“O computador feito para durar 50 anos”, por Ploum
Ressalva: Nesta Ideia de Chirico, traduzi um ensaio que eu já compartilhara em alguma das Notas Costuradas. Trata-se de “The computer build to last 50 years”, onde se fala sobre o conceito de um computador eterno, de manutenção permanente, como o são as máquinas de escrever. O texto foi escrito em inglês por Lionel Dricot (m.c.c. Ploum), famoso blogueiro e escritor belga, que recentemente publicou um romance distópico, o “Bikepunk”. Outro dia trarei outros textos do Ploum traduzidos do francês.
Esta tradução foi sugerida por @diegopds@bolha.us, que também fez a revisão do texto. Termos técnicos que não têm relativas precisas em português foram mantidos ou têm sua forma original entre parênteses, antecedida de uma sugestão de tradução. Afora esses casos, tentei ao máximo buscar traduções ou mesmo criar palavras que se adequem ao português. Logo, reconheçam esta tradução como propositiva. Isso faz parte de uma política linguística aqui nas Ideias de Chirico de, sempre que possível, usar termos estrangeiros traduzidos ou aportuguesados. Tal política está melhor desenvolvida na aba “Sobre”, ao topo desta página.
Para aqueles que gostarem deste texto e souberem o idioma inglês, também sugiro a leitura de “Reinventing How We Use Computers”, em que Ploum discorre mais sobre como imagina o Forever Computer em termos visuais e ergonômicos.
Boa leitura!
“O computador feito para durar 50 anos”, escrito por Lionel Dricot (Ploum) em 2021
Como criar um computador duradouro que poupará sua atenção, sua carteira, sua criatividade, sua alma e o planeta. Acabar com monopólios será somente uma das consequências.
Cada vez que vejo minha máquina de escrever Hermes Rocket (à esquerda na imagem), fico surpreso pelo fato dela parecer bem moderna e, depois de uma limpeza, funcionar como por mágica. O aparelho tem 75 anos e é uma peça de tecnologia bem complexa, com mais de 2000 partes móveis. Isso ainda é uma das melhores ferramentas para focar na escrita. Bem, nem tanto. Prefiro a mais jovem Lettera 32, que tem quase 50 anos (à direita na imagem).
Máquinas de escrever são uma peça de maquinaria incrivelmente complexa e precisa. Em seu auge, nas décadas em torno da Segunda Guerra Mundial, as fabricávamos tão bem que hoje já não precisamos mais fabricar máquinas de escrever. Simplesmente temos o suficiente delas na Terra. Você pode contestar que isso se deve porque ninguém mais as usa. Não é verdade. Um monte de escritores seguem as usando, elas ficaram na moda durante os anos 2010 e, para escapar da vigilância, alguns serviços secretos voltaram a utilizá-las. É um mercado bem nichado, mas existente.
Aprofundemos essa ideia: basicamente fabricamos o suficiente de máquinas de escrever para o mundo em menos de um século. Se quisermos mais máquinas, a solução não será fabricar mais, mas encontrá-las em sótãos e restaurá-las. Para a maioria das máquinas de escrever, restauração é somente questão de tomar tempo para fazê-lo. Não há habilidades ou ferramentas complexas envolvidas. Mesmo as operações mais difíceis poderiam ser aprendidas sozinhas, por simples tentativa e erro. Toda a teoria necessária para entender a máquina de escrever é a própria máquina de escrever.
Por outro lado, precisamos mudar nossos notebooks a cada três ou quatro anos. Nossos celulares a cada dois anos. E todas as outras peças de equipamento (carregadores, roteadores, modem, impressoras...) precisam ser trocadas regularmente.
Mesmo com a devida manutenção, elas simplesmente pifam. Não ficam mais compatíveis com seu ambiente. Já é impossível alguém sozinho saber perfeitamente o que elas estão fazendo, imagine consertá-las. Baterias se desgastam. Telas trincam. Processadores tornam-se obsoletos. Programas [software] tornam-se inseguros, isso quando não quebram ou se recusam a ser executados.
Não é que você mudou alguma coisa nos seus hábitos. Você ainda basicamente comunica-se com as pessoas, busca informações, vê vídeos. Mas hoje seu trabalho está no Slack, o que requer um CPU moderno para carregar a interface do que basicamente é um IRC enxuto. Seu programa de videoconferência usa um novo codec que requer um novo processador. E um novo roteador de rede sem fio [wi-fi]. Seu cliente de e-mail agora só roda em 64 bits. Se você não atualiza, fica largado ao léu.
