Ideias de Chirico

Em lembrança do pintor surrealista greco-italiano Giorgio de Chirico (1888 - 1978), o maior ilustrador de ideias de jerico ― e de Chirico! Um blogue sobre cultura, cotidiano e tecnologia mantido por Arlon de Serra Grande.

Hirayama e Niko, personagens de “Dias Perfeitos”, respectivamente interpretadas por Koji Yakusho e Arisa Nakano.

Quando criança, durante um longo carnaval em casa, assisti diversas vezes ao “Garfield” (2004). Sentado no chão da sala, me encantava com seu brilho, sua cor, seu movimento (a história era um detalhe). Meus parentes, cansados de ver e ouvir a animação em lupe, imploravam para que eu largasse a televisão. Mas, apenas subiam os créditos finais, lá estava eu outra vezes tocando o “play”. Rodei aquele disco no aparelho de DVD como um pião na mão.

Raras foram as vezes que, depois da infância, voltei mais de uma vez a um filme. Um longa-metragem, entretanto, tem recuperado aquele encanto que eu tinha diante da tela, me fazendo retornar a ele diversas vezes. Falo de “Dias Perfeitos” (2023), um drama dirigido pelo alemão Wim Wenders.

“Dias perfeitos” mostra a rotina de um zelador de banheiros de Tóquio chamado Hirayama. Hirayama é um profissional dedicado: cumpre suas horas com natural pontualidade (não usa sequer despertador), tem seu próprio material de limpeza, e, em horário comercial, não se comunica com ninguém sobre outra coisa que não envolva o trabalho.

Duas coisas marcam Hirayama: ele é um introvertido homem de terceira idade, solteiro, e mora sozinho; e seu grande afeto pelas tecnologias analógicas ― ouve música em fita cassete enquanto vai ao trabalho, fotografa com sua câmera analógica durante o horário de almoço e religiosamente lê romances antes de dormir.

No entanto, Hirayama não toma seu ofício como sua vida: nas horas livres, encontra-se com amigos em bares, pedala por diversão, vai à livraria com frequência (é até tido por “intelectual” pela garçonete do seu bar favorito) e mostra gosto por jardinagem.

Hirayama mostra-se satisfeito com seus dias equilibrados, até que um dia tem de receber sua sobrinha Niko (filha de uma irmã com a qual há muito não fala), que inesperadamente aparece em sua casa (precisa de abrigo ― fugiu da mãe).

Para além de ser um culto à simplicidade e à rotina, “Dias Perfeitos” me encanta por seu mistério. Claro, não possui as cores e os movimentos de “Garfield” (é um filme, na maior parte do tempo, escuro), mas tem bastantes e deliciosas lacunas; mesmo tendo duas horas de duração, sabemos muito pouco sobre o protagonista.

Não temos reminiscências de Hirayama, e não sabemos sequer quais são seus pensamentos ― apenas seus sonhos, que envolvem sombras (um signo chave para o longa). As poucas informações que temos são pequenos detalhes, mostrados a conta-gotas através de outras personagens ― nem tão próximas do protagonista, ainda por cima.

“Dias Perfeitos” nos convida a uma profunda e constante participação. Já que o longa-metragem não nos vem como um objeto completo, somos impelidos a montá-lo, como se fosse um mosaico de pequenas e brilhantes pedrinhas. Cada gesto, cada figurante e cada objeto de “Dias Perfeitos”, paulatinamente percebidos a cada visita, interferem no enredo, o que o torna um filme novo a cada nova visita.

Sua natureza de baixa definição lembra-me outro longa-metragem, também japonês, chamado “Mind Game” (2004) ― um misto de “Pinóquio” e “Yellow Submarine”. Em filmes assim, só podemos especular, estipular alguma protointerpretação. Hirayama viria de uma família abastada?, tornou-se zelador por vontade própria ou passou por algum momento de necessidade?, desejou um romance impossível com a garçonete, o que o fez voltar a experimentar cigarros e bebidas?

Só nos resta revisitar o longa-metragem teuto-japonês mais uma vez logo após lhe assistimos ― como fazíamos quando éramos crianças ―, quem sabe dessa vez nos apareça algum dado que “ilumine” suas belas sombras?

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Fotografia de uma máquina de escrever sobre uma mesa de plástico com um lençol cor de creme em cima. Há um papel de com amarela posto em seu carro.

