Ideias de Chirico


Em lembrança do pintor surrealista greco-italiano Giorgio de Chirico (1888 - 1978), o maior ilustrador de ideias de jerico ― e de Chirico! Um blogue sobre cultura, cotidiano e tecnologia mantido por Arlon de Serra Grande.

Disclaimer: no último dia 15 de fevereiro, na aula de Estágio Supervisionado da minha graduação de Letras, minha professora-orientadora desenvolveu um debate sobre o papel da escola em torno do letramento digital. Quando elogiei o papel das tecnologias para a formação cultural dos indivíduos com acesso a elas, minha fala foi vista como romântica. Por conta da desordem de falas, coisa natural em sala de aula, não pude desenvolver uma tréplica.

No dia seguinte, a mesma professora convidou-me para articular em texto o meu ponto de vista, que não pôde ser exposto a tempo hábil em sala de aula. O texto deveria ser publicado no grupo de Whatsapp da turma. O Whatsapp, vocês sabem, não é o ambiente ideal para o debate. Decidi então redigir uma mensagem de texto e enviar-lhe por um e-mail, cujo assunto era “O que pode a tecnologia, o que não pode a tecnologia e o que podemos fazer sobre ela”. Ela gostou tanto da mensagem que decidiu convertê-la em pdf e compartilhar com meus colegas.

O debate seguiu por escrito e hoje mesmo recebi uma resposta sobre o que escrevi.

Segue aqui embaixo a reprodução da minha mensagem. Creio que esse texto resume minhas ideias (em geral mal interpretadas) a respeito de tecnologia e sua relação com cultura e educação.

O que pode a tecnologia, o que não pode a tecnologia e o que podemos fazer sobre ela

Bom dia, professora!

Desculpe-me por não ter lhe respondido no mesmo dia em que me perguntou. Acabei protelando este texto para uma hora em que eu pudesse sentar para escrever, e essa só chegou agora de manhã [dia 18 de fevereiro]. Além disso, preferi enviar esta mensagem durante o feriado porque é quando (provavelmente) você teria algum tempo para me ler. Envio o texto por e-mail porque não acho que o Whatsapp seja um bom lugar para o debate.

Primeiro de tudo, acho natural que você interprete as minhas loas à tecnologia como uma forma de romantização sobre ela. Essa interpretação é natural em um contexto universitário, já que estamos passando por um processo de anti-intelectualismo, que se concentra bastante na internet. Qualquer elogio à internet ou algo que lhe tangencie é visto como uma romantização, já que é por essa mesma internet que se ameaça as instituições, que se busca deslegitimar os cientistas e que se agregam grupos extremistas. No entanto, essa internet faz parte de uma internet comercial, monopolizada e centralizada, dominante sim, mas que não pode resumir o uso da tecnologia.

Deve-se ter consciência neste momento das diferenças entre forma e conteúdo, estrutura e evento, veículo e informação. Claro que em certos momentos, é impossível fazer essa separação; mas que há limites, há. Minha formação não é para a qualificação binária sobre as coisas, mas para o reconhecimento do continuum entre elas. Quando as pessoas criticam a tecnologia, fazem-no à tecnologia enquanto conteúdo, evento e informação. Quando elogio a tecnologia, me refiro à tecnologia-forma, à tecnologia-estrutura e à tecnologia-veículo. Vejo que acadêmicos e estudantes da área de humanidades têm uma grande dificuldade de separar essas duas áreas e perceber também onde há uma simbiose entre elas.

Mas isso é muito natural, já que, por conta do nosso próprio objeto de estudo ― o livro ―, tornamo-nos tecnofóbicos. A tecnofobia é uma reação natural de eruditos clássicos, ultraespecialistas e estudiosos conservadores. Polímatas, poliglotas, artistas, crianças e estudantes autodidatas não têm medo das novas tecnologias e com frequência se apropriam delas para impulsionar, expandir e publicar seus próprios projetos e experimentações, em uma espécie de antropofagia midiática.

Com frequência ouço de estudantes e profissionais de Letras que eles não se importam com forma, que estilo é firula, que “o que interessa é a mensagem do texto”. No entanto, estudando poesia concreta, estudando Bakhtin, estudando semiótica, entendi que forma é discurso. “O meio é a mensagem”, Marshall McLuhan. E, como dizia o poeta concreto Haroldo de Campos, parafraseando Olavo Bilac:

Não estamos mais em tempo de ”ouvir estrelas”, mas sim de ouvir estruturas.

No primeiro momento da minha fala na aula do último dia 15, falei que as tecnologias eletrônicas impulsionam as faculdades mentais das pessoas, e que ela nos impele a sermos menos especialistas e mais polímatas. Isso não é novidade. Os primeiros a expressá-lo foram os artistas do século passado. Se por um lado, durante o século XIX tínhamos a ideia do artista como um gênio, dono de sua própria obra, especialista de sua linguagem, na virada do século XX, com a invenção de uma parafernália de tecnologias eletrônicas, vemos cada vez mais os artistas interessando-se pelos veículos de comunicação em massa, agregando-se em grupos e coletivos, e ficando mais e mais interessados por outras linguagens.

Durante o século XX, vimos um poeta como um Stephane Mallarmé interessado em jornalismo, música e escultura; um compositor como Eric Satie interessado por arquitetura, teatro e pintura; um romancista do tipo de James Joyce interessado por música, cinema e teatro; um cineasta como Jean-Luc Godard interessado por quadrinhos, fotografia e música. Já dizia o tão amaldiçoado Oswald de Andrade: “Só me interessa o que não é meu”. Mais da relação entre a arte moderna e as novas tecnologias pode ser lido nos antológicos “Understanding media” do canadense Marshall McLuhan, e “Contracomunicação”, do poeta e ensaísta Décio Pignatari.

Diz o midiólogo Marshall McLuhan que as tecnologias, sejam elas analógicas ou eletrônicas, são extensões de nossas faculdades corporais. Para o autor canadense, a roda é a extensão do pé, a roupa é a extensão da pele, a casa é a extensão do corpo. Ainda McLuhan acredita que a eletricidade foi capaz de tornar o mundo uma “aldeia global”, não porque a conectou através da comunicação, mas porque para ele a eletricidade é uma extensão do sistema nervoso. Tecnologias potencializam também sensibilidades.

Não é de se admirar que foi no período da popularização do rádio, da televisão, do telefone, do avião e de outras tecnologias eletrônicas, que houve um bum de movimentos de minorias, entre elas o movimento negro, o movimento feminista e o surgimento da adolescência como transição entre a infância e a vida adulta. O homem pisou pela primeira vez na lua quase no mesmo momento em que o hippie pisou pela primeira vez em Woodstock. Eram dois mundos que se abriam, promovidos pelas possibilidades e sensibilidades da eletricidade. Se por um lado as tecnologias eletrônicas proporcionam a comunicação à velocidade da luz, por outra também agrega grupos minoritários e aproxima grupos distintos, distantes por questões geográficas e culturais.

Claro que existe um trade-off na tecnologia. Já Aristóteles alertava o risco da escrita reter as faculdades mnemônicas, e pôr em risco a cultura oral. Foi o que aconteceu a partir da invenção da máquina de imprensa. Pouco a pouco, conforme a escrita foi se tornando um meio mais confiável e um suporte mais seguro de comunicação e de registro, perdemos parte de nossa memória. Durante o período medieval, era comum que os escribas recitassem de cor livros inteiros. Mais dessa relação do homem com a invenção da escrita e a natureza do texto enquanto veículo de comunicação pode ser lida no livro “A galáxia Gutenberg”, também de Marshall McLuhan.

Alguns teóricos da filosofia da tecnologia, como o britânico Andy Clark, reconhecem que a fusão homem e natureza é natural ― ou biológica até. Em seu “Natural-born cyborgs” (“Ciborgues natos” em tradução livre), esse autor britânico chama atenção para o fato de que alguns processos humanos, como cálculos complexos e desenho, são impossíveis de serem realizadas sem um suporte material. Para Clark, o papel, a tela ou a calculadora são extensões de nossa mente.