Claro, computadores não são máquinas de escrever. Eles fazem bem mais do que máquinas de escrever.
Mas poderíamos imaginar um computador feito como uma máquina de escrever? Um computador que ficaria com você por toda sua vida e seria passado para seus filhos?
Poderíamos fazer um computador desenhado para durar ao menos 50 anos?
Bem, dado o modo como usamos os recursos do nosso planeta, a questão não é se poderíamos ou não. Precisamos fazê-lo, não importa como.
Então, como poderíamos fazer um computador que dure 50 anos? Isso é o que quero explicar neste ensaio. Em minhas notas, estou me referindo a esse objeto como o #ForeverComputer. Você deve ter um nome melhor. Isso não importa de fato. Não é o tipo de objeto que terá uma palestra anual para apresentar o modelo novo em folha, nem anúncios por todos os lados nos falando o quão revolucionário é.
Focando em casos de uso atemporal
Não tem jeito de se prever qual será o próximo codec de vídeo ou o próximo padrão de rede sem fio. Não há porquê de tentá-lo. Não se pode adivinhar que tipo de atividade online estará na moda nos próximos dois anos.
Em vez de tentar fazer isso tudo, a gente poderia focar em montar uma máquina que fará atividades atemporais, e fazê-lo bem. Minha máquina de escrever de 1944 ainda está escrevendo. Ainda está fazendo algo que acho útil. Em vez de tentar criar um plataforma de jogos genérica ou um computador para assistir à Netflix, vamos aceitar algumas limitações.
A máquina será feita para comunicar-se em formato escrito. Isso significa escrita e leitura. Isso já cobre um monte de usos. Escrita de documentos. Escrita de e-mails. Leitura de mensagens, documentos, livros digitais. Busca por informação na rede. Leitura de blogues, newsletters e fóruns.
Isso não parece muito, mas, se você pensar nisso, já é bastante. Muita gente ficaria feliz por ter um computador que faz somente isso. Claro, designers gráficos, produtores de filmes e gamers não ficariam felizes com um computador assim. Esse não é o ponto. É só que a gente não precisa de um computador novinho toda hora. Espaços de trabalho dedicados e poderosos ainda poderiam existir, mas poderiam ser compartilhados ou ser renovados menos frequentemente se todo mundo tivesse acesso ao seu próprio dispositivo para escrita e leitura.
Restringindo o uso, a gente cria muitas oportunidades de design.
Peças [hardware]
A meta de um computador de 50 anos não é ser miúdo, ultraportátil e ultrapotente. Em vez disso, tem de ser robusto e resiliente.
Na época da máquina de escrever, um aparelho de cinco quilos era considerado como ultraportátil. Como eu era acostumado a um MacBook de 900g e senti que meu Thinkpad de 1,1kg era volumoso, pude me imaginar sobrecarregado. Mas, assim que comecei a escrever em um Freewhite (na imagem, entre minhas máquinas de escrever), percebi algo importante. Se quisermos criar objetos duradouros, os objetos precisam ser capazes de criar uma conexão conosco.
A sensação com um objeto mais pesado e bem desenhado é diferente. Você não precisa dele sempre consigo só por precaução. Você não o joga na sua mochila sem pensar. Ele não está lá para lhe aliviar do tédio. Ao contrário, carregar o objeto é um comprometimento. Um ato consciente de que você precisa dele. Você o sente em suas mãos, sente o peso. Você está dizendo ao objeto: “Eu preciso de você. Você tem um propósito”. Quando tal comprometimento é feito, o propósito raramente é “rolar um fio sem fim de vídeos de gatos”. Ter um propósito torna mais difícil jogar o objeto fora porque uma versão novinha acabou de ser lançada. Isso também ajuda a desenhar uma linha entre os momentos nos quais você usa o objeto e os momentos em que não o usa.
Além de robustez, um dos principais objetivos do ForeverComputer seria usar o mínimo de eletricidade possível. Baterias devem ser facilmente substituíveis.