Estas Ideias de Chirico agora são escritas nesta Remington 15 (juro para vocês como isso não tem nada a ver com a fonte monoespaçada deste blogue).

Este texto está sendo escrito em uma máquina de escrever. Embora isso não faça uma notável diferença na sua leitura, faz uma cabal diferença na minha escrita.

Em um mundo ansioso pela novidade tecnológica, lançar mão de ferramentas obsoletas, antes predominantes, parece um ato de inadequação, e até mesmo de insanidade. Acontece que não é pela máquina de escrever ser conveniente na maior parte das minhas tarefas que eu a utilizo, mas sim por ela me fornecer um outro tato com o texto que outras não fornecem, e até por me oferecer um outro meio pelo qual pensar.

Costumo dizer que sou um entusiasta de tecnologias. Quando o digo, não me refiro somente aos dispositivos e aos veículos de ponta ― seja a inteligência artificial, o Fediverso, ou assistentes de voz. Quando o digo, também me refiro às tecnologias tradicionais, como o rádio, a televisão e a máquina de escrever.

Neste texto falarei das razões pelas quais decidi adotar este instrumento, como tem sido minha experiência com ele, bem como o modo com o qual tenho o conjugado com outros intrumentos de escrita.

Como adquiri

A máquina de escrever, por ser um artigo de colecionador, é muito difícil de ser encontrado no mercado comum ― e difícil de ser encontrado por um preço acessível. Antes então de conseguir uma, pensava em primeiro experimentá-la.

Porém, na última viagem que fiz, a São Paulo, me encontrava frequentemente com um amigo poeta, Diego Dias, que por acaso também é colecionador de máquinas de escrever.

Diego, que vira que eu tinha um genuíno interesse em adquirir uma, certa noite dispôs uma parte de sua coleção sobre a mesa de seu escritório, que fica no Largo do Paissandu. Entre vários modelos, estavam uma Baby Hermes vermelha (seu xodó), algumas Remingtons, e até mesmo um modelo com alfabeto russo.

Experimentei duas delas e gamei com uma Remington 15 de cor creme ― esta em que bato agora. Foi amor à primeira batida. Ela respondia bem ao toque, não era tão pesada e tinha todos os caracteres da língua portuguesa. Diego, que fumava seu habitual cigarro de tabaco, disse um direto e gentil “Pode ficar com ela!”. Depois de resistir um pouco ― já que eu pensava que iria subtrair sua coleção ―, aceitei o presente.

Vocês não imaginam o trabalho que deu de transportá-la para o Ceará... Um estojo de 20 centímetros por 25 não cabia em nenhuma mala de uma viagem curta como aquela ― eu passei somente algumas semanas em terras oswaldianas. Eu teria, então, de levá-la como uma bagagem à parte! No entanto, valeu a viagem.

Porque adquiri

Já havia um tempo que eu escrevia todos os meus textos em um bloco de notas ridiculamente simples do computador, sem recursos de formatação ― papel o qual eu deixava para o LibreOffice Writer. Me interessava sobretudo desenvolver o escrito. Queria tirar todo o atrito e toda a burocracia que existia entre mim e o computador.

Para isso, fiz de tudo, desde inicializar o sistema operacional sem senha, até configurar o bloco de notas como programa de inicialização. Ainda assim, existiam o boot necessário e as atualizações eventuais, que demandavam alguns minutos de atenção.

Cheguei a pesquisar programas que emulassem a experiência da máquina de escrever (que era o meu ideal de instrumento sem distrações), como o Cold Turkey Writer¹, e até mesmo cheguei a pesquisar projetos que fossem um híbrido de notebook e máquina de escrever, como os dispositivos da marca Freewrite e o Zerowriter. No entanto, ainda assim existiria o atrito da eventual necessidade de eletricidade e ocasionalmente internet.

Além disso tudo, fiquei com ainda mais vontade de conseguir uma máquina de escrever após a leitura de um texto de Lionel “Ploum” Dricot, “A complexidade da simplicidade” ― que ainda pretendo traduzir algum dia para o português. Neste texto Dricot comenta, entre outras coisas, o efeito desse instrumento em seus escritos.

Não tinha jeito: a única ferramenta dedicada à escrita, que me permitiria sentar e já começar a digitar sem parar e sem me preocupar com questões laterais, seria a máquina de escrever.