Se por um lado os meios eletrônicos proporcionam expressão e a agregação de minorias, aprimoramento de alguns processos matemáticos e artísticos, por outra ela causa o sectarismo e o embotamento de alguns sentidos (como a memória ou a atenção).

Pulemos para o século XXI. Com o bum da internet (mesmo com o fracasso do estouro da bolha .com), criamos uma euforia sobre o computador como meio educativo. Vieram os mensageiros instantâneos (mIRC, MSN, e-mail, e o já dominante Whatsapp), as redes sociais (MySpace, Orkut, Facebook e esse Frankestein que é o Instagram) e outras tantas plataformas de entretenimento (blogues, Youtube e TikTok). Nesse ínterim, a escola lançou mão aqui e ali sobre alguns desses recursos.

A partir dessas tentativas, observou-se o fracasso que era a aplicação de tecnologias eletrônicas em sala de aula. O jornalista e empresário David Sax dedica uma seção sobre escola em seu livro “A vingança dos analógicos: ou porque os objetos ainda importam”. Pouco a pouco fornecendo telefones inteligentes para crianças, viu-se um decréscimo da interação social entre elas. Aqui cito o autor:

A recomendação amplamente feita por pediatras de todo o mundo para evitar que crianças com menos de dois anos sejam expostas a telas não vem da preocupação de que o conteúdo destas telas possa danificar seu cérebro, mas do medo de que elas poderão substituir atividades sensoriais valiosas, como colocar suas mãos em uma caixa de areia ou comer um pote de massinha de modelar.

A escola é um espaço de conhecimento, mas sobretudo é um espaço de interação social. É o lugar onde o estudante modelará o seu eu e reconhecerá o espaço no mundo que lhe cabe. As telas, por si só, já obstruem essa fase.

Outro malefício das telas é que elas como veículo de comunicação, não permitem a participação do usuário no processo de significação e entregam a informação completa (são, o que McLuhan chamaria de “meio quente”). Essa natureza das tecnologias eletrônicas modernas podem pôr em risco a cognição das crianças. Aponta também Sax que

Os melhores brinquedos, em comparação, são 10% brinquedo e 90% criança: tinta, papelão, areia. O cérebro da criança faz o trabalho pesado e, no processo, aprende.

A escola pode ser importante para o estudante porque, sendo um espaço primariamente analógico, pode promover processos semióticos de primeiro grau (imaginação) e a criação a partir de um marco zero, com poucos recursos. Quando se lhe põe a tela, corta-se o caule da imaginação, porque através da linguagem audiovisual, tudo é definido, tudo está dado. Novamente: isso não tem nada a ver com o seu conteúdo, mas com a estrutura desse veículo.

Apesar disso, não sou contra o uso de tecnologias eletrônicas como meio de aprendizado. É possível aprender através do computador e do telefone. Pela minha própria experiência, eu não teria lido tantos livros e textos marcantes e conhecido tantas pessoas que me ensinaram se não tivesse acesso à internet; foi através sobretudo do Youtube que aprendi quatro línguas estrangeiras; é pelo meu telefone que escuto uma infinidade de podcasts que me ensinam sobre ciência, história e geopolítica.

Mas saliento: isso tudo me aconteceu nos últimos dez anos, quando eu já tinha saído da escola. Tive uma educação profissionalizante que, apesar de ter sido na área da informática, 70% das aulas eram realizadas só à base de lousa, livro e caderno. A partir da biblioteca escolar, de alguns professores e de alguns amigos, passei a valorizar o estudo, e nele anos depois me encontrei.

Tecnologias são extensões de nossos corpos e mentes. Se quero estender o poder do meu punho, uso um martelo; se quero ampliar o poder de minha unha, uso uma faca; se quero potencializar meu raciocínio lógico, uso uma calculadora ou um computador para programar; se quero estender a minha voz, gravo um podcast, publico nas redes, abro um site. Uma faca pode tanto cortar uma cebola para fazer o almoço para minha família, quanto pode cortar o dedo do meu maior inimigo. O mal está não no veículo faca, mas no seu “conteúdo”, a violência.

Percebo que a maior parte das críticas às tecnologias, não vem de uma leitura de sua natureza estrutural, mas do “conteúdo” delas: extremismo político, bullying, pressão de padrões de beleza inatingíveis. Ora, quem tem feito a curadoria desse conteúdo não são mais os usuários dessas tecnologias, mas as empresas que promovem as redes sociais e as plataformas de entretenimento. Não estamos mais na época de uma internet descentralizada e organizada pelos indivíduos, mas de uma internet monopolizada, muralizada e curada através de algoritmos de recomendação de conteúdo.

Está mais do que provado que as mídias algoritmizadas privilegiam discursos extremistas, não porque são relevantes, mas porque proporcionam mais engajamento, logo, mais lucro. E o pior de tudo: caso um filho tenha contato com alguma informação danosa, a plataforma não se lhe responsabiliza ― o culpado é o pai ou a mãe que o permitiu ter um telefone.

Por um lado, as tecnologias promoveram o interesse nas mais diversas áreas e o acesso ininterrupto e descentralizado de informações; por outro sua centralização sob a guarda de corporações de informática que ganham sobre a economia de atenção as infectou. A esta altura deste capitalismo de vigilância, temos de reconhecer nosso real inimigo: temos de combater não o uso de celular, mas sim a Big-Tech. Temos de regularizar as redes sociais.

#tecnologia


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Imagem monocromática de uma moça olhando triste para o telefone. Ela está dentro da logo do TikTok

Imagem: inc.com

Costumo frequentar o blogue do escritor belga Lionel Dricot, o “Ploum”. Com ele aprendo a língua francesa, como utilizar conscientemente uma tecnologia, mas, sobretudo, como escrever um texto.

Ploum é por formação um profissional da área da computação, mas, apesar disso (ou sobretudo por isso), não deixa de tecer críticas ao mercado de tecnologia. Apesar de ser “viciado em seu computador”, como declarou em entrevista recente sobre seu livro “BikePunk”, Dricot costuma propor e imaginar novos usos das tecnologias.

Em um texto de 2021, Ploum escreveu um texto no qual se propunha a pensar em “Como criar um computador longevo, que manterá sua atenção, seu bolso, sua criatividade, sua alma e o planeta”.

• “The computer built to last 50 years” ― Ploum.net

Ploum sugere, entre outras coisas, que essa máquina deveria ser “offline first”, quer dizer, que a maior parte das operações computacionais devem acontecer localmente, dentro dos diretórios do computador, sem auxílio direto de internet. Assim, a conexão serviria somente como uma espécie de “posto de gasolina” informacional, a partir do qual o dispositivo receberia mais informação para seguir o seu trabalho.

As mensagens, os feeds, os e-mails e todo o resto da informação digital seria trabalhada offline e, quando houvesse conexão, tudo seria subido para a nuvem ou baixado por protocolo RSS. Uma parte de nossas atividades diárias na verdade já funciona dessa forma, no entanto, parte relevante delas só funciona por intermédio da conexão contínua. É o caso por exemplo de alguns clientes de e-mail, mensageiros, mas sobretudo redes sociais e plataformas de entretenimento, como o TikTok.

O TikTok mostrou-se ao longo de seus quase nove anos de operação uma rede influente. Isso deve pouco ao seu conteúdo ― grande parte importada a partir de cortes e edições de outras plataformas ―, mas sim por sua estrutura. Até porque o “conteúdo” (em termos do midiólogo Marshall McLuhan) do TikTok é a televisão, assim como o “conteúdo” do cinema é a fotografia e o teatro, o “conteúdo” da televisão é o cinema etc. TikTok é a própria aprimoração da televisão ― ou sua saturação. O ato de zarpar canais é levado às últimas consequências nessa plataforma de entretenimento. TikTok é televisão para gente com problemas de atenção.