A fim de que se torne relevante para os próximos 50 anos, o computador precisa ser feito com partes facilmente substituíveis. As inspirações são o Fairphone e o notebook da MNT Reform. As especificações de todas as partes precisam ser de código aberto, logo todo mundo pode produzi-las, consertá-las ou mesmo inventar alternativas. As partes poderiam ser separadas em alguns blocos lógicos: a unidade da computação, o que inclui a placa-mãe, CPU e RAM; a unidade de energia, ou seja, a bateria, a tela, o teclado; a unidade de rede, a unidade de som e a unidade de armazenamento. Tudo isso vem em um revestimento.
Claro, cada bloco poderia ser feito de componentes separados que poderiam ser consertados, mas fazer blocos lógicos claros com interfaces definidas nos permite uma compatibilidade mais fácil. O corpo requer atenção especial porque isso vai ser a essência do objeto. Assim como para o navio de Teseu, o computador pode permanecer o mesmo ainda que você substitua cada parte. Mas o revestimento protetor é especial. Desde que você mantenha o revestimento original, a sensação para com o objeto seria a de que nada foi mudado.
Em vez de ser produzido em massa na China, ForeverComputers poderiam ser fabricados localmente, a partir de cópias do projeto, de código aberto. Manufaturadores poderiam trazer em jogo suas próprias habilidades, suas próprias experiências. A gente poderia ir mais longe conectando cada ForeverComputer a um sistema do tipo Mattereum, em que modificações e reparos serão listadas. Assim, cada computador seria único, com uma história de pertencimento. Assim como o Fairphone, o computador deveria ser fabricado com materiais da forma mais ética possível. Se você quer criar uma conexão com um objeto, se você quiser dar-lhe uma alma, esse objeto deveria ser o mais respeitoso possível com seus princípios éticos.
Escolhas optativas
Logo que temos a escolha de usar sobretudo um computador para a interação escrita, faz sentido, no estado atual da tecnologia, usar uma tela de tinta eletrônica [e-ink]. Telas de tinta eletrônica economizam bastante energia. Isso faria toda a diferença entre um dispositivo que você tem de recarregar toda noite, trocando a bateria a cada dois anos, e um dispositivo que basicamente fica ocioso por dias, algumas vezes por semanas, e que você recarrega uma vez ou outra. Ou que você nunca precisa recarregar se, por exemplo, o revestimento protetor externo vier com painéis solares ou uma manivela emergencial.
Tela de tinta eletrônica atualmente é mais difícil de ser usada com mouses e dispositivos de apontar [pointing devices]. Mas a gente pode construir um computador sem nenhum dispositivo de apontar. Geeks e programadores sabem do benefício de fluxos de trabalho voltados ao teclado. Eles são eficientes, mas difíceis de aprender.
Com um programa dedicado, esse problema poderia ser resolvido de forma inteligente. O Freewrite tem uma parte dedicada na tela, sobretudo usada para estatísticas textuais ou para a disposição da hora. Esse conceito poderia ser estendido para mostrar comandos disponíveis. Boa parte das pessoas está pronta para aprender como usar suas ferramentas. Mas, ao mudar a interface toda hora com atualizações imprevistas, ao pedir que designers inovem em vez de focar em utilidade, a gente esquece de qualquer aprendizado a longo prazo, considerando usuários como idiotas em vez de os empoderar.
Podemos criar uma interface para o usuário orientada ao texto com uma curva de aprendizado gradual? Para um dispositivo que deve durar 50 anos, isso faz sentido. Por essência, tal dispositivo deve revelar a si mesmo, desbloqueando seus potenciais gradualmente. Um design cuidadoso não será sobre “mirar um dado segmento consumidor”, mas “fazê-lo útil para humanos que dedicaram tempo para aprender”.
Claro, alguém pode imaginar a substituição de um bloco de inserção de dados [input block] para ter um teclado com um dispositivo de apontar, como o famoso ponto vermelho da Thinkpad. Ou um mouse USB poderia ser conectado. Ou a tela poderia ser sensível ao toque. Mas e se a gente tentasse fazer o máximo que pudermos sem eles?
Tinta eletrônica sem dispositivo de apontar mataria qualquer rolagem infinita, forçando-nos a pensar na interface do usuário como uma ferramenta textual que deve ser eficiente e servir ao usuário, mesmo que isso requeira algum aprendizado. Ferramentas precisam ser aprendidas e cuidadas. Se você não precisa aprender, se você não precisa cuidar, então provavelmente não é uma ferramenta. Você não está a usando, você está sendo usado.