Claro, tenho enfrentado algumas questões com o instrumento, como o seu barulho, que dificulta a escrita durante alta noite, e a necessidade de constante força física na digitação². Essa força é em parte remediada por conta do touchtyping que desenvolvi, isto é, a memória muscular com o teclado de computador, que me permite que eu digite sem olhar para o teclado e que eu não tecle somente com dois dedos.

Tudo isso, porém, é compensado pelo seu conforto visual (já que não emite luz), pelo foco ininterrupto que o texto recebe e pela possibilidade de ser guardada de modo que esteja preparada para o próximo uso, uma vez que posso pô-la no estojo com um papel posto no seu carro.

E o computador?

Blocos de notas, máquinas de escrever, gravadores de voz e computadores são ferramentas, e, ferramentas que são, atendem a propósitos bem determinados e distintos. Nenhum elimina o papel do outro; antes complementam-se.

Com pequenas notas de bolso, redijo os principais tópicos de um texto vindouro; através de um gravador ― recurso sobre o qual já escrevi ―, registro meus primeiros insaites; com a máquina de escrever, desenrolo o fio do pensamento; e com o computador, faço o acabamento textual e a formatação, e incluo linques, imagens e o mais que a publicação final precisar.

Além disso, ter mais de um recurso para a mesma tarefa permite que um esteja no lugar de outro quando necessário. Caso a tinta da caneta ou o papel acabe na hora em que eu mais precisar e estiver fora de casa, ainda terei o gravador de voz para tomar notas urgentes e rápidas; caso eu não tenha bateria suficiente no telefone, mas esteja em casa, ainda terei o computador para redigir notas; e caso o computador dê pane, ainda terei a máquina de escrever para desenvolver textos “grossos”.

A este conjunto de recursos de escrita conjugado chamo de “caixa de ferramentas de escrever”!


¹: Ainda a respeito de programas emulando máquinas de escrever e dispositivos zero-distração, sugiro a leitura de um fio da Nina Kalinina no Mastodon falando a respeito de sua jornada para construir um “ambiente de trabalho feliz”, isto é, sem distrações. Conheci o Cold Turkey Writer através desse fio. Este foi outro texto também valioso para eu tomar a decisão de conseguir um equipamento dedicado à escrita.

²: No período em que escrevi este texto, ainda estava, digamos, fazendo “academia digital”, exercitando os dedos para o teclado mecânico. Hoje em dia já não sinto que ele necessita de tanta força, mas sim de precisão.

#tecnologias


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Imagem: série “Marilyn Monroe”, de Andy Warhol. Com o fim da hegemonia dos veículos de massas na comunicação social, todo anônimo tornou-se uma celebridade em potencial e toda “celebridade” tornou-se um anônimo em potencial.

Você desbloqueia seu telefone. Toca em qualquer rede social. Qual é a primeira pessoa que vê? Um artista internacionalmente conhecido, um político regionalmente relevante, ou um empresário do ramo tecnológico? Não. Grande chance há de que seja o amigo de infância que há muito não vê relatando que “O de hoje está pago”, o seu colega de trabalho com o qual fala pouco compartilhando fotos e fatos do último rolê, uma crush da qual você já perdeu o interesse publicando um “tbt” ― em outras palavras: gente anônima.

Permaneça nesta mesma rede social. Role um pouco. Se tiver alguma aba de vídeos curtos com curadoria algorítmica, role ainda mais. Se não for gente anônima, um artista do qual nem você e nem o seu colega de apartamento ouviram falar ― um anônimo. Se não for um artista do qual não se sabe, uma influenciadora de um assunto que o algoritmo jurou que seria do seu interesse ― uma anônima. Se não for uma influenciadora, alguma criança ou senhora engraçada “trendando” ― anônimos, anônimos, anônimos.

Os “quinze minutos de fama” preconizados por Andy Warhol saturaram-se. Agora que todos são famosos, ninguém é conhecido. Pense em duas bandas da atualidade que seja do seu gosto. Agora pergunte ao seu pai, ao seu melhor amigo ou amiga, ao seu colega menos íntimo e a qualquer pedestre avulso que passa em frente a sua casa se eles conhecem essas bandas. Se todos as conhecerem, há uma enorme probabilidade de serem bandas locais ou ligadas ao seu círculo ― ou de serem eles próprios a banda.

A recíproca será verdadeira se pescarmos de uma tela de outdoor ou indoor mais próxima e experimentarmos o inverso, procurarmos algum nome conhecido ― e esta será uma tentativa frustrante.