No entanto, ao contrário da televisão, a estrutura do TikTok é de retroalimentação de dados de interação cedidos pelo usuário, o que exige conexão intermitente. Com um poderoso algoritmo de curadoria de conteúdo, a partir do comportamento do usuário diante dos vídeos curtos, apresenta-lhe vídeos similares. Com isso tudo somado ao som, que é um veículo demasiado envolvente, edições frenéticas que nos enchem os olhos, e, é claro, conteúdo ilimitado em feed infinito, o usuário é aprisionado. Por muito tempo, essa dinâmica me afastou do aplicativo. Felizmente, é possível utilizá-lo de uma forma saudável e não viciante, isto é, assistindo aos seus vídeos offline.

Tutorial de como ver TikTok offline

Notem: quando escrevo “assistir offline”, não me refiro a baixar os vídeos para serem vistos como arquivos na galeria do telefone, mas sim a baixar uma lista de vídeos vindas da For You para serem vistos dentro da plataforma. Isso é possível a partir do seguinte caminho:

  1. abra o aplicativo do TikTok no telefone ― isso só é possível em versão mobile, e não funciona pela versão lite;

  2. toque na aba “Perfil” e em seguida toque no sanduíche minimalista (三) que fica na parte superior direita da tela;

  3. quando abrir a cortina de opções, toque em “Configurações e privacidade“, a última delas;

  4. role até embaixo, e busque pela seção “Cache” e localize a opção de “Vídeos offline”;

  5. aparecerá quatro opções de download: 50 vídeos, com tempo estimado em 30 minutos, pesando 100 MB; 100 vídeos, com 50 minutos e 200 MB; 150 vídeos, 70 minutos, 300 MB; e, por fim, 200 vídeos, com duas horas, pesando 400 MB;

  6. baixe a opção da sua preferência e, quando todos os vídeos esgotarem, vá novamente na seção “Cache” e toque em “Liberar espaço”, e apague o cache e o download de vídeos, e baixe-os quando tiver conexão outra vez.

Perceba que isso é um círculo, não um círculo viciante, mas um círculo virtuoso. A aba de vídeos offline não abrirá por padrão, e sim a For You. Para abrir a lista de baixados, você deve voltar à etapa 1 deste tutorial.

Lembre-se de que os vídeos não estão baixados na memória de seu telefone, e sim em cache, o que quer dizer que eles só estão disponíveis dentro do aplicativo; caso queira tê-los como arquivo é necessário baixá-los com a internet ativada.

Recomendações adicionais

Mesmo que os vídeos baixados partam da lista de For You, prefira utilizar contas que não têm o algoritmo muito “treinado”. Tentei esse processo por uma conta “rodada”, onde até publiquei alguns vídeos, e o resultado foi decepcionante: o algoritmo me voltou vídeos de baixo engajamento, sem nenhuma relevância. Quando a conta é nova e com algoritmo pouco treinado, este tende a “atirar por todos os lados”, e mostrar vídeos que, em geral, viralizam.

Para garantir a minha privacidade (ao menos um pouco), para essa conta nova criei um e-mail alias, ou seja, um e-mail “laranja” que receba as mensagens do TikTok e as encaminhe para o meu e-mail primário. A partir dessa conta com alias, eduquei o algoritmo o suficiente para mostrar vídeos que sejam mais ou menos do meu interesse, mas que o ampliem.

De todas as opções de download, recomendo a de 50 vídeos. Além de não pesar muito no telefone, já esta opção demora a se esgotar ― para ver todos os vídeos, levo não menos do que dois dias, com tempo de tela diário de em média 40 minutos. Disso vem outra vantagem de assistir a vídeos offline: vejo-os com mais atenção e mais de uma vez. Já aconteceu de eu passar incólume por um vídeo na primeira volta, mas me interessar por ele na segunda. Essa dinâmica seria impossível se eu estivesse no feed infinito.

Caso queira tornar a experiência mais intencional e menos dopaminérgica, deixe o seu telefone em modo monocromático ― há vários tutos fáceis para isso por aí. Além disso, retire o som do aparelho, aumentando-o só quando o vídeo lhe interessar ― é bom para você, é bom para as pessoas que estão ao seu redor. Dessa forma, você terá um TikTok neutralizado de todas as estratégias de economia de atenção.

Em outro texto, falei superficialmente das razões pelas quais utilizo meu telefone somente em modo monocromático.

• “Um mundo em preto e branco” ― Ideias de Chirico

Recomendo fortemente que esse seja o padrão àqueles que sentem que o aparelho distrai em demasia, ou que precisam de fazer um detox de dopamina.

Benefícios do offline first

Pela experiência, vê-se que quando temos uma quantidade de conteúdo limitada para ser lida ou vista, não somos tentados a seguir na pesquisa e na navegação. Quando se chega ao “fim da linha” em geral se está em um lugar sem internet, então o leitor contenta-se em sair do aplicativo. É essa a minha experiência com RSS, seja com textos, seja com podcasts.

A experiência é ainda melhor quando se tem um dispositivo que, por design, não incentiva a interação contínua com o aparelho, como o é o Kindle. Há alguns meses neste blogue, ensinei como importar feeds RSS em formato de e-book pelo calibre.

• “Leia mais com Kindle + RSS + calibre” ― Ideias de Chirico

Essa tem sido a minha experiência digital de leitura favorita. No caso do TikTok offline nosso engajamento com a plataforma é diminuída, porque, além de não podermos pesquisar dentro da plataforma, os comentários não são carregados com os vídeos.

Fora esse desestímulo ao engajamento contínuo, a fruição de conteúdo digital offline impede que nossos dados sejam coletados incessantemente, logo, poupa a bateria do aparelho. Além disso, como o algoritmo só pode especular nossos gostos, ele envia vídeos mais diversos, de “fora da nossa bolha”, e mais longos, que demandam mais atenção.

Alguma vez por aí li que “Offline é o novo online”. No tempo da economia de atenção e da vigilância digital, ser de vanguarda é estar desconectado.

#tecnologia


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Em 1972 o escritor italiano Italo Calvino publicou o seu Le città invisibili, uma série de descrições de cidades imaginárias, ambientadas em algo que seria um Mediterrâneo ou um Oriente Médio medievais; essas descrições partem de diálogos imaginados entre o viajante Marco Polo e o monarca Kublai Kan, imperador dos Tártaros. Cada cidade é uma metáfora, e boa parte delas seguem a estética do maravilhoso.

Li Le città invisibili ano passado, e ele foi a minha primeira leitura de um livro completo em língua italiana. Há alguns dias o trecho que selecionei para esta Ideia de Chirico rodava em volta de minha cabeça, porém eu não conseguia lembrar de onde ele vinha. Ontem finalmente decidi buscá-lo e fazer-lhe uma tradução em português, também como forma de praticar um pouco do italiano, que me tem estado em baixa. Espero que vocês gostem e que isso os incentive a ler Calvino, um dos mais originais autores da Itália moderna.

Excepcionalmente esta publicação não trará imagens, a fim de que as descrições não sejam “infectadas” por elas nas suas imaginações.

As cidades e as trocas. 2.

Em Cloe, grande cidade, as pessoas que passam pelas ruas não se conhecem. Ao verem-se, imaginam mil coisas um do outro, os encontros que poderiam ter entre si, as conversas, as surpresas, as carícias, as mordidas. Mas ninguém saúda ninguém, os olhares cruzam-se por um segundo e depois se afastam, buscando outros olhares ― não param.

