital. Quando elogiei o papel das tecnologias para a formação cultural dos indivíduos com acesso a elas, minha fala foi vista como romântica. Por conta da desordem de falas, coisa natural em sala de aula, não pude desenvolver uma tréplica.

No dia seguinte, a mesma professora convidou-me para articular em texto o meu ponto de vista, que não pôde ser exposto a tempo hábil em sala de aula. O texto deveria ser publicado no grupo de Whatsapp da turma. O Whatsapp, vocês sabem, não é o ambiente ideal para o debate. Decidi então redigir uma mensagem de texto e enviar-lhe por um e-mail, cujo assunto era “O que pode a tecnologia, o que não pode a tecnologia e o que podemos fazer sobre ela”. Ela gostou tanto da mensagem que decidiu convertê-la em pdf e compartilhar com meus colegas.

O debate seguiu por escrito e hoje mesmo recebi uma resposta sobre o que escrevi.

Segue aqui embaixo a reprodução da minha mensagem. Creio que esse texto resume minhas ideias (em geral mal interpretadas) a respeito de tecnologia e sua relação com cultura e educação.

O que pode a tecnologia, o que não pode a tecnologia e o que podemos fazer sobre ela

Bom dia, professora!

Desculpe-me por não ter lhe respondido no mesmo dia em que me perguntou. Acabei protelando este texto para uma hora em que eu pudesse sentar para escrever, e essa só chegou agora de manhã [dia 18 de fevereiro]. Além disso, preferi enviar esta mensagem durante o feriado porque é quando (provavelmente) você teria algum tempo para me ler. Envio o texto por e-mail porque não acho que o Whatsapp seja um bom lugar para o debate.

Primeiro de tudo, acho natural que você interprete as minhas loas à tecnologia como uma forma de romantização sobre ela. Essa interpretação é natural em um contexto universitário, já que estamos passando por um processo de anti-intelectualismo, que se concentra bastante na internet. Qualquer elogio à internet ou algo que lhe tangencie é visto como uma romantização, já que é por essa mesma internet que se ameaça as instituições, que se busca deslegitimar os cientistas e que se agregam grupos extremistas. No entanto, essa internet faz parte de uma internet comercial, monopolizada e centralizada, dominante sim, mas que não pode resumir o uso da tecnologia.

Deve-se ter consciência neste momento das diferenças entre forma e conteúdo, estrutura e evento, veículo e informação. Claro que em certos momentos, é impossível fazer essa separação; mas que há limites, há. Minha formação não é para a qualificação binária sobre as coisas, mas para o reconhecimento do continuum entre elas. Quando as pessoas criticam a tecnologia, fazem-no à tecnologia enquanto conteúdo, evento e informação. Quando elogio a tecnologia, me refiro à tecnologia-forma, à tecnologia-estrutura e à tecnologia-veículo. Vejo que acadêmicos e estudantes da área de humanidades têm uma grande dificuldade de separar essas duas áreas e perceber também onde há uma simbiose entre elas.

Mas isso é muito natural, já que, por conta do nosso próprio objeto de estudo ― o livro ―, tornamo-nos tecnofóbicos. A tecnofobia é uma reação natural de eruditos clássicos, ultraespecialistas e estudiosos conservadores. Polímatas, poliglotas, artistas, crianças e estudantes autodidatas não têm medo das novas tecnologias e com frequência se apropriam delas para impulsionar, expandir e publicar seus próprios projetos e experimentações, em uma espécie de antropofagia midiática.

Com frequência ouço de estudantes e profissionais de Letras que eles não se importam com forma, que estilo é firula, que “o que interessa é a mensagem do texto”. No entanto, estudando poesia concreta, estudando Bakhtin, estudando semiótica, entendi que forma é discurso. “O meio é a mensagem”, Marshall McLuhan. E, como dizia o poeta concreto Haroldo de Campos, parafraseando Olavo Bilac:

Não estamos mais em tempo de ”ouvir estrelas”, mas sim de ouvir estruturas.

No primeiro momento da minha fala na aula do último dia 15, falei que as tecnologias eletrônicas impulsionam as faculdades mentais das pessoas, e que ela nos impele a sermos menos especialistas e mais polímatas. Isso não é novidade. Os primeiros a expressá-lo foram os artistas do século passado. Se por um lado, durante o século XIX tínhamos a ideia do artista como um gênio, dono de sua própria obra, especialista de sua linguagem, na virada do século XX, com a invenção de uma parafernália de tecnologias eletrônicas, vemos cada vez mais os artistas interessando-se pelos veículos de comunicação em massa, agregando-se em grupos e coletivos, e ficando mais e mais interessados por outras linguagens.