O fato é que as pessoas desconhecidas, aquelas as quais nunca vimos ― e as quais nunca mais veremos outra vez ―, tomaram o palco das celebridades. Isso porque o palco, que era a televisão e o cinema, mudou de lugar. Os Instagrams, os Tiktoks, os Kwais tornaram-se ubíquos. Neles, as pessoas incógnitas ― os seus próprios usuários ― aparecem mais do que as figuras pop sobre a qual outrora ouvíamos em todos os lugares.

Os veículos de massa, que foram o céu ao qual todos assistiam, perderam a predominância no campo das mídias. Se antes todos olhavam para cima, vendo as “estrelas” e as “celebridades” como figuras distantes, graças à invenção do algoritmo e do feed infinito de publicações, agora todos se cruzam e se olham, como se estivessem em uma movimentada rua do centro da cidade.

O antropólogo Michel Alcoforado em conversa no podcast “Boa Noite, Internet” define o espaço neoliberal como aquele onde tudo ocorre concentradamente ao mesmo tempo e em um só lugar: assim é o shopping, assim é a rede social, assim é um player de vídeos curtos.

Tudo, aqui e agora. Todas as pessoas em todos os lugares ao mesmo tempo. Assim é viver no auge da era da eletricidade. Por conta desse fenômeno, há um estado de “atonalidade” de capital social entre as pessoas: a depender do perfil de um usuário de uma rede social algoritmizada, um influenciador do interior do Ceará pode aparecer tanto quanto Elon Musk no seu feed; e a depender do perfil de outro usuário nas mesmas condições socio-econômicas que o primeiro, essas duas figuras podem lhe não ser mais do que estranhas.

Prevejo contudo que em um futuro breve não haverá mais fama, porque não haverá mais veículos de massas. Como ser famoso à velocidade da luz? Como ser famoso para um público que não tem tempo suficiente de reconhecer o seu rosto? Como ser famoso para um público que não teve sequer a chance de o conhecer graças ao seu isolamento algorítmico?

Pode ser que em breve, não haverá mais figuras pop. Apenas comunidades e nichos. Esses círculos circunscreverão no máximo 150 membros, como defende o número de Dunbar. Assim como a maioria dos cientistas só é conhecido dentro da comunidade acadêmica, amanhã pode ser que haja brilhantes figuras dos mais diversos campos da cultura com públicos “ínfimos” para os padrões atuais. E pode ser que nunca mais conheçamos outros Elvis, outros Marleys, outras Monroes, outros Jacksons, outras Madonnas. Todos serão anonimamente conhecidos e todas as esquinas serão tapetes vermelhos.

#cultura #tecnologia


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Ainda que a cultura de um modo geral esteja em baixa, aquém do ramo da tecnologia em termos de inovação, vez ou outra encontramos algo de fresco em produções das últimas duas décadas.

Em certa manhã de 2022, enquanto eu ia ao trabalho, pela Rádio Universitária de Fortaleza ouvi a jazzista Léa Freire pela primeira vez. O ônibus deslizava sobre um viaduto, a deixar que um sol limpo de nuvens, atravessando edifícios, lá dentro entrasse. Esta é a cena a qual associo o seu “Brincando com Théo”, e que, ao meu ver, melhor o representa.

Mais tarde, pesquisei no Youtube a composição original (para piano solo). Ao azar, tombei com uma versão à voz e piano de Tatiana Parra e Andrés Beeuwsaert no disco “Aqui”, de 2011 ― assista ao seu trailer.

Desde que o conheci, me derreto a cada escuta. Só consigo pensar em beleza ao o ouvir. Andrés, um João Gilberto do piano, bate seu instrumento, mas gom um togue gendil, como se seus martelos fossem espumas. Já Tatiana, em seu canto, ainda que sem texto, fala. Mas fala como o pássaro fala. Farfala.

Os arranjos são simples: vez ou outra aparecem flauta (que Léa Freire toca), violoncelo ou violão ― cada um por vez. A voz e o piano predominam como intrumentos, valem, porém, por vários ― às vezes o piano arrebenta feito bateria ou, sus, suspira como uma segunda voz.