Passa uma moça que roda uma sombrinha apoiada no ombro, e também um pouco o redondo dos quadris. Passa uma mulher vestida de preto que demonstra a todos os seus anos, com os olhos inquietos sob o véu e os lábios trêmulos. Passa um gigante tatuado; um homem jovem de cabelos brancos; uma anã; duas gêmeas vestidas de coral. Algo corre entre eles, uma troca de olhares como linhas que ligam uma figura a outra e desenham flechas, estrelas, triângulos, até que todas as combinações em um átimo desaparecem, e outros personagens entram em cena: um cego com uma onça na corrente, uma cortesã com leque de plumas de avestruz, um mancebo, uma mulher-bala. Assim, entre aqueles que por acaso encontram-se juntos a abrigar-se da chuva sob o pórtico, ou amontoam-se sob uma tenda de feira, ou param para escutar a banda na praça, consumam-se encontros, seduções, abraços, orgias, sem que se troque uma palavra, sem que se toque um dedo, quase sem levantarem os olhares.

Uma vibração luxuriosa move continuamente Cloe, a mais casta das cidades. Se homens e mulheres começassem a viver os seus efêmeros sonhos, cada fantasma tornar-se-ia uma pessoa com quem começar uma história de perseguições, de fingimentos, de mal-entendidos, de irritações, de opressões, e o carrossel das fantasias pararia.


Le città e gli scambi. 2.

A Cloe, grande città, le persone che passano per le vie non si conoscono. Al vedersi immaginano mille cose uno dell’altro, gli incontri che potrebbero avvenire tra loro, le conversazioni, le sorprese, le carezze, i morsi. Ma nessuno saluta nessuno, gli sguardi s’incrociano per un secondo e poi si sfuggono, cercano altri sguardi, non si fermano.

Passa una ragazza che fa girare un parasole appoggiato alla spalla, e anche un poco il tondo delle anche. Passa una donna nerovestita che dimostra tutti i suoi anni, con gli occhi inquieti sotto il velo e le labbra tremanti. Passa un gigante tatuato; un uomo giovane coi capelli bianchi; una nana; due gemelle vestite di corallo. Qualcosa corre tra loro, uno scambiarsi di sguardi come linee che collegano una figura all’altra e disegnano frecce, stelle, triangoli, finché tutte le combinazioni in un attimo sono esaurite, e altri personaggi entrano in scena: un cieco con un ghepardo alla catena, una cortigiana col ventaglio di piume di struzzo, un efebo, una donna-cannone. Così tra chi per caso si trova insieme a ripararsi dalla pioggia sotto il portico, o si accalca sotto un tendone del bazar, o sosta ad ascoltare la banda in piazza, si consumano incontri, seduzioni, amplessi, orge, senza che ci si scambi una parola, senza che ci si sfiori con un dito, quasi senza alzare gli occhi.

Una vibrazione lussuriosa muove continuamente Cloe, la più casta delle città. Se uomini e donne cominciassero a vivere i loro effimeri sogni, ogni fantasma diventerebbe una persona con cui cominciare una storia d’inseguimenti, di finzioni, di malintesi, d’urti, di oppressioni, e la giostra delle fantasie si fermerebbe.


In: “Le città invisibili” (1972), de Italo Calvino. Tradução de Arlon de Serra Grande.

P. S. (7 abr. 2025): tradução atualizada com as gentis recomendações do italófilo Renato Stanz, companheiro do Clube Poliglota.

#tradução #cultura


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Estou ocupado com vários textos ao mesmo tempo, mas não gostaria de deixar este espaço emarasmado. Aqui vai uma curadoria de minhas publicações do meu perfil @arlon@harpia.red, de status de Whatsapp ou rascunhos de rascunhos, i. e., pensamentos que tive durante a escrita desta Ideia de Chirico. Por puro acaso, enquanto editava este texto, percebi que a maioria destas notas falam somente de tecnologia e de Fediverso. O post desta vez é sem foto; estou com um problema na nuvem.

Sobre moda e intimidade esmartefônica

Interpreto capinha como “roupa de telefone”.

Quando ele está em casa, fica sem nada, peladinho como veio ao mundo.

Offline-first

Após ler um ensaio do @ploum@mamot.fr imaginando a construção de um computador que dure 50 anos ― onde também se fala do princípio de #offlinefirst / #localfirst ―, tive ganas de criar um diretório local de arquivos para consulta rápida e sem internet.

Já baixei alguns mapas (América do Sul, Brasil, Ceará etc.). Tentei baixar o mapa de infraestrutura da minha cidade pelo Open Street Maps, mas não consegui direitinho. Penso em baixar o repositório inteiro da Wikipédia, que pesa em média 50 GB. Antes dessa ideia, eu já tinha debaixo da manga dois dicionarinhos de regência ― nominal e verbal ―, do Celso Luft. Nunca se sabe quando será necessário saber se se tem “esperança por algo” ou “esperança de algo”. Nada garante que nessa ocasião haverá internet disponível.

Citação

Você já viu um viciado em crack dizer que está sem dinheiro para comprar drogas? Não, ele levanta e faz acontecer.

– Algum coach em algum lugar do mundo.

Via @NoahLoren@ayom.media

Furo fediversal

Descobriram um bugue no desenvolvimento do Pixelfed, no qual caso um usuário dessa plataforma siga uma conta privada de outra plataforma, essa conta passa a ser pública para os seguidores do usuário que a seguiu.

Pixelfed leaks private posts from other Fediverse instances.

Dizem que bugues no Pixelfed são frequentes. Cheguei a ter um perfil nessa que é a análoga fediversal do Instagram, e, apesar de não ter publicado tanto nela, gostaria de que tivesse sucesso, já que, de todas as plataformas do protocolo ActivityPub, tem a interface mais amigável e com mais apelo familiar.

Nuvem não é becape

Um fio absurdo do Mastodon com o relato de uma conta de nuvem pela Oracle que foi desativada sem aviso prévio, porque a conta estava “inativa” ― provavelmente a sincronização estava ativada.

After realizing that my servers were offline since the 25th of January 2025, I've been in contact with Oracle support in a multitude of ways trying to figure out why this happened and how we can recover both the account and data.

I wasn't told that my account was disabled. I didn't receive an E-Mail or anything. When logging in, I was simply told that my username or password was incorrect. After (successfully) resetting my password twice, I realized it wasn't about the password. Oracle had just deleted my account without any notice.

This is a public service announcement to never ever use Oracle

Leiam-no inteiro e lembrem-se da máxima do @manualdousuario@mastodon.social

Nuvem não é becape.

Sobre deixar uma “coleirinha” no notebook

Outra noite tive um sonho no qual eu perdia meu notebook, alguém o encontrava, mas, em vez de deixar nos achados e perdidos, acabava se apropriando dele já que o aparelho “não tinha nome”.

Ato contínuo, acordo, abro a tampa da minha máquina e coloco meu e-mail e o meu número de telefone na aba “usuário” do sistema.

Nunca se sabe em que mãos estarão nossos pertences perdidos. Na dúvida, é melhor arriscar a privacidade para ter a chance de ter o objeto de volta, do que perder o objeto e a privacidade...

O gozo da tecnologia responsiva

Resolver um problema no sistema operacional é análogo a afiar uma faca ou engraxar um rolamento; demanda muito tempo, mas ao fim dá aquela sensação de alívio de ter de volta um instrumento como uma extensão do corpo.

Sobre Ghost

Estou animado por Ghost, plataforma de newsletter que entrou para o protocolo ActivityPub. Mas acho a logo deles tão edgy, meio intimidador mesmo, algo que só a logo de X do Twitter me provocou; me lembra também daqueles signos que os alienígenas de “A Chegada” faziam.

Essa logo da Ghost contrasta com as das plataformas fediversais, que têm um aspecto mais amigável e convidativo.

Apesar disso, gostaria de experimentá-la, cruzando-lhe meus posts destas Ideias de Chirico para convertê-los em newsletter. Também espero que haja algum rebranding dela conforme fique mais próxima do éthos fediversal.

Sonho de consumo no Fediverso

Abrir o texto de um link como se fosse um post e ter a opção de compartilhá-lo na linha do tempo com ou sem comentários como se viesse de um perfil.

Desabafo sobre a mídia pendrive

A mídia mais pau mole que existe é o pendrive.