Durante o século XX, vimos um poeta como um Stephane Mallarmé interessado em jornalismo, música e escultura; um compositor como Eric Satie interessado por arquitetura, teatro e pintura; um romancista do tipo de James Joyce interessado por música, cinema e teatro; um cineasta como Jean-Luc Godard interessado por quadrinhos, fotografia e música. Já dizia o tão amaldiçoado Oswald de Andrade: “Só me interessa o que não é meu”. Mais da relação entre a arte moderna e as novas tecnologias pode ser lido nos antológicos “Understanding media” do canadense Marshall McLuhan, e “Contracomunicação”, do poeta e ensaísta Décio Pignatari.

Diz o midiólogo Marshall McLuhan que as tecnologias, sejam elas analógicas ou eletrônicas, são extensões de nossas faculdades corporais. Para o autor canadense, a roda é a extensão do pé, a roupa é a extensão da pele, a casa é a extensão do corpo. Ainda McLuhan acredita que a eletricidade foi capaz de tornar o mundo uma “aldeia global”, não porque a conectou através da comunicação, mas porque para ele a eletricidade é uma extensão do sistema nervoso. Tecnologias potencializam também sensibilidades.

Não é de se admirar que foi no período da popularização do rádio, da televisão, do telefone, do avião e de outras tecnologias eletrônicas, que houve um bum de movimentos de minorias, entre elas o movimento negro, o movimento feminista e o surgimento da adolescência como transição entre a infância e a vida adulta. O homem pisou pela primeira vez na lua quase no mesmo momento em que o hippie pisou pela primeira vez em Woodstock. Eram dois mundos que se abriam, promovidos pelas possibilidades e sensibilidades da eletricidade. Se por um lado as tecnologias eletrônicas proporcionam a comunicação à velocidade da luz, por outra também agrega grupos minoritários e aproxima grupos distintos, distantes por questões geográficas e culturais.

Claro que existe um trade-off na tecnologia. Já Aristóteles alertava o risco da escrita reter as faculdades mnemônicas, e pôr em risco a cultura oral. Foi o que aconteceu a partir da invenção da máquina de imprensa. Pouco a pouco, conforme a escrita foi se tornando um meio mais confiável e um suporte mais seguro de comunicação e de registro, perdemos parte de nossa memória. Durante o período medieval, era comum que os escribas recitassem de cor livros inteiros. Mais dessa relação do homem com a invenção da escrita e a natureza do texto enquanto veículo de comunicação pode ser lida no livro “A galáxia Gutenberg”, também de Marshall McLuhan.

Alguns teóricos da filosofia da tecnologia, como o britânico Andy Clark, reconhecem que a fusão homem e natureza é natural ― ou biológica até. Em seu “Natural-born cyborgs” (“Ciborgues natos” em tradução livre), esse autor britânico chama atenção para o fato de que alguns processos humanos, como cálculos complexos e desenho, são impossíveis de serem realizadas sem um suporte material. Para Clark, o papel, a tela ou a calculadora são extensões de nossa mente.

Se por um lado os meios eletrônicos proporcionam expressão e a agregação de minorias, aprimoramento de alguns processos matemáticos e artísticos, por outra ela causa o sectarismo e o embotamento de alguns sentidos (como a memória ou a atenção).

Pulemos para o século XXI. Com o bum da internet (mesmo com o fracasso do estouro da bolha .com), criamos uma euforia sobre o computador como meio educativo. Vieram os mensageiros instantâneos (mIRC, MSN, e-mail, e o já dominante Whatsapp), as redes sociais (MySpace, Orkut, Facebook e esse Frankestein que é o Instagram) e outras tantas plataformas de entretenimento (blogues, Youtube e TikTok). Nesse ínterim, a escola lançou mão aqui e ali sobre alguns desses recursos.