Claro, isso não significa que todo usuário precisa aprender a programar a fim de estar preparado para usar isso. Uma boa interface durável requer algum aprendizado, mas não requer quaisquer modelos mentais complexos. Você entende intuitivamente como uma máquina de escrever funciona. Você pode aprender alguns recursos mais complexos como tabulações. Mas você não precisa entender como o mecanismo interno funciona para recuar o papel com cada pressionar de tecla.
Offline por padrão
Nossos dispositivos atuais esperam estar online todo o tempo. Se você se desconecta por qualquer motivo, verá um monte de notificações, um monte de erros. Em 2020, usuários de MacOS infamemente descobriram que seus SO estavam enviando várias informações para os servidores da Apple, porque, por algumas horas, esses servidores não estavam respondendo, resultando em uma epidemia de bugues e erros. Ao mesmo tempo, simplesmente tentar usar meu notebook offline permitiu-me encontrar um bugue na distribuição Regolith Linux. Esperando estar online, uma pequena aplicação [applet] tentava reconectar furiosamente, usando toda a CPU disponível. O bugue nunca foi achado antes de mim porque poucos usuários ficam offline por um extenso período de tempo (deve-se notar que isso foi consertado nas horas que se seguiram ao meu informe inicial, código aberto é massa).
Essa conectividade permanente tem um efeito profundo na nossa atenção e no modo com que usamos computadores. Por padrão, o computador está nos notificando o tempo inteiro com sons e popapes. Desligá-los requer uma configuração avançada e, algumas vezes, raque [hack]. No MacOS, por exemplo, você não pode ligar o modo Não Perturbe permanentemente. Propositalmente, não ser perturbado é algo que deve ser raro. O raque que eu usava era configurar o modo para ser ativado automaticamente entre 3h da manhã e 2h da manhã.
Quando você está online, seu cérebro entende que algo pode estar acontecendo, mesmo sem notificação. Pode haver um novo e-mail esperando por você. Qualquer coisa nova em um website aleatório. Está lá, bem no seu computador. Basta mover a janela aberta para fora e você pode ter algo que você está ansiando: novidade. Você não tem de pensar. Logo que você tenha algum pensamento difícil, seus dedos provavelmente irão encontrar alguma diversão espontaneamente.
Mas essa conexão permanente é uma escolha. A gente pode desenhar um computador para ser offline por padrão [offline first]. Uma vez conectado, ele sincronizará tudo de que precisa: e-mails serão enviados e recebidos, notícias e podcasts serão baixados dos seus websites e RSS, arquivos serão subidos, alguns websites ou gemini pods podem até mesmo ser baixados até uma dada intensidade. Isso seria algo consciente. O estado da sua sincronização será mostrada em tela cheia. Por padrão, você não seria permitido de usar o computador enquanto estivesse online. Você verificaria se toda a sincronização foi finalizada para então deixar o computador offline de volta. Claro, a tela cheia poderia ser contornada, mas você precisaria fazê-lo conscientemente. Estar online não seria um padrão irracional.
Esse projeto de “offline por padrão” também teria um profundo impacto nas peças. Isso significa que, também por padrão, o bloco de rede poderia ser cabeado. Tudo de que você precisaria seria um simples conector RJ-45.
A gente não sabe como os protocolos de rede sem fio mudarão. Há uma grande possibilidade de que a rede sem fio de hoje em dia não seja suportado pelos roteadores de amanhã ou apenas seja um plano de recuperação alternativo. Mas há chances de que o RJ-45 permanecerá por ao menos algumas décadas. E se não o RJ-45, um simples adaptador poderia ser impresso.
Rede sem fio tem outros problemas: ela suga energia. Precisa de sempre estar escaneando em plano de fundo. Não é confiável e é complexa. Se você quer conectar-se à rede sem fio só por um instante, precisa habilitá-la, esperar pela busca em plano de fundo, escolher a rede para se conectar, cruzar seus dedos para que não haja nenhum ponto de acesso aleatório que queira espiar seus dados, escrever a senha. Esperar. Reescrever a senha porque provavelmente você escreveu um zero em vez de um O. Esperar. Parece que está conectado. É isso? Todos os arquivos estão sincronizados? Por que a conexão foi interrompida? Será que estou fora da área? Será que as paredes são muito grossas?