Como o primeiro disco de Rodrigo Campos sobre o qual escrevi, “Aqui” é feito para o movimento, para as gentes, para as cidades. Nas suas interpretações, de tons maiores ― abertas tal sóis ―, seu som é denso, sem ser tenso. Raro herdeiro vivo da bossa-nova, “Aqui” é maximalismo disfarçado de minimalismo.

#cultura


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Imagem de uma folha em branco com uma lapiseira ao lado sobre uma mesa de madeira.

Após apresentar “O Pequeno Príncipe” de Saint-Exupéry à turma de 7° série, o professor de redação pediu-lhes para que apresentassem uma síntese do livro. O único comando que ele dispôs no quadro negro foi “Escrevam apenas o essencial da história”.

Enquanto toda a sala rascunhava rapidamente sobre seus papéis, o pior aluno entregou uma folha em branco. O professor, contrariado, indagou do que se tratava aquilo. E o aluno timidamente respondeu:

― Professor, é que eu aprendi com o Pequeno Príncipe que

O essencial é invisível aos olhos.

Este aluno recebeu a melhor nota da turma.

#cotidiano


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Imagem de uma feira de frutas no interior do Brasil.

“Olha a informação! Informação fresquinha!”

Gosto de pensar a internet como essa grande feira de sites. Nas feiras, se você quer um produto, haverá alguém que conhece um alguém que conhece um alguém que tem o que você quer. São como aqueles galos do João Cabral de Melo Neto. Visita-se um site, e este o direciona para outro, que aponta para outro etc. Essa é a graça inclusive de ter um blogue: participar ativamente dessa rede, seja reconectando-a, seja contribuindo com ela.

Outro dia compartilhei o Internet Artifact, que me chamou a atenção por conta de sua arqueologia internáutica. Agora compartilho outros endereços curiosos envolvendo descoberta e publicação de artes, que já publiquei via #SurfandoWeb pelo meu perfil Akkoma ― que tem sido um grande laboratório para as publicações destas Ideias de Chirico.

Todo som ao mesmo tempo e em todo lugar

Não sabe que música ouvir numa noite aleatória ou quer conhecer novos gêneros musicais dos mais diversos cantos do mundo? Conheça Every Noise At Once.

Ao carregar a página, verá uma nuvem quase infinita de gêneros musicais correlatos por nacionalidade ou por ritmo. Ao tocar em um deles, a página executará um exemplar de mais ou menos 10 segundos de cada gênero. Dica de ouro: dê um Ctrl + F e escreva um gênero ou nacionalidade pelo qual você se interessa, e daí poderá conhecer outros similares.

Every Noise At Once lembrou-me a proposta de Radiooooo que executa sucessos radiofônicos da década e do país da escolha do visitante. No entanto, ao tempo que Radiooooo compartilha sucessos de todas as épocas, Every Noise At Once concentra-se na cena underground contemporânea.

O que pode 10kb?

A Galeria 10kb é um compêndio de imagens com tantos bites quanto este texto que vocês leem ― ou até mesmo mais leve. Visitá-la me faz pensar nas reais necessidades de espaço de disco para a comunicação digital.

Por que afinal queremos tudo em HD 4K? Às vezes 10kb já dá conta do recado! Afinal, é preciso que também nos acostumemos com pouco. Em um mundo ávido por informação em alta-definição, não podemos perder a sensibilidade das coisas em baixa-definição ― mais próximas das tecnologias analógicas e da vida mesmo.

Além de tudo, é interessante ver respostas criativas ao desafio de se criar uma imagem tão leve quanto um arquivo de texto. Como escreve Mike Grindle comentando sobre o porquê de se fazer um site compatível ao espaço de um disquete,

Ao meu ver, nada inspira mais criatividade do que limitações. Isso não só lhe deixa pensando “fora da caixa”, mas também lhe estabelece limites nos quais trabalhar.

Essa, inclusive, também é a graça de escrever sob padrões ou limitações precisas, como os velhos 140 caracteres de um tuíte ou como o verso dodecassílabo de um soneto... A ideia de densificar o pensamento e escrever coisas complexas em um espaço limitado é de uma sedução irresistível!

Infelizmente a Galeria está há um bom tempo sem atualizações, porque o organizador está concentrado em outros projetos. Mas já temos um bom arsenal.

Conheço também outros endereços análogos a ela, como o 1MB Club, que ranqueia sites que, de fato, caberiam em um disquete.

Estériques

Ficou curioso a respeito de uma estética específica de um período? Quer entender melhor de um dado zeitgeist? Quer se inspirar para projetar à la um certo “ismo”? Indico o Consumer Aesthetics Research Institute (CARI).