Não dá segurança ao ser carregado, pode ser perdido facilmente, não tem tatilidade alguma e não tem nada de especial em si. O fato também de ser regravável o torna banal. Por tudo isso, é impossível apegar-se a um pendrive como se apega a um disco, a uma fita ou a um CD. Por acaso, você já recebeu um pendrive de presente de alguém? Não, né? O pendrive não tem sex-appeal, é uma mídia demasiado pau mole.

Não é obviedade dizer que só no Brasil que pendrive é chamado de pendrive. Esse nome é irascível. É da coleção de nomes em inglês que são só faladas no Brasil. Direção Caneta? Nos Estados Unidos ele é literalmente vara USB [USB stick]. Nem por isso ele ganha sex-appeal. Pau USB. Pau mole USB.

Sobre Smithereen

Desativei minha conta Smithereen, a rede fediversal inspirada no Facebook clássico. Ao menos por enquanto. Precisava de uma plataforma que permitisse uma leitura de textos mais longos, que fugisse da lógica seguidores/seguindo e que ao mesmo tempo tivesse um leiaute limpo. Smithereen resolve muito bem esse problema.

No entanto, há uma série de recursos que, talvez propositalmente, não foram implementados. É o caso das hashtags. O desenvolvedor principal do projeto disse que limitou o uso de hashtag para evitar ao máximo que o usuário veja conteúdo de fora de sua federação.

Além disso, faltam implementações básicas do tipo ajuste de letra e modos noturno e diurno. Como a hashtag, esse recurso aparentemente está deliberadamente ignorado.

Agora é esperar até que apareça alguma instância #Friendica brasileira estável.Estou atento por exemplo à f.capivarinha.club. Essa será a próxima rede que experimentarei. Pelo que sei, Friendica é um hub, que permite a leitura e compartilhamento de notícias de feeds RSS.

Rede social fez um mal danado...

Pagando um psicólogo pra tentar me convencer de que não é porque um texto meu não teve muitos compartilhamentos que isso significa que ele seja ruim.

Outra proposta de aportuguesamento

Fork → Garfo

Ex.

O Linux Lite é um sistema garfo do Xubuntu.

P. S.: sugestão do @eltonfc@bertha.social é de utilizar a palavra “forquilha”.

Segundo o dicionário Dicio, “forquilha” é

  1. Ferramenta agrícola composta por uma haste de duas ou três pontas, semelhantes às pontas de um garfo, usada para remexer mato ou palha; garfo, forca, forqueta, forcado; 2. Tronco com uma bifurcação na ponte; forqueta; 3. objeto bifurcado, com duas pontas, como um Y.

Exemplo de uso:

Fizeram uma forquilha do cliente oficial do Pixelfed.

O Mastodon foi recentemente forquilhado.

A comunidade fediversal

são os tuiteiros que amadureceram e fizeram psicoterapia.

Um desejo

Cantar o 4’33” do John Cage em um karaokê…

A alegria de descobrir e o mistério de compartir (e vice-versa)

Baixar coisas é tão legal!

De alguma forma misteriosa você pega um arquivo de alguém desconhecido de algum lugar ignoto do planeta e bota isso diretamente no seu computador. E aí pode ter acesso ao arquivo sem internet!

Isso não é legal?!

Citação

se o Estado te obriga a ter um celular para acessar serviços públicos o Estado deveria dar celulares e powerbanks e acesso ilimitado à internet pra todas as pessoas. Que mundo bizarro e maluco que a gente se enfiou com essas tranqueiras tecnológicas, é enlouquecedor

― Citação da sempre genial @apropriagui@masto.donte.com.br

#notas #tecnologia


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Chovia no campus universitário. Em um banco de areia, logo abaixo de um beiral, concentrava-se uma poça d'água. Pin-pin-ga-gavam sobre ela gentis gotas de uma chuva recente. Nessa lagoinha, faziam-se ondas...

Enquanto caminhava ali perto, o percebi. Sobre o corredor central do campus, em um nível bem mais alto do que a poça, fiquei de cócoras, como fazem os bebês andantes. Observei, ouvi: som de goteira, ondas de pingos, reflexo do céu cinza sobre as águas. E, por um brevíssimo instante, lembrei do que é ser criança.

Fui uma criança introvertida. Quer dizer, eu encontrava alegria na solidão e também no ócio. Como consequência, na maior parte do tempo, estava acompanhado, não das pessoas, mas das coisas. Quando criança, as coisas tinham vida tanto quanto as pessoas.

Um certo quadro idílico da casa de minha avó me entreteu durante minhas visitas; nele, via-se uma criança loira vestida à moda europeia do pós-guerra; sentada sobre uma pedra, pescava à beira de um rio; em segundo plano, havia uma casa em estilo germânico tradicional, emoldurada por algumas montanhas ao fundo. Algumas vezes eu ouvia essas figuras silenciosamente me chamarem, outras, sentia que eu próprio estava dentro da paisagem.

Eu interagia não só com quadros, mas também com as estampas das mesas, com relógios de parede ruidosos, com imagens cristãs kitsch; também falava com as ilustrações nas paredes das escolas e nos livros didáticos, além de enfeites postos no quarto de dormir de meus irmãos. Também os brinquedos, claro, existiam como seres.

Creio que as crianças, assim como os artistas visuais, são privilegiadas por um olhar de “primeiridade”. “Primeiridade”, na teoria dos signos¹ de Peirce, é o primeiro estágio da consciência, no qual vemos as coisas sem associá-las a outras. Isto é, creio que tanto as crianças, quanto os artistas, conseguem ver o mundo por ele mesmo; são capazes de notar os objetos, mesmo os repetidos, sempre como novos.

Tive a sorte de ter tido uma infância introspectiva e também de ter sido um artista visual. Aos 19 anos, enquanto estudava desenho realista, retratei tudo o que tocasse meus olhos: rosas, edifícios, gente. Não importava o que eu desenhasse, o objeto a ser desenhado era um signo precioso, no qual eu deveria imergir ― como eu imergia nos objetos que eu via durante a infância.

Enquanto eu observava a poça d'água no campus, às vezes eu era tentado a pensar, por exemplo, em como a cidade estava alagada, despreparada para a chuva, em como ela atrapalhava os planos das pessoas. O exercício de metonímia, de tomar a parte pelo todo, de ver em um sutil detalhe um grosso problema estrutural, pode até ser cientificamente importante, mas nos afasta da contemplação do presente.

Afinal, por que, conforme envelhecemos, esquecemo-nos de como observar? O adulto não vê o mundos; ele o pensa. Ao me inclinar próximo àquela poça d'água, já não via mais o seu reflexo; nele, reflito sobre um problema que lhe é exterior. Signo e referente imiscuem-se. Visão e pensamento intrometem-se.

Ser adulto é não mais se espantar naturalmente. Por conta do repertório de espanto, adquirido a custosos traumas, estou mais preparado para as intempéries; por outro lado, não vejo mais o que estou vendo, nem penso mais o que estou pensando. Agora vejo e penso, de modo que o que vejo não é o que vejo, e que penso não é o que penso. É como se fossem dois signos sobrepostos, uma espécie de ideograma chinês viciado, sem poesia.

No entanto, também há alguma relação ― quase simbiótica ― entre o olhar da ”retina anatômica” e o olhar da “retina mental” (em termos do poeta Ezra Pound). O período em que comecei a desenhar em estilo realista coincidiu com aquele em que comecei a ler livros. O contorno dos desenhos que eu fazia influenciavam a forma com a qual eu imaginava as personagens dos livros; por vezes eu chegava a desenhar uma cena literária apenas para torná-la mais evidente. Olhar e imaginação cresciam juntos, como músculo e osso.

Tenho a impressão de que, junto à aquisição de um olhar mais “puro” diante das coisas, ganha-se uma imaginação mais fértil; me parece que, à medida que eu melhorava meu desenho, imaginava melhor. A partir desse raciocínio, pode parecer baixa a relação entre a imaginação e a idade, e que aquela está mais ligada ao meio e à educação de quem observa do que o quão velho ele está.