A partir dessas tentativas, observou-se o fracasso que era a aplicação de tecnologias eletrônicas em sala de aula. O jornalista e empresário David Sax dedica uma seção sobre escola em seu livro “A vingança dos analógicos: ou porque os objetos ainda importam”. Pouco a pouco fornecendo telefones inteligentes para crianças, viu-se um decréscimo da interação social entre elas. Aqui cito o autor:

A recomendação amplamente feita por pediatras de todo o mundo para evitar que crianças com menos de dois anos sejam expostas a telas não vem da preocupação de que o conteúdo destas telas possa danificar seu cérebro, mas do medo de que elas poderão substituir atividades sensoriais valiosas, como colocar suas mãos em uma caixa de areia ou comer um pote de massinha de modelar.

A escola é um espaço de conhecimento, mas sobretudo é um espaço de interação social. É o lugar onde o estudante modelará o seu eu e reconhecerá o espaço no mundo que lhe cabe. As telas, por si só, já obstruem essa fase.

Outro malefício das telas é que elas como veículo de comunicação, não permitem a participação do usuário no processo de significação e entregam a informação completa (são, o que McLuhan chamaria de “meio quente”). Essa natureza das tecnologias eletrônicas modernas podem pôr em risco a cognição das crianças. Aponta também Sax que

Os melhores brinquedos, em comparação, são 10% brinquedo e 90% criança: tinta, papelão, areia. O cérebro da criança faz o trabalho pesado e, no processo, aprende.

A escola pode ser importante para o estudante porque, sendo um espaço primariamente analógico, pode promover processos semióticos de primeiro grau (imaginação) e a criação a partir de um marco zero, com poucos recursos. Quando se lhe põe a tela, corta-se o caule da imaginação, porque através da linguagem audiovisual, tudo é definido, tudo está dado. Novamente: isso não tem nada a ver com o seu conteúdo, mas com a estrutura desse veículo.

Apesar disso, não sou contra o uso de tecnologias eletrônicas como meio de aprendizado. É possível aprender através do computador e do telefone. Pela minha própria experiência, eu não teria lido tantos livros e textos marcantes e conhecido tantas pessoas que me ensinaram se não tivesse acesso à internet; foi através sobretudo do Youtube que aprendi quatro línguas estrangeiras; é pelo meu telefone que escuto uma infinidade de podcasts que me ensinam sobre ciência, história e geopolítica.

Mas saliento: isso tudo me aconteceu nos últimos dez anos, quando eu já tinha saído da escola. Tive uma educação profissionalizante que, apesar de ter sido na área da informática, 70% das aulas eram realizadas só à base de lousa, livro e caderno. A partir da biblioteca escolar, de alguns professores e de alguns amigos, passei a valorizar o estudo, e nele anos depois me encontrei.

Tecnologias são extensões de nossos corpos e mentes. Se quero estender o poder do meu punho, uso um martelo; se quero ampliar o poder de minha unha, uso uma faca; se quero potencializar meu raciocínio lógico, uso uma calculadora ou um computador para programar; se quero estender a minha voz, gravo um podcast, publico nas redes, abro um site. Uma faca pode tanto cortar uma cebola para fazer o almoço para minha família, quanto pode cortar o dedo do meu maior inimigo. O mal está não no veículo faca, mas no seu “conteúdo”, a violência.

Percebo que a maior parte das críticas às tecnologias, não vem de uma leitura de sua natureza estrutural, mas do “conteúdo” delas: extremismo político, bullying, pressão de padrões de beleza inatingíveis. Ora, quem tem feito a curadoria desse conteúdo não são mais os usuários dessas tecnologias, mas as empresas que promovem as redes sociais e as plataformas de entretenimento. Não estamos mais na época de uma internet descentralizada e organizada pelos indivíduos, mas de uma internet monopolizada, muralizada e curada através de algoritmos de recomendação de conteúdo.

Está mais do que provado que as mídias algoritmizadas privilegiam discursos extremistas, não porque são relevantes, mas porque proporcionam mais engajamento, logo, mais lucro. E o pior de tudo: caso um filho tenha contato com alguma informação danosa, a plataforma não se lhe responsabiliza ― o culpado é o pai ou a mãe que o permitiu ter um telefone.

Por um lado, as tecnologias promoveram o interesse nas mais diversas áreas e o acesso ininterrupto e descentralizado de informações; por outro sua centralização sob a guarda de corporações de informática que ganham sobre a economia de atenção as infectou. A esta altura deste capitalismo de vigilância, temos de reconhecer nosso real inimigo: temos de combater não o uso de celular, mas sim a Big-Tech. Temos de regularizar as redes sociais.