O CARI é como um Radiooooo visual. Ao entrar na sua página inicial, você terá várias abas de filtros para curadoria, como período, palavras-chaves ou ordem alfabética.

Claro, como o próprio nome diz, ele é voltado à estética do consumo, não à estética artística, que se preocupa com o puro prazer... estético. No entanto, esta é muito influenciado por aquela, e até a inspira! Vide o pop-art ou, um pouco atrás, o art-nouveau.

#cultura


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Imagem de Mário de Andrade, um homem pardo e calvo usando óculos de grau redondos e terno. Sua face está sendo iluminada por uma luz que vem debaixo.

Mário de Andrade

é um desafiador da servil e adocicada e grandiloquente cultura oficial, um criador de palavras que morrem de inveja da música, e que são, contudo, capazes de ver e dizer ao Brasil e também capazes de o mastigar, por ser o Brasil um sabaroso amendoim quente.

De férias, pelo puro gosto de se divertir, Mário de Andrade transcreve ditos e feitos de Macunaíma, herói sem nenhum caráter, tal como os escutou do dourado bico de um papagaio. Segundo o papagaio, Macunaíma, negro feio, nasceu no fundo da selva. Até os seis anos, por preguiça, não pronunciou uma palavra, dedicado como estava a decapitar formigas, a cuspir na cara de seus irmãos e a meter a mão nas graças de suas cunhadas. As cômicas aventuras de Macunaíma atravessam todos os tempos e todos os espaços do Brasil, em uma grande gozação que não deixa santo por desvestir, nem fantoche com cabeça.

Macunaíma é mais real do que seu autor. Como todo brasileiro de carne e osso, Mário de Andrade é um delírio da imaginação.


1927, Araraquara

Imagem de Mário de Andrade, um homem pardo e calvo usando óculos de grau redondos e roupão. Mário fuma e tem diante de si um amontoado de papéis.

Mário de Andrade

es un desafiador de la servil y dulzona y grandilocuente cultura oficial, un creador de palabras que se mueren de envidia de la música y que son sin embargo capaces de ver y decir al Brasil y también capaces de masticarlo, por ser el Brasil un sabroso maní caliente.

En vacaciones, por el puro gusto de divertirse, Mário de Andrade transcribe dichos e hechos de Macunaíma, héroe sin ningún carácter, tal como los escuchó del dorado pico de un papagayo. Según el papagayo, Macunaíma, negro feo, nació en el fondo de la selva. Hasta los seis años no pronunció una palabra, por pereza, dedicado como estaba a decapitar hormigas, a escupir a la cara de sus hermanos y a meter mano a las gracias de sus cuñadas. Las desopilantes aventuras de Macunaíma atraviesan todos los tiempos y todos los espacios del Brasil, en una gran tomadura de pelo que no deja santo por desvestir ni títere con cabeza.

Macunaíma es más real que su autor. Como todo brasileño de carne y hueso, Mário de Andrade es un delirio de la imaginación.


In: “Memoria del fuego III. El siglo del viento” (1986), de Eduardo Galeano. Tradução de Arlon de Serra Grande.

#cultura #tradução


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Imagem: reprodução da entrada do Internet Artifacts.

Não tem jeito. Estou viciado em explorar sites. Desde que o blogue The Jolly Teapot publicou um linkroll contendo uma enormidade de endereços curiosinteressantes, estou fascinado pela ideia de interpretar sites como produtos artesanais. Como arte mesmo. As plataformas comerciais ― ou de entretenimento ― felizmente não detonaram de todo esse ramo da internet, e, de certa forma, até lhe deram um novo fôlego, como a Small Web (ou Indie Web) e o Fediverso mesmo.

Um desses endereços que The Jolly Teapot publicou é o Internet Artifacts ― não o confunda com o Internet Archive (eu confundi aqui durante a redação do texto). Trata-se de um pequeno museu de (digamos) “atos inaugurais” da internet: o primeiro emoticon utilizado, o primeiro meme, o primeiro blogue, o primeiro site de delivery etc. O arsenal é imenso, e vai de 1977 até 2007. Como há algumas reproduções de mídia, é necessário ativar Javascript. De qualquer modo, vale a visita. Para abrir o apetite de vocês, separei três das diversas curiosidades que há no endereço e os traduzi. Boa leitura.