Penso que, mais importante ainda do que uma visão externa mais “limpa” ― livre de racionalizações mais ou menos arbitrárias e intrusivas ―, é a visão interna mais “limpa”, isto é, uma auto-observação mais meditativa; uma visão em primeiridade de quem está vendo a si mesmo. A partir de uma auto-observação em estágio de primeiridade, podemos nos perceber como novos indivíduos.

Meditar é, entre outras coisas, observar a si mesmo como fazemos com nuvens, as ondas do mar ou o movimento das ruas, a fim de nos conhecermos. Observando-se dessa forma, é possível um olhar intrapessoal tanto menos autocomplacente quanto menos exigente e também manchado pela visão externa que guardamos conosco.

Livre do jugo do danoso superego, esse já não seria um olhar adulto, mas um olhar pós-adulto.

¹ = “Signo” aqui quer dizer “Uma coisa que está no lugar de outra”, como assim define o poeta e semioticista Décio Pignatari. Tudo o que representa são signos, ou pode-se mesmo dizer que todas as coisas são signos: as nuvens, o relógio, uma pintura abstrata.

#cotidiano


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Elizabeth Sparkle, protagonista de “A Substância”.

Com atraso, após sua premiação de Oscar de “melhor maquiagem e penteados”, assisti ao horror corporal “A Substância”.

O filme narra o declínio de Elizabeth Sparkle, uma ex-atriz premiada que, após ser demitida de um programa televisual de ginástica por ser “muito velha” (segundo seu produtor), aceita um método de rejuvenescimento do mercado ilegal.

O método consiste em injetar em si mesmo uma substância que faz gerar a partir do corpo do injetante uma versão mais jovem sua. Cada versão tem a consciência da pessoa “matriz” por uma semana, enquanto a outra fica inconsciente. Isso requer uma manutenção que, caso não seja feito regularmente por ambas as partes, faz com que uma delas se deteriore e envelheça prematuramente.

Mais do que uma crítica ao patriarcado, “A Substância” centra-se no problema do etarismo. O patriarcado é um mal estrutural antigo, e há peças mais ilustrativas sobre esse tema do que esse filme. Porém, para a nossa sociedade de desempenho (em termos do filósofo coreano-alemão Byung-Chul Han), envelhecer é um problema, pois os mais velhos não produzem nem dão lucro.

Criticá-lo frontalmente é o ponto mais brilhante e sensível deste longa-metragem. Elizabeth mesma deixou de ser lucrativa para o produtor a partir do momento em que envelheceu e ficou menos “televisível”. Foi então descartada do estafe sem grandes cerimônias, malgrado a sua longa carreira.

A velhice nunca esteve tão distante da beleza e do bem-estar como agora. No ano de 2025, quer-se sempre jovem e potente, seja por aparência, seja por “essência”. E, ironicamente, com menor taxa de nascimento, menor poder de compra e maior desigualdade entre as classes, estamos nos encaminhando para uma sociedade mais velha e sem suporte aos mais idosos.

Os momentos mais marcantes do filme premiado são de Sue “discutindo” com Elizabeth, a chegar até o paroxismo daquela surrar esta. Isso representa tanto a nossa relação com nossos eus futuros, que desprezamos, quanto a relação dos mais jovens com os mais velhos. Mesmo.

Sue, a versão mais jovem de Sparkle.

O “SAC” da “Substância” rejuvenescedora, quando contatada, com frequência diz que “Vocês são uma só”. Mas como uma versão pode fazer mal à outra se ambas fazem parte de uma mesma consciência? Aí reside a genialidade do filme. Conforme as semanas avançam e uma versão adquire mais prestígio do que a outra, cada qual passa a agir displicentemente, sem considerar versão da semana seguinte, a ponto de cada uma adquirir consciência autônoma e até a criar rivalidade entre si. Nas cenas finais do filme, Sue fala em entrevistas de Elizabeth como se essa fosse outra pessoa.

Isso nos faz refletir sobre a relação entre a responsabilidade e a juventude. O senso comum associa a juventude à inconsequência, porque “essa é a sua natureza”, já que “não tem o cérebro totalmente formado” etc. Sue nada mais é do que uma mulher de 50 anos em um corpo de 30. Ainda assim, ela é inconsequente. O que poderia justificar essa postura?

Poder.

E poder no sentido mais concreto de todos: “poder-fazer”. Há gente que com muita frequência desejaria “voltar no tempo com a cabeça que tem hoje”. Mas o poder-fazer cega. Quem garante que se voltássemos no tempo faríamos diferente? Quem garante que não cairíamos na sedutora delícia do erro? Há vezes em que erramos, não porque somos imaturos, mas porque sabemos que aquele é um erro sem a possibilidade de ser repetido...

O longa-metragem apresenta duas falhas notáveis: a falta de aprofundamento nas personagens e de coadunação estética.

Passamos duas horas assistindo a uma mulher que já foi uma Oscar-premiada e não sabemos sequer como foi sua vida de atriz e como sucumbiu à programação barata de televisão, ou por que ela vive sozinha etc. Além de tudo, reduzir uma personagem feminina à sua aparência e sua vida profissional é danoso mesmo em um filme que procura criticar a objetificação feminina.

Outra coisa esquisita é a confusão estética. O cenário e o hábito é todo oitentista, vistos na vestimenta, no uso do jornal e do telefone fixo com fio. Só que a trilha sonora é moderna, e volta e meia damos de cara com telefones celulares e televisões de plasma.

Por outro lado, quando se justapõem cenários, hábitos e tecnologias antigos e modernos, é como se se delineasse uma identificação entre a época atual à sua antecessora. Forma-se daí a ideia de que, nos aspectos apontados pelo filme (patriarcado e etarismo), não evoluímos como sociedade.

No mais, achei o longa-metragem bem próximo do gênero de ficção científica, e me fez refletir sobre o papel da ciência na busca compulsória pela juventude e, por consequência, na pressão social pela conservação da aparência. Por isso, “A Substância” entra para a lista de filmes que poderiam muito bem ser um episódio de Black Mirror.

(Até porque, dado o seu baixo desenvolvimento de personagens e seu trabalho pobre em fotografia ― sobretudo baseado em closes ―, mais parece um episódio de série do que um filme).

#cultura


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Como tornar a tecnologia divertida de novo?

Cartum de Hartley Lin na New York Times. Tradução livre: “Oh, cara, eu adorava brincar com essas coisas antes de elas se conectarem a outras pessoas”.

Sonhamos por anos em ter algum instrumento dopaminérgico prático e que coubesse no bolso, para nos livrar do tédio das horas vagas do trabalho, das viagens intermináveis, das conversas desinteressantes, de horazzz zzzentadozzz na zzzala de ezzzpera. Mas agora, agora já o temos! Viva! Tédio nunca mais!

(Agora temos ansiedade coletiva).

Vez ou outra costumo ver propagandas de computadores dos anos 90, 2000 e 2010. Assistir a propagandas nos ajuda a entender o imaginário dos objetos de consumo. Não me recordo de como era a usabilidade (provavelmente horrível!), mas lembro como cada minuto em frente ao computador era precioso e deveria ser apreciado ao máximo.

A qualquer momento algum parente poderia nos tirar dali para abrir alguma sala de bate-papo ou fazer a mais pixelada vídeo-chamada possível. Estaríamos com nossos computadores pela manhã, e talvez não a veríamos mais pela noite.

A tecnologia eletrônica era divertida. Não era a protagonista de nossos dias, como hoje; era um convidado, aquele tio esquisito que vem de longe contar causos e fazer coisas extraordinárias. Com ele, aprenderíamos algo de novo.