Por outro lado, tudo isso poderia ser alcançado plugando um conector RJ-45. Tem uma luzinha verde ou laranja? Sim, então o cabo está bem plugado, problema resolvido. Isso também acrescenta consciência de conexão. Você precisa andar até o roteador e fisicamente conectar o cabo. A sensação é de estar enchendo o tanque com informação.
Claro, a concepção de código aberto significa que qualquer um pode produzir uma placa de rede sem fio ou 5G que você pode plugar em um ForeverComputer. Mas, assim como os dispositivos de apontar, vale a pena tentar ver o quão longe podemos ir sem ela.
Apresentando a conectividade ponto a ponto (P2P)
O paradigma de “offline por padrão” leva a uma nova era de conectividade: P2P (physical peer to peer)¹. Em vez de conectar-se a um servidor central, você pode conectar dois computadores aleatórios com um simples cabo.
Durante essa conexão, ambos computadores dirão um ao outro do que eles necessitam e, se por algum caso puderem satisfazer alguma dessas necessidades, as satisfarão. Eles poderiam também transmitir mensagens criptografadas para outros usuários, como garrafas no mar. Se acontecer de você encontrar Alice, por favor, dê-lhe esta mensagem.
Conexão entre pares implica em forte criptografia. Informação privada deve ser criptografada sem nenhum outro metadado que não o destinatário. O computador conectando-se a você não tem ideia se você é o remetente original ou somente um nó da cadeia de transmissão. Informação pública deve ser assinada, então você tem a certeza de que vêm do usuário que você confia.
Isso também significa que nossos discos rígidos enormes poderiam ser usados totalmente. Em vez de assentar-se em um monte de discos rígidos vazios, seu armazenamento agirá como um mensageiro para outros. Quando estiver cheio, de forma inteligente apagará coisas mais velhas e provavelmente menos importantes.
A fim de usar meu computador offline, eu baixei a Wikipédia, com gravuras, usando o programa Kiwix. Isso só tomou 30GB do meu disco rígido e posso ter a Wikipédia comigo todo o tempo. Só me falta uma toalha para ser um verdadeiro mochileiro das galáxias.
Nesse modelo, grandes servidores centrais apenas servem como um portal que faz as coisas acontecerem mais rápido. Eles não são mais necessários. Se um portal central desaparecer, não há um grande problema.
Mas não é só sobre Wikipédia. Protocolos como IPFS pode nos permitir construir toda uma internet P2P e sem servidores. Em algumas áreas rurais do planeta, onde o acesso à banda larga não é fácil, tais Redes Tolerantes a Atraso (Delay Tolerant Networks ― DTNs) já são funcionais e extensivelmente em uso, incluindo para navegar na internet.
Programas [Software]
Não precisa dizer que, a fim de construir um computador que poderia ser usado pelos próximos 50 anos, todo programa deve ser de código aberto.
“Código aberto” significa que bugues e problemas de segurança podem ser resolvidos muito tempo depois de que a empresa que os codificou desapareceu. Mais uma vez, veja as máquinas de escrever. Muitas empresas desapareceram ou se transformaram a ponto de não serem mais reconhecidas (tente trazer de volta o seu IBM Selectric para um atendente da IBM pedindo por um conserto, só para ver a cara dele. E, sim, seu IBM Selectric provavelmente tem exatamente 50 anos). Mas máquinas de escrever ainda são uma coisa porque você não precisa de uma empresa para consertá-las para você. Tudo de que precisa é um pouco de tempo, destreza e conhecimento. Para as partes faltantes, outras máquinas de escrever, algumas vezes de outras marcas, podem ser recolhidas.
Para um computador de 50 anos atinja o mercado, precisamos de um sistema operacional. Essa é a parte mais fácil já que os melhores sistemas operacionais que há já são de código aberto. Precisamos também de uma interface de usuário que deve ser dedicada para nossas necessidades particulares. Isso é um trabalho duro, mas viável.
A parte da rede P2P offline por padrão é talvez a parte mais desafiadora. Como dito antes, peças essenciais como IPFS já existem. Mas tudo tem que ser colado junto com uma boa interface de usuário.