O primeiro “:–)” (1983)

Reprodução de tela de um boletim acadêmico. Nela Scott Fahlman sugere o uso de uma carinha feliz e uma carinha triste para distinguir piadas e posts sérios na rede.

Imagem: reprodução do boletim da Universidade de Carnegie Mellon.

O primeiro uso registrado de um “:–)” na internet é de 1982, quando o cientista da computação Scott Fahlman propôs o uso de :–) e :–( para distinguir piadas e posts sérios na rede.

A proposta veio em resposta a um post no boletim da Universidade de Carnegie Mellon, em que um estudante brincou dizendo que havia mercúrio espirrado no elevador do departamento de física. Outros estudantes não sacaram a piada e pensaram que o espirro realmente aconteceu.

Os emojis foram aos poucos adotados na Carnegie Mellon e mais tarde por toda a internet.

Fogcam (1994)

Reprodução do site Fogcam com duas imagens, uma de uma rodovia e outra de cadeiras perto de uma piscina. O site é mostrado pelo antigo navegador Netscape.

Imagem: reprodução do site da Fogcam, que ainda está na ativa.

Criado por dois graduandos da Universidade Estadual de São Francisco, a Fogcam é celebrado como a webcam mais longeva. Originalmente posta como um experimento para compartilhar parte do cotidiano do campus, ela rapidamente se tornou um recurso amado nos primeiros anos da internet. A webcam tinha até uma sala de bate-papo na qual os usuários poderiam discutir o clima.

A webcam quase foi fechada em 2019, mas o público implorou por mantê-la ativa. Ela tem estado ao vivo por 30 anos.

Dancing Baby (1996)

Imagem animada de um modelo 3D de um bebê usando fraldas em um fundo preto, dançando chá-chá-chá

Imagem: reprodução do .gif do Dancing Baby.

Um dos maiores memes do início da internet, o Dancing Baby foi um resultado não intencional da demonstração de um plugin para 3D Studio Max, que poderia animar criaturas bípedes. Criada em 1996 a partir de plugin de animação com dança chá-chá-chá sobre um modelo 3D de um bebê, a animação resultante foi descartada por ser muito “perturbadora”.

A animação recebeu uma segunda vida quando foi recriada a partir dos mesmos arquivos e postada como .gif em um fórum CompuServe. Ela tomou seu rumo através de e-mails institucionais e teve uma explosão de popularidade depois de receber a música “Hooked on a Feeling” como fundo. Ela foi intermitentemente remixada, e até apareceu em uma alucinação na série Ally McBeal.

#tradução #tecnologia


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Imagem de Buster Keaton

Buster Keaton

Faz rir o homem que nunca ri.

Como Chaplin, Buster Keaton é um mago de Hollywood. Ele também criou um herói do desamparo. O personagem de Keaton ― chapéu de palha, cara de pedra, corpo de gato ― não se parece nada a Carlito ― o Vagabundo ―, mas está metido na mesma guerra cômica contra policiais, bandidos e máquinas. Sempre impassível, gelado por fora, ardente por dentro, muito dignamente caminha pela parede ou pelo ar ou pelo fundo do mar.

Keaton não é tão popular como Chaplin. Seus filmes divertem, mas têm muito mistério e melancolia.

1919, Hollywood

Imagem de Buster Keaton

Buster Keaton

Hace reír el hombre que nunca ríe.

Como Chaplin, Buster Keaton es un mago de Hollywood. Él también ha creado un heróe del desamparo. El personaje de Keaton, sombrero de paja, cara de piedra, cuerpo de gato, no se parece en nada a Carlitos el Vagabundo, pero está metido en la misma guerra desopilante contra los policías, los matones y las máquinas. Siempre impasible, helado por fuera, ardiente por dentro, muy dignamente camina por la pared o por el aire o por el fondo del mar.

Keaton no es tan popular como Chaplin. Sus películas divierten, pero tienen demasiado misterio y melancolia.


In: “Memoria del fuego III. El siglo del viento” (1986), de Eduardo Galeano. Tradução de Arlon de Serra Grande.

#cultura #tradução


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Imagem de uma mesinha de centro em madeira sem verniz e com dois apoios.

Um site desenhado sem Javascript é como um belo móvel wabi-sabi: ele tem uma beleza simples, cria o seu próprio espaço e tem o tempo como um grande aliado!