#tecnologia


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Imagem monocromática de uma moça olhando triste para o telefone. Ela está dentro da logo do TikTok

Imagem: inc.com

Costumo frequentar o blogue do escritor belga Lionel Dricot, o “Ploum”. Com ele aprendo a língua francesa, como utilizar conscientemente uma tecnologia, mas, sobretudo, como escrever um texto.

Ploum é por formação um profissional da área da computação, mas, apesar disso (ou sobretudo por isso), não deixa de tecer críticas ao mercado de tecnologia. Apesar de ser “viciado em seu computador”, como declarou em entrevista recente sobre seu livro “BikePunk”, Dricot costuma propor e imaginar novos usos das tecnologias.

Em um texto de 2021, Ploum escreveu um texto no qual se propunha a pensar em “Como criar um computador longevo, que manterá sua atenção, seu bolso, sua criatividade, sua alma e o planeta”.

• “The computer built to last 50 years” ― Ploum.net

Ploum sugere, entre outras coisas, que essa máquina deveria ser “offline first”, quer dizer, que a maior parte das operações computacionais devem acontecer localmente, dentro dos diretórios do computador, sem auxílio direto de internet. Assim, a conexão serviria somente como uma espécie de “posto de gasolina” informacional, a partir do qual o dispositivo receberia mais informação para seguir o seu trabalho.

As mensagens, os feeds, os e-mails e todo o resto da informação digital seria trabalhada offline e, quando houvesse conexão, tudo seria subido para a nuvem ou baixado por protocolo RSS. Uma parte de nossas atividades diárias na verdade já funciona dessa forma, no entanto, parte relevante delas só funciona por intermédio da conexão contínua. É o caso por exemplo de alguns clientes de e-mail, mensageiros, mas sobretudo redes sociais e plataformas de entretenimento, como o TikTok.

O TikTok mostrou-se ao longo de seus quase nove anos de operação uma rede influente. Isso deve pouco ao seu conteúdo ― grande parte importada a partir de cortes e edições de outras plataformas ―, mas sim por sua estrutura. Até porque o “conteúdo” (em termos do midiólogo Marshall McLuhan) do TikTok é a televisão, assim como o “conteúdo” do cinema é a fotografia e o teatro, o “conteúdo” da televisão é o cinema etc. TikTok é a própria aprimoração da televisão ― ou sua saturação. O ato de zarpar canais é levado às últimas consequências nessa plataforma de entretenimento. TikTok é televisão para gente com problemas de atenção.

No entanto, ao contrário da televisão, a estrutura do TikTok é de retroalimentação de dados de interação cedidos pelo usuário, o que exige conexão intermitente. Com um poderoso algoritmo de curadoria de conteúdo, a partir do comportamento do usuário diante dos vídeos curtos, apresenta-lhe vídeos similares. Com isso tudo somado ao som, que é um veículo demasiado envolvente, edições frenéticas que nos enchem os olhos, e, é claro, conteúdo ilimitado em feed infinito, o usuário é aprisionado. Por muito tempo, essa dinâmica me afastou do aplicativo. Felizmente, é possível utilizá-lo de uma forma saudável e não viciante, isto é, assistindo aos seus vídeos offline.

Tutorial de como ver TikTok offline

Notem: quando escrevo “assistir offline”, não me refiro a baixar os vídeos para serem vistos como arquivos na galeria do telefone, mas sim a baixar uma lista de vídeos vindas da For You para serem vistos dentro da plataforma. Isso é possível a partir do seguinte caminho:

  1. abra o aplicativo do TikTok no telefone ― isso só é possível em versão mobile, e não funciona pela versão lite;

  2. toque na aba “Perfil” e em seguida toque no sanduíche minimalista (三) que fica na parte superior direita da tela;

  3. quando abrir a cortina de opções, toque em “Configurações e privacidade“, a última delas;

  4. role até embaixo, e busque pela seção “Cache” e localize a opção de “Vídeos offline”;

  5. aparecerá quatro opções de download: 50 vídeos, com tempo estimado em 30 minutos, pesando 100 MB; 100 vídeos, com 50 minutos e 200 MB; 150 vídeos, 70 minutos, 300 MB; e, por fim, 200 vídeos, com duas horas, pesando 400 MB;

  6. baixe a opção da sua preferência e, quando todos os vídeos esgotarem, vá novamente na seção “Cache” e toque em “Liberar espaço”, e apague o cache e o download de vídeos, e baixe-os quando tiver conexão outra vez.