Claro, faz sentido confiar primeiramente em alguns servidores centrais. Por exemplo, codificar em Debian e conseguir subir todos os recursos dedicados como parte do repositório oficial do Debian já oferece alguma garantia a longo prazo.
O ponto principal é mudar nossa postura psicológica a respeito de projetos tecnológicos. Descartemos a mentalidade do Vale do Silício de tentar permanecer na surdina para então, do nada, tentar ter o máximo de fatia de mercado possível a fim de contratar mais desenvolvedores.
O próprio fato de eu estar escrevendo isto publicamente é um compromisso com o espírito do projeto. Se nós conseguirmos mesmo fazer um computador que seja utilizável por 50 anos e eu estiver envolvido, quero que se destaque que, desde sua primeira descrição, tudo foi feito de forma aberta e livre.
Mais sobre a perspectiva
Um computador feito para durar 50 anos não é sobre fatia de mercado. Não é sobre levantar uma marca, arrecadar dinheiro de capital de risco [venture capital] e ser vendido por um monopólio. Não é sobre criar um unicórnio ou mesmo um bom negócio.
É tudo sobre criar uma ferramenta que ajude a humanidade a sobreviver. É tudo sobre tomar o melhor de oito bilhões de cérebros para criar esta ferramenta, em vez de contratar alguns programadores.
Claro, a gente precisa pagar as contas. Uma empresa pode ser um bom veículo para criar um computador ou ao menos partes dele. Não há nada de errado com empresas. Na verdade, penso que uma empresa é atualmente a melhor opção. Mas, logo no início, tudo deve ser feito levando em consideração que o produto deve durar mais do que a empresa.
O que significa que os clientes comprarão uma ferramenta. Um objeto. Isso lhes pertencerá. Eles poderão fazer o que quer que seja com isso posteriormente.
Parece óbvio, mas hoje em dia quase todos os itens de alta tecnologia que compramos não nos pertence. Nós os alugamos. Dependemos da empresa para os utilizar. Não somos permitidos a fazer o que queremos. Somos até mesmo forçados a fazer coisas que não queremos como atualizar programas em um momento inadequado, enviar dados sobre nós, e hospedar programas que não queremos usar, que não podem ser removidos, ou usar serviços de nuvem proprietários.
Parando para pensar, o computador feito para durar 50 anos é uma tentativa de lidar com o consumo excessivo de dispositivos, de combater monopólios, de reivindicar nossa atenção, nosso tempo e nossa privacidade e de nos libertar de indústrias abusivas.
Não é muito para um único dispositivo? Não, porque esses problemas são todos faces diferentes de uma mesma moeda. Você não pode combatê-los separadamente. Você não pode combatê-los em seus próprios campos. A única esperança? Mudar o campo. Mudar as regras do jogo.
O ForeverComputer não é uma substituição. Ele não será melhor do que seu MacBook ou seu tablet Android. Não será mais barato. Será diferente. Será uma alternativa. Lhe permitirá que use seu tempo em um computador de forma diferente.
Ele não precisa substituir tudo o mais para vencer. Precisa somente existir. Fornecer um espaço seguro. O Mastodon jamais substituirá o Twitter. O Linux para computadores jamais substituiu o Windows. Mas eles são um imenso sucesso porque existem.
Podemos sonhar. Se o conceito tornar-se popular o suficiente, alguns negócios podem tentar tornar-se compatíveis com esse mercado de nicho. Alguns sites ou serviços populares podem tentar tornar-se acessíveis em um aparelho que fica offline a maior parte do tempo, que não requer por padrão um dispositivo de apontar e que requer somente uma tela de tinta eletrônica.
Claro, esses negócios poderiam encontrar algo mais do que publicidade, taxa de cliques e visualizações para arrecadar dinheiro. Esse é o ponto principal. Cada oportunidade de substituir um trabalho de publicidade (o que inclui todos os funcionários da Google e do Facebook) por um meio honesto de arrecadar dinheiro é um passo de destruir um pouco menos o nosso planeta.