Sou um grande fã do HTML puro. Comecei a navegar sem Javascript (doravante “JS”) desde que percebi o quão pesado era para a experiência web e o quão prejudicial era para a privacidade.

Além de tudo, não gosto de firulas. Detesto animações e acabamentos meramente cosméticos em programas; aprecio o aspecto “brutalista” que uma página de HTML puro tem. Ademais, algumas vezes navego pela internet com velocidade reduzida e a ausência de JS no site me ajuda bastante.

E o mais importante: sem JS não há propagandas. Não há coisa que eu mais odeie neste mundo do que propagandas na internet. Pelos veículos de massa como jornal, rádio e televisão há um bom argumento e uma boa estrutura para possibilitar e legitimar as propagandas: é pelas propagandas que esses veículos tiram o seu sustento.

De resto, nesses meios você pode se alhear: pode simplesmente dar uma volta pela casa durante os comerciais de tevê, abaixar o volume do rádio durante os jingles de margarina ou ignorar as páginas patrocinadas de jornais e revistas.

Não há essa mesma legitimação e estrutura para a publicidade em dispositivos digitais. Propagandas são pereptoriamente seres alienígenas nesses meios, frutos de um mercado publicitário decadente que não sabe como o veículo para o qual trabalha funciona.

Afinal de contas, por que vou assistir a uma propaganda se tenho a opção de não a ver? Por que vou deixar um vídeo ou um .gif que seja aparecer a contragosto em um aparelho sobre o qual tenho total controle e sobre o qual, ao contrário da tevê, não posso me alhear?

Bem, seja. Odeio anúncios. E se você, assim como eu, os odeia e quer saber como se livrar do JS, sugiro este tutorial.

Neste texto disporei endereços de interesse público, ou de uso público, que funcionam sem JS habilitado. Como outras publicações neste blogue, esta estará sujeita a futuros acréscimos e correções.

Começo pela já tradicional Wikipédia, que dispõe de uma versão totalmente funcional de HTML com adição de CSS. Todas as cortinas de opções funcionam e não há quebras na página. A Wikipédia é produto de uma equipe que viveu a velha internet e que soube se adaptar ao presente sem esquecer as lições do passado.

Internet Archive, um dos mais antigos acervos de documentos de domínio público na internet, que disponibiliza arquivos em alta qualidade e até torrents de filmes e músicas. Só foi lá onde pude baixar clássicos e raridades, como o “disco do tênis” do Lô Borges e o filme argentino “Infância Clandestina”. Em seu modo sem JS, o Internet Archive apresenta algumas quebras na página, mas nada que impeça o visitante de baixar o arquivo que deseja. O site disponibiliza também de uma versão cebola para navegar pela rede TOR.

O Deviantart, ao contrário da maioria das redes sociais voltadas para compartilhamento de imagens, roda suave sem JS habilitado. Descobri esse modo “limpo” por acaso, enquanto buscava uma imagem para compôr o ícone do meu antigo perfil do Mastodon.

Invidious é uma interface web sem anúncios e pró-privacidade do Youtube. Obviamente, em sua versão anti-Javascript você é incapaz de rodar os vídeos, o que o leva a baixá-los. Invidious também possui, dentre as suas instâncias, versões cebolas.

Para aqueles que ainda veem qualidade nos produtos Google, há uma versão sem JS de seu buscador. Através dela, é possível encontrar imagens e notícias. No entanto, o buscador Google sem JS não roda em todos os navegadores. Outros buscadores fornecem as mesmas opções, como o SearXNG e o StartPage ― ambos pró-privacidade, ao contrário da Google.

Wiby é um motor de busca que só indexa links de HTML puro. Infelizmente o seu acervo é pequeno se comparado a outros buscadores e possui um baixo poder de busca, o que o limita à pesquisa de uma palavra-chave por vez. No entanto, essa é uma nova fonte possível de descoberta na internet.

Por fim, há poucos dias vi que a famosa rede social Last FM de compartilhamento de músicas ouvidas também funciona muito bem sem JS. Uma vizinha do Fediverso me contou que isso acontece porque a plataforma há muito não recebe atualizações, o que causa por vezes alguns bugs. Não faz mal. Mesmo sem JS, pelo Last FM você pode ter algumas informações sobre artistas e bandas do seu interesse, como origem/biografia, discos, fotos, além das músicas mais ouvidas pelos usuários e seus comentários.

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