Perceba que isso é um círculo, não um círculo viciante, mas um círculo virtuoso. A aba de vídeos offline não abrirá por padrão, e sim a For You. Para abrir a lista de baixados, você deve voltar à etapa 1 deste tutorial.

Lembre-se de que os vídeos não estão baixados na memória de seu telefone, e sim em cache, o que quer dizer que eles só estão disponíveis dentro do aplicativo; caso queira tê-los como arquivo é necessário baixá-los com a internet ativada.

Recomendações adicionais

Mesmo que os vídeos baixados partam da lista de For You, prefira utilizar contas que não têm o algoritmo muito “treinado”. Tentei esse processo por uma conta “rodada”, onde até publiquei alguns vídeos, e o resultado foi decepcionante: o algoritmo me voltou vídeos de baixo engajamento, sem nenhuma relevância. Quando a conta é nova e com algoritmo pouco treinado, este tende a “atirar por todos os lados”, e mostrar vídeos que, em geral, viralizam.

Para garantir a minha privacidade (ao menos um pouco), para essa conta nova criei um e-mail alias, ou seja, um e-mail “laranja” que receba as mensagens do TikTok e as encaminhe para o meu e-mail primário. A partir dessa conta com alias, eduquei o algoritmo o suficiente para mostrar vídeos que sejam mais ou menos do meu interesse, mas que o ampliem.

De todas as opções de download, recomendo a de 50 vídeos. Além de não pesar muito no telefone, já esta opção demora a se esgotar ― para ver todos os vídeos, levo não menos do que dois dias, com tempo de tela diário de em média 40 minutos. Disso vem outra vantagem de assistir a vídeos offline: vejo-os com mais atenção e mais de uma vez. Já aconteceu de eu passar incólume por um vídeo na primeira volta, mas me interessar por ele na segunda. Essa dinâmica seria impossível se eu estivesse no feed infinito.

Caso queira tornar a experiência mais intencional e menos dopaminérgica, deixe o seu telefone em modo monocromático ― há vários tutos fáceis para isso por aí. Além disso, retire o som do aparelho, aumentando-o só quando o vídeo lhe interessar ― é bom para você, é bom para as pessoas que estão ao seu redor. Dessa forma, você terá um TikTok neutralizado de todas as estratégias de economia de atenção.

Em outro texto, falei superficialmente das razões pelas quais utilizo meu telefone somente em modo monocromático.

• “Um mundo em preto e branco” ― Ideias de Chirico

Recomendo fortemente que esse seja o padrão àqueles que sentem que o aparelho distrai em demasia, ou que precisam de fazer um detox de dopamina.

Benefícios do offline first

Pela experiência, vê-se que quando temos uma quantidade de conteúdo limitada para ser lida ou vista, não somos tentados a seguir na pesquisa e na navegação. Quando se chega ao “fim da linha” em geral se está em um lugar sem internet, então o leitor contenta-se em sair do aplicativo. É essa a minha experiência com RSS, seja com textos, seja com podcasts.

A experiência é ainda melhor quando se tem um dispositivo que, por design, não incentiva a interação contínua com o aparelho, como o é o Kindle. Há alguns meses neste blogue, ensinei como importar feeds RSS em formato de e-book pelo calibre.

• “Leia mais com Kindle + RSS + calibre” ― Ideias de Chirico

Essa tem sido a minha experiência digital de leitura favorita. No caso do TikTok offline nosso engajamento com a plataforma é diminuída, porque, além de não podermos pesquisar dentro da plataforma, os comentários não são carregados com os vídeos.

Fora esse desestímulo ao engajamento contínuo, a fruição de conteúdo digital offline impede que nossos dados sejam coletados incessantemente, logo, poupa a bateria do aparelho. Além disso, como o algoritmo só pode especular nossos gostos, ele envia vídeos mais diversos, de “fora da nossa bolha”, e mais longos, que demandam mais atenção.

Alguma vez por aí li que “Offline é o novo online”. No tempo da economia de atenção e da vigilância digital, ser de vanguarda é estar desconectado.

#tecnologia


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Em 1972 o escritor italiano Italo Calvino publicou o seu Le città invisibili, uma série de descrições de cidades imaginárias, ambientadas em algo que seria um Mediterrâneo ou um Oriente Médio medievais; essas descrições partem de diálogos imaginados entre o viajante Marco Polo e o monarca Kublai Kan, imperador dos Tártaros. Cada cidade é uma metáfora, e boa parte delas seguem a estética do maravilhoso.