Construindo as primeiras camadas
Há um equilíbrio delicado em jogo quando uma inovação tenta mudar nossa relação com tecnologia. A fim de ter sucesso, precisam-se de tecnologias, um produto e conteúdos. A maioria dos tecnólogos tenta primeiro fazer as tecnologias, então os produtos inseridos nelas, então espera pelo conteúdo. Ou isso falha, ou torna-se um troço de nicho. Para ter sucesso, deve haver um jogo de vai-e-vem entre essas etapas. As pessoas têm de gradualmente usar os novos produtos sem o perceber.
O ForeverComputer que descrevi aqui nunca ganharia tração real se lançado hoje. Seria incompatível com muitos dos conteúdos que consumimos todo dia.
O primeiríssimo pequeno passo que imaginei é fazer algum conteúdo que poderia mais tarde já estar compatível. Como não sou o cara do hardware (sou um escritor com experiência em software), isso também é o passo mais fácil que eu mesmo poderia fazer hoje.
Eu chamo esse primeiro passo de WriteOnly [“Só-Escreva”]. Ele não existe ainda, mas é bem mais realista do que o ForeverComputer.
WriteOnly, como o imagino, é uma ferramenta minimalista de publicação para escritores. A meta é simples: escrever arquivos de texto em Markdown no seu computador. Mantê-los. E publicá-los pelo WriteOnly. Os leitores escolherão como ler. Eles podem ler em um site como um blogue, receber seu texto por e-mail ou RSS se eles estiverem inscritos, podem também optar por ler através do Gemini, do DAT ou do IPFS². Podem receber uma notificação através de uma rede social ou através do Fediverso. Isso não lhe interessa. Você não deve se importar com isso, só escrever. Seus arquivos de texto que são sua escrita.
Os recursos são mínimos. Sem comentários. Sem rastreio. Sem estatísticas. Imagens ficam granuladas [dithered] e em escala de cinza por padrão (um formato que permite que fiquem incrivelmente leves ao tempo que ficam mais informativas e mais nítidas do que imagens totalmente coloridas quando dispostas em uma tela de tinta eletrônica).
A meta do WriteOnly é impedir que escritores fiquem preocupados com onde publicar um determinado escrito. Ele também é uma luta contra a censura e o conformismo cultural. Escritores não devem tentar escrever para agradar aos leitores de uma dada plataforma, de acordo com a métrica dos magnatas dessa plataforma. Eles devem conectar-se com seus eus internos e escrever, lançando palavras aos ventos.
Nunca sabemos qual será o impacto de nossas palavras. Devemos deixar nossa escrita livre em vez de reduzi-la a uma ferramenta de marketing para vender coisas ou a nós mesmos.
O benefício de uma plataforma como WriteOnly é que, ao adicionar um novo método de publicação, todo o conteúdo existente seria adicionado nela. A meta final é manter sua escrita acessível para qualquer um sem deixar hospedado em nenhum lugar certo. Poderia ser através de IPFS, DAT ou qualquer novo protocolo em cadeia de blocos [blockchain]. Não sabemos ainda, mas já podemos trabalhar no WriteOnly como uma plataforma de código aberto.
Também podemos já trabalhar no ForeverComputer. Provavelmente haverá diferentes versões. Alguns podem falhar. Outros podem reinventar a computação pessoal como a conhecemos.
Em todo caso, sei o que quero amanhã.
Quero um computador de código aberto, sustentável, descentralizado, offline por padrão e durável.
Quero um computador feito para durar 50 anos e posto na minha mesa próximo à minha máquina de escrever.
Quero um ForeverComputer.
Faça acontecer
Como falei, sou um cara do software. É improvável que eu consiga fazer o ForeverComputer acontecer sozinho. Mas ainda tenho um monte de ideias de como fazê-lo. Também quero focar primeiro no WriteOnly. Se você acha que poderia me ajudar a torná-lo realidade e quer investir nesse projeto, contate-me por lionel@ploum.net.
Se você gostaria de usar um ForeverComputer ou um WriteOnly, pode também seguir este blogue (que está sobretudo em francês) ou inscrever-se aqui em um grupo de discussão [mailing-list] dedicado. Não venderei esses endereços, não os compartilharei e não os usarei para nada além de informá-los sobre o projeto quando se tornar realidade. Na verdade, há uma boa chance de que nenhuma mensagem seja enviada para este grupo de discussão dedicado. E, para tornar as coisas mais difíceis, você terá que confirmar seu endereço de e-mail clicando em um link dentro de uma mensagem de confirmação escrita em francês.