Hoje a tecnologia está estampada em todos os lugares. É o polemista que define o debate público, e é sobre quem mais se fala. Antes, se a tecnologia era uma extensão de nossos olhos, agora é a extensão de nossas bocas ― cada vez mais rançosa e verbal. Se antes, com as redes sociais víamos nossos amigos, agora nela vemos nossos piores inimigos. Parafraseando para este contexto uma fala de Jérémie Zimmermann:

Em quinze anos passamos da era da informática “amiga” para a informática “inimiga”.

A minha relação com a tecnologia mudou de vez por volta de 2014, quando recebi o meu primeiro smartphone, um pequeno Samsung com suas cinco polegadas. A partir do momento que eu pude acessar informações pelo smartphone antes só obtidas pelo computador, notei alguns efeitos nocivos.

Em contraste com o computador, que necessita de um espaço estável e de cabos para estar conectado, os telefones inteligentes trouxeram a portabilidade unida à conectividade sem fio. Isso tirou ritual de “penetrar no mundo virtual” ― sentar-se, ligar o computador, esperar pelo seu longo processo de boot e concentrar-se na navegação de bate-papos e discussões em fóruns.

O telefone, por outro lado, está a todo momento ligado, e pode estar em qualquer lugar, conectado de vários modos. Com o telefone, não há ritual, o ritual está em sair dele, pois a maior parte das atividades cotidianas lhe são atravessadas.

Lembro de quando instalei o Twitter no meu telefone, a rede social que eu mais amava até então. Apesar dessa rede social ter sido desenhada para ser leve e móvel, até 2013 o Twitter era um veículo ao qual eu tinha acesso somente pelo computador. “Tuitar” era um ato imóvel, realizado pelo computador. Quando eu pude então passar a publicar de qualquer lugar onde estivesse, passei a me tornar uma pessoa impulsiva e neurótica.

Impulsiva, porque passei a querer publicar tudo o que viesse à mente, assim, de cara, sem filtro ― um mal do tuiteiro até hoje, inclusive ―: e neurótica, porque passei a redigir mentalmente tuítes viralizáveis ou respostas perfeitas para discussões que eu tinha.

De 2023 para cá, depois de muita experimentação, minha relação com a tecnologia melhorou. Foi quando, pelo Manual do Usuário, conheci a slow web. A slow web é menos um movimento do que um modus operandi perante a internet: a partir dele, freia-se a velocidade da navegação para pô-la em ocasiões pontuais do dia a dia. Navegar passou a não ser um ato ininterrupto, mas sim um evento mais ou menos agendado.

A tecnologia voltou a ser uma visita. Parte até dos meus hábitos que envolvem tecnologias não conectadas são impactados pelo raciocínio slow web, como por exemplo a leitura do meu feed RSS, que faço através do meu Kindle. Em vez de atualizar meu feed diariamente, espero até a próxima sexta-feira para receber as próximas atualizações.

Encontro também mais alegria com um computador pessoal. É nele que penso quando se fala de uma relação saudável com tecnologia. Até hoje tenho um prazer genuíno ao estar com meu laptop Positivo que ganhei quando ainda era adolescente, que, apesar de bem velho, é conservado e ainda resolve todos os meus problemas.

Gosto de como em um computador pode desembuchar com mais agilidade a maior parte de meus problemas, inclusive problemas de comunicação; de como ele pode ser expandido com os mais diversos periféricos; de como pode ser configurado ao meu bel-prazer; de como pode ser consertado em praticamente todos os lugares. Penso até mesmo que a experiência com as redes sociais são bem melhores por um computador!

Parte do prazer com a tecnologia também está em tê-la como um objeto a ser manuseado e configurado; está em tirar a tampa de sua “caixa-preta” e torná-la um instrumento que o usuário domina por completo. E isso, claro, é perpassado por software livre e de código aberto. No blogue da Ava, há um bom argumento para termos controle sobre nossos dispositivos e evitarmos a sua conveniência compulsória.

Sei: não é mais possível recuperar aquela alegria dos primeiros anos da informática. O que relato aqui é o que se ajustou ao meu ritmo e aos meus recursos. Há por exemplo quem tenha conseguido recuperar a alegria pela tecnologia investindo em equipamentos dedicados, como câmeras digitais, tocadores de .mp3, vitrolas, e até máquinas de escrever; há quem conseguiu fugir do vício em telas investindo em um “telefone burro”, dedicado a fazer ligações, ou em um telefone somente para as redes sociais e aplicativos financeiros. Cada um deve fazer o seu estudo de caso e adotar hábitos que lhe caibam.

É necessário dizer também que o discurso que prega a redução do tempo de tela está impregnado pelo discurso da sociedade do desempenho (em termos de Byung-Chul Han), no qual devemos ser chefe e empregado ao mesmo tempo, e nos forçamos a produzir sem parar. Logo, ao tempo que devemos evitar os danos causados pelas tecnologias dopaminérgicas, também devemos evitar o cultivo renitente da culpa pelo descanso, seja ele com um telefone, seja com um livro em mãos.

Sei também que para muitas pessoas o telefone celular é a única fonte de lazer; isso, porém, denuncia mais uma situação de desigualdade do que o estado de arte da informática. No entanto, em uma postura cyberpunk, precisamos compreender os efeitos da tecnologia, apropriar-se deles e neutralizar aquilo que não é conveniente.

Disclaimer: Nenhum texto é uma ilha. Tenho de creditar esta publicação a um tópico de discussão que abri no Lemmy, o fórum fediversal, e que recebeu muitas boas respostas que me fizeram refletir bastante sobre o assunto e desenvolver alguns argumentos desta Ideia de Chirico.

#tecnologia


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Imagem de uma piscina em um condomínio fechado. À direita há um parquinho para crianças

Espaço liminal?

Como ando sem pauta, aqui vai um copicola de algumas publicações do meu perfil pessoal do Fediverso, o @arlon@harpia.red. Isso é bom para quem não é da bolha fediversal, e é bom para quem é da bolha fediversal, mas não pôde me acompanhar nos últimos dias. Intercalam esses “tuítes” algumas fotos que tirei nos últimos dois meses.

Proposta de aportuguesamento

Noob = nube.

“Nube” também sugere nuvem. “Nubar” é ser nube, mas ao mesmo tempo sugere “anuviar”, “nublar” etc.

P.S.: “Nube”, ao contrário de outros aportuguesamentos, não tem excedente de caracteres em relação ao seu relativo estrangeiro, o que o pode tornar mais sugestivo.

Pode cagar.

Instagram em modo saudável

Experimentando navegar pelo Instagram somente pela versão web, através da linha do tempo cronológica, evitando os reels nem os stories.

Fosse só isso, seria uma ótima rede social.

Última leitura

Terminei a leitura de “Walden”, de Henri David Thoreau ― mas parece que sigo o lendo…

Desde “Em louvor das sombras”, do Tanizaki Junichiro, não tinha lido um livro tão influente sobre meu comportamento em relação às coisas e aos espaços em geral.

Foto de uma lambreta de cor azul-bebê. Ao fundo, um bosque universitário.

Bibi.

Mais uma dúvida de língua portuguesa respondida

O professor Pasquale me respondeu mais uma dúvida de língua portuguesa!

Ele mantém um programa na Rádio CBN, que se chama A Nossa Língua de Todo Dia, na qual tira dúvidas sobre LP e toca música boa.

A descrição do episódio é a seguinte:

Um ouvinte tem dúvidas sobre o uso dos verbos na forma infinitiva em avisos falados e escritos ou para expressar ordens. Os auxílios luxuosos são ‘Desesperar, Jamais’, com Roberto Ribeiro, e ‘Renascer’, com Zizi Possi.

Aqui o arquivo dele.

Xubuntu é uma merda, mas é bom

Nada como um sistema 100% responsivo. Não é este o caso do Xubuntu.

Estou com ele instalado em um laptop Positivo pré-adolescente (com ~13 anos). Por alguma razão o sistema volta e outra congela. O menu Whisker às vezes demora a responder.