Li Le città invisibili ano passado, e ele foi a minha primeira leitura de um livro completo em língua italiana. Há alguns dias o trecho que selecionei para esta Ideia de Chirico rodava em volta de minha cabeça, porém eu não conseguia lembrar de onde ele vinha. Ontem finalmente decidi buscá-lo e fazer-lhe uma tradução em português, também como forma de praticar um pouco do italiano, que me tem estado em baixa. Espero que vocês gostem e que isso os incentive a ler Calvino, um dos mais originais autores da Itália moderna.

Excepcionalmente esta publicação não trará imagens, a fim de que as descrições não sejam “infectadas” por elas nas suas imaginações.

As cidades e as trocas. 2.

Em Cloe, grande cidade, as pessoas que passam pelas ruas não se conhecem. Ao verem-se, imaginam mil coisas um do outro, os encontros que poderiam ter entre si, as conversas, as surpresas, as carícias, as mordidas. Mas ninguém saúda ninguém, os olhares cruzam-se por um segundo e depois se afastam, buscando outros olhares ― não param.

Passa uma moça que roda uma sombrinha apoiada no ombro, e também um pouco o redondo dos quadris. Passa uma mulher vestida de preto que demonstra a todos os seus anos, com os olhos inquietos sob o véu e os lábios trêmulos. Passa um gigante tatuado; um homem jovem de cabelos brancos; uma anã; duas gêmeas vestidas de coral. Algo corre entre eles, uma troca de olhares como linhas que ligam uma figura a outra e desenham flechas, estrelas, triângulos, até que todas as combinações em um átimo desaparecem, e outros personagens entram em cena: um cego com uma onça na corrente, uma cortesã com leque de plumas de avestruz, um mancebo, uma mulher-bala. Assim, entre aqueles que por acaso encontram-se juntos a abrigar-se da chuva sob o pórtico, ou amontoam-se sob uma tenda de feira, ou param para escutar a banda na praça, consumam-se encontros, seduções, abraços, orgias, sem que se troque uma palavra, sem que se toque um dedo, quase sem levantarem os olhares.

Uma vibração luxuriosa move continuamente Cloe, a mais casta das cidades. Se homens e mulheres começassem a viver os seus efêmeros sonhos, cada fantasma tornar-se-ia uma pessoa com quem começar uma história de perseguições, de fingimentos, de mal-entendidos, de irritações, de opressões, e o carrossel das fantasias pararia.


Le città e gli scambi. 2.

A Cloe, grande città, le persone che passano per le vie non si conoscono. Al vedersi immaginano mille cose uno dell’altro, gli incontri che potrebbero avvenire tra loro, le conversazioni, le sorprese, le carezze, i morsi. Ma nessuno saluta nessuno, gli sguardi s’incrociano per un secondo e poi si sfuggono, cercano altri sguardi, non si fermano.

Passa una ragazza che fa girare un parasole appoggiato alla spalla, e anche un poco il tondo delle anche. Passa una donna nerovestita che dimostra tutti i suoi anni, con gli occhi inquieti sotto il velo e le labbra tremanti. Passa un gigante tatuato; un uomo giovane coi capelli bianchi; una nana; due gemelle vestite di corallo. Qualcosa corre tra loro, uno scambiarsi di sguardi come linee che collegano una figura all’altra e disegnano frecce, stelle, triangoli, finché tutte le combinazioni in un attimo sono esaurite, e altri personaggi entrano in scena: un cieco con un ghepardo alla catena, una cortigiana col ventaglio di piume di struzzo, un efebo, una donna-cannone. Così tra chi per caso si trova insieme a ripararsi dalla pioggia sotto il portico, o si accalca sotto un tendone del bazar, o sosta ad ascoltare la banda in piazza, si consumano incontri, seduzioni, amplessi, orge, senza che ci si scambi una parola, senza che ci si sfiori con un dito, quasi senza alzare gli occhi.

Una vibrazione lussuriosa muove continuamente Cloe, la più casta delle città. Se uomini e donne cominciassero a vivere i loro effimeri sogni, ogni fantasma diventerebbe una persona con cui cominciare una storia d’inseguimenti, di finzioni, di malintesi, d’urti, di oppressioni, e la giostra delle fantasie si fermerebbe.


In: “Le città invisibili” (1972), de Italo Calvino. Tradução de Arlon de Serra Grande.