ATUALIZAÇÃO de dezembro de 2022: o grupo de discussão agora é uma lista de discussão aberta:
• https://lists.sr.ht/~lioploum/forevercomputer
Leituras complementares
“The Future of Stuffs”, de Vinay Gupta. Um livro curto, de leitura obrigatória, sobre nossa relação com os objetos e a fabricação.
“The Typewriter Revolution”, de Richard Polt. Um livro e guia completo sobre a filosofia por trás das máquinas de escrever no século XXI. Quem as utiliza, como e por que usar uma você mesmo em uma era de conectividade permanente.
NinjaTrappeur fez em casa uma máquina de escrever digital com uma tela de tinta eletrônica em um revestimento de madeira:
https://alternativebit.fr/posts/ultimate-writer/
Outro projeto DIY com tela de tinta eletrônica e painel solar inclusos:
https://forum.ei2030.org/t/e-ink-low-power-cpu-solar-power-3-sides-of-the-same-lid/82
SL está usando um sistema operacional velho e experimental (Plan9), que o permite de fazer somente o que ele quer (e-mail, navegação de web simples e programação).
http://helpful.cat-v.org/Blog/2019/12/03/0/
Dois artistas vivendo fora de rede em um barco a vela e conectando-se só raramente.
https://100r.co/site/working_offgrid_efficiently.html
“Se alguém produzisse uma máquina de escrever simples, uma máquina de escrever eletrônica que fosse silenciosa, que eu pudesse usar em aviões, que me mostrasse uma tela de 8,5 por 11, como uma página regular, e eu pudesse armazenar nela e imprimir a partir dele como um manuscrito, eu compraria um na mesma hora!” (Harlan Ellison, escritor de ficção científica e cenarista de Star Trek).
http://harlanellison.com/interview.htm
LowTech magazine tem um artigo excelente sobre uma internet low-tech, incluindo Redes Tolerantes a Atraso: https://solar.lowtechmagazine.com/2015/10/how-to-build-a-low-tech-internet.html
Outro artigo da LowTech magazine sobre o impacto que as máquinas de escrever e os computadores tiveram no trabalho de escritório.
https://solar.lowtechmagazine.com/2016/11/why-the-office-needs-a-typewriter-revolution.html
ATUALIZAÇÃO de 6 de fevereiro de 2020: esqueci completamente de Scuttlebutt, que é uma rede social offline por padrão e P2P. Ela faz exatamente o que estou descrevendo aqui para se comunicar.
https://scuttlebutt.nz/get-started/
Uma boa e curta introdução sobre a rede no BoingBoing:
https://boingboing.net/2017/04/07/bug-in-tech-for-antipreppers.html
ATUALIZAÇÃO de 8 de fevereiro de 2020: o excelente “Tales from the Dork Web” tem uma edição sobre o Computador de 100 Anos, que é surpreendentemente similar a este ensaio.
https://thedorkweb.substack.com/p/the-100-year-computer
Adiciono também esta tentativa a um protocolo offline por padrão: o protocolo Pigeon:
https://github.com/PigeonProtocolConsortium/pigeon-spec
E outra máquina de escrever DIY com tinta eletrônica:
https://hackaday.com/2019/02/18/offline-e-paper-typewriter-lets-you-write-without-distractions/
ATUALIZAÇÃO de 15 de fevereiro de 2020: o designer Micah Daigle propôs o conceito de Prose, um notebook com tinta eletrônica e livre de distrações.
¹: Nota do revisor desta tradução: “P2P físico”, a meu ver, é uma redundância. Aqui, sou obrigado a entrar mais fundo num detalhe técnico. Não sei se Ploum tem conhecimento sobre redes de computadores. Mas a rede ponto a ponto (P2P) surge justamente na rede física composta por dois computadores: um ligado ao outro por meio de um cabo; o P2P não-físico seria, por exemplo, o Torrent (que comumente se dá via internet).
²: Sugestão de leituras sobre os protocolos Gemini e IPFS: Gemini (protocolo) – Wikipédia, a enciclopédia livre, Dat (software) – Wikipedia e Sistema de Arquivos Interplanetário – Wikipédia, a enciclopédia livre.
CC BY-NC 4.0 • Ideias de Chirico • Comente isto via e-mail • Inscreva-se na newsletter