O sistema mais responsivo que peguei até hoje foi o grande Linux Lite. Uma pena só que eu tenha de ir com muita frequência ao terminal. A vantagem do Xubuntu é que ele é muito prático e a maior parte do programas instalo em uma lojinha do sistema.

Pessoa deitada em duas poltronas. Está de casaco. Suas duas mãos estão postas dentro dos bolsos do casaco, enquanto sua cabeça está escondida na toca do casaco.

Performance artística não intencional na Uece, campus de Fátima.

Locais ideais para estudo

Estou estudando e lendo no bloco de música da Uece.

É perfeito. Música ao vivo e “natural” (i.e., sem algum grande evento por trás) é como um limpador sonoro. Há sons de tudo enquanto ao redor do bloco, desde cachorros até ares-condicionados. Mas enquanto há música orgânica, mesmo que improvisada, ela é o que interessa.

Vez ou outra ouço algum trechinho perdido de alguma peça que conheço e às vezes até me dá vontade de ir à sala de estudo, abrir a porta e perguntar: “Onde irão apresentar essa peça?”

#notas


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Sala de aula. Várias cadeiras com o assento de cor laranja. Ao fundo , uma lousa para pincel. Ao redor, nas paredes, há bandeiras de vários países.

Sala de aula na qual darei aulas de português para estrangeiros durante este ano de 2025.

Um texto diferente do que tenho publicado. Apenas quero compartilhar algumas coisas que tem me acontecido.

Na última segunda-feira, dia 10 de fevereiro, passei a ministrar aulas de português como língua estrangeira (PLE), ofertadas em um projeto de extensão da Universidade Estadual do Ceará. Esse era um projeto que eu almejava há muito tempo e que só agora o pude realizar.

O que era para ser um mero projeto de extensão para pagar minhas contas e oferecer uma experiência extracurricular (na faculdade não temos cadeira de ensino de PLE), passou a modificar minha perspectiva sobre vários assuntos, a começar pela perspectiva sobre a minha própria língua.

Por muito tempo, principalmente nos primeiros anos do curso de Letras Vernáculas, imaginei algum método de estranhar a língua portuguesa. Como assim? Eu queria olhá-la, lê-la, falá-la como um estrangeiro, como se nunca tivesse a visto antes. Esse desejo vinha sobremaneira dos meus experimentos com poesia concreta ― em alguns deles eu queria tornar a língua portuguesa um “ícone puro”, uma forma sem conteúdo (ou, como dizia sabiamente Décio Pignatari, tornar a língua portuguesa uma linguagem...)

Creio que quando dou aulas de PLE, consigo em alguns momentos chegar a esse ponto de estranhamento, de reset linguístico. Enquanto ensino o português para os estudantes estrangeiros, percebo suas dificuldades e passo a entendê-los; estranho a minha pronunciação; tenho dúvidas de ortografia; percebo as especificidades de minha língua e também as suas lacunas. E então, passo a amá-la mais. Amo minha língua depois de ensiná-la como se ama mais a própria casa depois de viajar.

Outra perspectiva modificada foi a profissional. Pela primeira vez na vida sinto prazer genuíno em ensinar. Mesmo. Ao terminar as aulas, não me sinto cansado; ao chegar em casa, não fico ansioso para fazer planos de aula; ao me deitar para dormir, sinto entusiasmo ao saber que no dia seguinte estarei em sala de aula. Acho que só agora, depois de quase um ano como professor, estou curtindo de verdade dar aulas!

Sei que a situação é assaz excepcional: ensino algo de que gosto a pessoas que precisam aprendê-lo. Os estudantes imigrantes do programa do qual participo estão se preparando para uma prova para comprovar aptidão em língua portuguesa. Caso sejam aprovados, estudarão nos cursos que desejam. Caso não passem na prova, ou repetem as aulas de língua portuguesa (consumindo mais dinheiro estatal de seus países), ou voltam para suas casas familiares ― o que talvez os deixaria envergonhados. Só que essa possibilidade parece não ser cogitada. Aparentemente gostam das minhas aulas, pois permanecem focados e até se divertem!

Há algumas discussões sobre se é realmente necessário saber outras línguas além do português para dar aulas de PLE. Com as línguas estrangeiras que aprendi ou tenho aprendido ― como espanhol, inglês e francês ―,por muito tempo imaginei aproveitá-las para ensinar estrangeiros a falar português.

Creio que, se eu fosse monolíngue, haveria muito mais dificuldade de apresentar um conceito. Além disso, falante somente de uma língua, eu não entenderia como ocorre a aquisição de línguas. Saber outras línguas tanto facilita o ensino quanto o aprendizado da língua materna...

Textinho rápido, apenas para atualizá-los sobre o que tem me ocupado nas últimas semanas ― já que só relatá-lo pela página /now não seria suficiente ― e aquecer um pouco a escrita com algumas reflexões que o meu novo trabalho tem proporcionado. Sigam me lendo, e, caso tenham alguma coisa para comentar, não hesitem em me contatar pelo e-mail que está no rodapé desta publicação.

#cotidiano


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A partir da recomendação de uma tradição vinda do blogue do Rodrigo Ghedin, passarei a escrever um relato a cada novo aniversário meu. Hoje completo vinte e nove anos.

Sinto que me tornei um leitor “fluente” apenas neste ano. Só agora sou capaz de estar com um livro durante horas sem que isso me enfade ou entedie, ou sem que o livro se torne uma atividade a ser enfrentada, mas uma atividade de lazer ou de formação como qualquer outra. Levei dez anos para fazê-lo ― em 2014, aos 18 anos, comprei o primeiro livro de minha biblioteca.

O mais engraçado é que sou um estudante de Letras! Só de pensar que levei tanto tempo para estar confortável com os livros, tremo ao imaginar em como deverei formar a leitura de meus futuros alunos escolares ― se é que eu irei para esta área de trabalho...

Também sinto que me tornei um adulto somente neste ano. Agora consigo responder pelos meus atos, planejar melhor minhas coisas, ver as coisas e decidi-las por conta própria, bem como estar consciente de cada comportamento que deve ser tomado a cada situação.

Para tanto, houve um grosso investimento em psicoterapia, vida social saudável, como também em formação intelectual. Minha irmã mesmo, com quem já tive uma série de problemas no passado e que me via como uma criança, na última vez em que nos vimos, disse que eu estava mais maduro ― mudar a impressão que familiares têm de nós é uma raridade, vocês devem concordar...

Inclusive pela primeira vez na vida depois que saí da casa de meus pais, em 2016, estou em paz com meus irmãos. Já não procuro mais me comparar com eles. Não os trato mais como superego ― aquela voz misteriosa que sussurra uma censura, aquele fantasma que se projeta sobre a visão na hora agá de um vacilo.

O evento de aniversário em si infelizmente ainda me afeta. Não consigo ficar alegre ou minimamente otimista quando chega todo dia 22 de janeiro. Me sinto mais velho e mais atrasado. Além de que ainda não superei meus traumas com esta data. Não esqueci das vezes que as pessoas que eu amei fizeram pouco deste dia; nem da vez que, na expectativa de que meu pai fosse me fazer uma festa de aniversário, em vez disso, ele me pôs para trabalhar de graça em um restaurante que nem era seu.

Então pouco a pouco fui me desencantando com este evento. Hoje, durante meus aniversários, prefiro estar assim: sozinho com minhas palavras em uma cafeteria, na esperança de que ninguém lembre que neste dia eu nascera. O máximo que aceito é um e-mail de amigos que quero bem. Tem sido assim desde 2022.

Por outro lado, até que enfim consegui voltar a me arriscar no amor. A última vez foi em 2023, e tive vários problemas com calúnia e manipulação ― e isso em um relacionamento casual, que não durou duas semanas. Fiquei então um ano sem sair com ninguém, só voltando a conhecer mais pessoas no fim de 2024. Sempre fui um fracasso com a vida amorosa, porém creio que agora estou em condições de melhorar minha situação.

#cotidiano


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