P. S. (7 abr. 2025): tradução atualizada com as gentis recomendações do italófilo Renato Stanz, companheiro do Clube Poliglota.

#tradução #cultura


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Estou ocupado com vários textos ao mesmo tempo, mas não gostaria de deixar este espaço emarasmado. Aqui vai uma curadoria de minhas publicações do meu perfil @arlon@harpia.red, de status de Whatsapp ou rascunhos de rascunhos, i. e., pensamentos que tive durante a escrita desta Ideia de Chirico. Por puro acaso, enquanto editava este texto, percebi que a maioria destas notas falam somente de tecnologia e de Fediverso. O post desta vez é sem foto; estou com um problema na nuvem.

Sobre moda e intimidade esmartefônica

Interpreto capinha como “roupa de telefone”.

Quando ele está em casa, fica sem nada, peladinho como veio ao mundo.

Offline-first

Após ler um ensaio do @ploum@mamot.fr imaginando a construção de um computador que dure 50 anos ― onde também se fala do princípio de #offlinefirst / #localfirst ―, tive ganas de criar um diretório local de arquivos para consulta rápida e sem internet.

Já baixei alguns mapas (América do Sul, Brasil, Ceará etc.). Tentei baixar o mapa de infraestrutura da minha cidade pelo Open Street Maps, mas não consegui direitinho. Penso em baixar o repositório inteiro da Wikipédia, que pesa em média 50 GB. Antes dessa ideia, eu já tinha debaixo da manga dois dicionarinhos de regência ― nominal e verbal ―, do Celso Luft. Nunca se sabe quando será necessário saber se se tem “esperança por algo” ou “esperança de algo”. Nada garante que nessa ocasião haverá internet disponível.

Citação

Você já viu um viciado em crack dizer que está sem dinheiro para comprar drogas? Não, ele levanta e faz acontecer.

– Algum coach em algum lugar do mundo.

Via @NoahLoren@ayom.media

Furo fediversal

Descobriram um bugue no desenvolvimento do Pixelfed, no qual caso um usuário dessa plataforma siga uma conta privada de outra plataforma, essa conta passa a ser pública para os seguidores do usuário que a seguiu.

Pixelfed leaks private posts from other Fediverse instances.

Dizem que bugues no Pixelfed são frequentes. Cheguei a ter um perfil nessa que é a análoga fediversal do Instagram, e, apesar de não ter publicado tanto nela, gostaria de que tivesse sucesso, já que, de todas as plataformas do protocolo ActivityPub, tem a interface mais amigável e com mais apelo familiar.

Nuvem não é becape

Um fio absurdo do Mastodon com o relato de uma conta de nuvem pela Oracle que foi desativada sem aviso prévio, porque a conta estava “inativa” ― provavelmente a sincronização estava ativada.

After realizing that my servers were offline since the 25th of January 2025, I've been in contact with Oracle support in a multitude of ways trying to figure out why this happened and how we can recover both the account and data.

I wasn't told that my account was disabled. I didn't receive an E-Mail or anything. When logging in, I was simply told that my username or password was incorrect. After (successfully) resetting my password twice, I realized it wasn't about the password. Oracle had just deleted my account without any notice.

This is a public service announcement to never ever use Oracle

Leiam-no inteiro e lembrem-se da máxima do @manualdousuario@mastodon.social

Nuvem não é becape.

Sobre deixar uma “coleirinha” no notebook

Outra noite tive um sonho no qual eu perdia meu notebook, alguém o encontrava, mas, em vez de deixar nos achados e perdidos, acabava se apropriando dele já que o aparelho “não tinha nome”.

Ato contínuo, acordo, abro a tampa da minha máquina e coloco meu e-mail e o meu número de telefone na aba “usuário” do sistema.

Nunca se sabe em que mãos estarão nossos pertences perdidos. Na dúvida, é melhor arriscar a privacidade para ter a chance de ter o objeto de volta, do que perder o objeto e a privacidade...

O gozo da tecnologia responsiva

Resolver um problema no sistema operacional é análogo a afiar uma faca ou engraxar um rolamento; demanda muito tempo, mas ao fim dá aquela sensação de alívio de ter de volta um instrumento como uma extensão do corpo.

Sobre Ghost

Estou animado por Ghost, plataforma de newsletter que entrou para o protocolo ActivityPub. Mas acho a logo deles tão edgy, meio intimidador mesmo, algo que só a logo de X do Twitter me provocou; me lembra também daqueles signos que os alienígenas de “A Chegada” faziam.

Essa logo da Ghost contrasta com as das plataformas fediversais, que têm um aspecto mais amigável e convidativo.

Apesar disso, gostaria de experimentá-la, cruzando-lhe meus posts destas Ideias de Chirico para convertê-los em newsletter. Também espero que haja algum rebranding dela conforme fique mais próxima do éthos fediversal.

Sonho de consumo no Fediverso

Abrir o texto de um link como se fosse um post e ter a opção de compartilhá-lo na linha do tempo com ou sem comentários como se viesse de um perfil.

Desabafo sobre a mídia pendrive

A mídia mais pau mole que existe é o pendrive.

Não dá segurança ao ser carregado, pode ser perdido facilmente, não tem tatilidade alguma e não tem nada de especial em si. O fato também de ser regravável o torna banal. Por tudo isso, é impossível apegar-se a um pendrive como se apega a um disco, a uma fita ou a um CD. Por acaso, você já recebeu um pendrive de presente de alguém? Não, né? O pendrive não tem sex-appeal, é uma mídia demasiado pau mole.

Não é obviedade dizer que só no Brasil que pendrive é chamado de pendrive. Esse nome é irascível. É da coleção de nomes em inglês que são só faladas no Brasil. Direção Caneta? Nos Estados Unidos ele é literalmente vara USB [USB stick]. Nem por isso ele ganha sex-appeal. Pau USB. Pau mole USB.

Sobre Smithereen

Desativei minha conta Smithereen, a rede fediversal inspirada no Facebook clássico. Ao menos por enquanto. Precisava de uma plataforma que permitisse uma leitura de textos mais longos, que fugisse da lógica seguidores/seguindo e que ao mesmo tempo tivesse um leiaute limpo. Smithereen resolve muito bem esse problema.

No entanto, há uma série de recursos que, talvez propositalmente, não foram implementados. É o caso das hashtags. O desenvolvedor principal do projeto disse que limitou o uso de hashtag para evitar ao máximo que o usuário veja conteúdo de fora de sua federação.

Além disso, faltam implementações básicas do tipo ajuste de letra e modos noturno e diurno. Como a hashtag, esse recurso aparentemente está deliberadamente ignorado.

Agora é esperar até que apareça alguma instância #Friendica brasileira estável.Estou atento por exemplo à f.capivarinha.club. Essa será a próxima rede que experimentarei. Pelo que sei, Friendica é um hub, que permite a leitura e compartilhamento de notícias de feeds RSS.

Rede social fez um mal danado...

Pagando um psicólogo pra tentar me convencer de que não é porque um texto meu não teve muitos compartilhamentos que isso significa que ele seja ruim.

Outra proposta de aportuguesamento

Fork → Garfo

Ex.

O Linux Lite é um sistema garfo do Xubuntu.

P. S.: sugestão do @eltonfc@bertha.social é de utilizar a palavra “forquilha”.

Segundo o dicionário Dicio, “forquilha” é

  1. Ferramenta agrícola composta por uma haste de duas ou três pontas, semelhantes às pontas de um garfo, usada para remexer mato ou palha; garfo, forca, forqueta, forcado; 2. Tronco com uma bifurcação na ponte; forqueta; 3. objeto bifurcado, com duas pontas, como um Y.

Exemplo de uso:

Fizeram uma forquilha do cliente oficial do Pixelfed.

O Mastodon foi recentemente forquilhado.

A comunidade fediversal

são os tuiteiros que amadureceram e fizeram psicoterapia.

Um desejo

Cantar o 4’33” do John Cage em um karaokê…

A alegria de descobrir e o mistério de compartir (e vice-versa)

Baixar coisas é tão legal!

De alguma forma misteriosa você pega um arquivo de alguém desconhecido de algum lugar ignoto do planeta e bota isso diretamente no seu computador. E aí pode ter acesso ao arquivo sem internet!

Isso não é legal?!

Citação

se o Estado te obriga a ter um celular para acessar serviços públicos o Estado deveria dar celulares e powerbanks e acesso ilimitado à internet pra todas as pessoas. Que mundo bizarro e maluco que a gente se enfiou com essas tranqueiras tecnológicas, é enlouquecedor

― Citação da sempre genial @apropriagui@masto.donte.com.br

#notas #tecnologia


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