Ideias de Chirico


cotidiano

Chovia no campus universitário. Em um banco de areia, logo abaixo de um beiral, concentrava-se uma poça d'água. Pin-pin-ga-gavam sobre ela gentis gotas de uma chuva recente. Nessa lagoinha, faziam-se ondas...

Enquanto caminhava ali perto, o percebi. Sobre o corredor central do campus, em um nível bem mais alto do que a poça, fiquei de cócoras, como fazem os bebês andantes. Observei, ouvi: som de goteira, ondas de pingos, reflexo do céu cinza sobre as águas. E, por um brevíssimo instante, lembrei do que é ser criança.

Fui uma criança introvertida. Quer dizer, eu encontrava alegria na solidão e também no ócio. Como consequência, na maior parte do tempo, estava acompanhado, não das pessoas, mas das coisas. Quando criança, as coisas tinham vida tanto quanto as pessoas.

Um certo quadro idílico da casa de minha avó me entreteu durante minhas visitas; nele, via-se uma criança loira vestida à moda europeia do pós-guerra; sentada sobre uma pedra, pescava à beira de um rio; em segundo plano, havia uma casa em estilo germânico tradicional, emoldurada por algumas montanhas ao fundo. Algumas vezes eu ouvia essas figuras silenciosamente me chamarem, outras, sentia que eu próprio estava dentro da paisagem.

Eu interagia não só com quadros, mas também com as estampas das mesas, com relógios de parede ruidosos, com imagens cristãs kitsch; também falava com as ilustrações nas paredes das escolas e nos livros didáticos, além de enfeites postos no quarto de dormir de meus irmãos. Também os brinquedos, claro, existiam como seres.

Creio que as crianças, assim como os artistas visuais, são privilegiadas por um olhar de “primeiridade”. “Primeiridade”, na teoria dos signos¹ de Peirce, é o primeiro estágio da consciência, no qual vemos as coisas sem associá-las a outras. Isto é, creio que tanto as crianças, quanto os artistas, conseguem ver o mundo por ele mesmo; são capazes de notar os objetos, mesmo os repetidos, sempre como novos.

Tive a sorte de ter tido uma infância introspectiva e também de ter sido um artista visual. Aos 19 anos, enquanto estudava desenho realista, retratei tudo o que tocasse meus olhos: rosas, edifícios, gente. Não importava o que eu desenhasse, o objeto a ser desenhado era um signo precioso, no qual eu deveria imergir ― como eu imergia nos objetos que eu via durante a infância.

Enquanto eu observava a poça d'água no campus, às vezes eu era tentado a pensar, por exemplo, em como a cidade estava alagada, despreparada para a chuva, em como ela atrapalhava os planos das pessoas. O exercício de metonímia, de tomar a parte pelo todo, de ver em um sutil detalhe um grosso problema estrutural, pode até ser cientificamente importante, mas nos afasta da contemplação do presente.

Afinal, por que, conforme envelhecemos, esquecemo-nos de como observar? O adulto não vê o mundos; ele o pensa. Ao me inclinar próximo àquela poça d'água, já não via mais o seu reflexo; nele, reflito sobre um problema que lhe é exterior. Signo e referente imiscuem-se. Visão e pensamento intrometem-se.

Ser adulto é não mais se espantar naturalmente. Por conta do repertório de espanto, adquirido a custosos traumas, estou mais preparado para as intempéries; por outro lado, não vejo mais o que estou vendo, nem penso mais o que estou pensando. Agora vejo e penso, de modo que o que vejo não é o que vejo, e que penso não é o que penso. É como se fossem dois signos sobrepostos, uma espécie de ideograma chinês viciado, sem poesia.

No entanto, também há alguma relação ― quase simbiótica ― entre o olhar da ”retina anatômica” e o olhar da “retina mental” (em termos do poeta Ezra Pound). O período em que comecei a desenhar em estilo realista coincidiu com aquele em que comecei a ler livros. O contorno dos desenhos que eu fazia influenciavam a forma com a qual eu imaginava as personagens dos livros; por vezes eu chegava a desenhar uma cena literária apenas para torná-la mais evidente. Olhar e imaginação cresciam juntos, como músculo e osso.

Tenho a impressão de que, junto à aquisição de um olhar mais “puro” diante das coisas, ganha-se uma imaginação mais fértil; me parece que, à medida que eu melhorava meu desenho, imaginava melhor. A partir desse raciocínio, pode parecer baixa a relação entre a imaginação e a idade, e que aquela está mais ligada ao meio e à educação de quem observa do que o quão velho ele está.

Penso que, mais importante ainda do que uma visão externa mais “limpa” ― livre de racionalizações mais ou menos arbitrárias e intrusivas ―, é a visão interna mais “limpa”, isto é, uma auto-observação mais meditativa; uma visão em primeiridade de quem está vendo a si mesmo. A partir de uma auto-observação em estágio de primeiridade, podemos nos perceber como novos indivíduos.

Meditar é, entre outras coisas, observar a si mesmo como fazemos com nuvens, as ondas do mar ou o movimento das ruas, a fim de nos conhecermos. Observando-se dessa forma, é possível um olhar intrapessoal tanto menos autocomplacente quanto menos exigente e também manchado pela visão externa que guardamos conosco.

Livre do jugo do danoso superego, esse já não seria um olhar adulto, mas um olhar pós-adulto.

¹ = “Signo” aqui quer dizer “Uma coisa que está no lugar de outra”, como assim define o poeta e semioticista Décio Pignatari. Tudo o que representa são signos, ou pode-se mesmo dizer que todas as coisas são signos: as nuvens, o relógio, uma pintura abstrata.

#cotidiano


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Sala de aula. Várias cadeiras com o assento de cor laranja. Ao fundo , uma lousa para pincel. Ao redor, nas paredes, há bandeiras de vários países.

Sala de aula na qual darei aulas de português para estrangeiros durante este ano de 2025.

Um texto diferente do que tenho publicado. Apenas quero compartilhar algumas coisas que tem me acontecido.

Na última segunda-feira, dia 10 de fevereiro, passei a ministrar aulas de português como língua estrangeira (PLE), ofertadas em um projeto de extensão da Universidade Estadual do Ceará. Esse era um projeto que eu almejava há muito tempo e que só agora o pude realizar.

O que era para ser um mero projeto de extensão para pagar minhas contas e oferecer uma experiência extracurricular (na faculdade não temos cadeira de ensino de PLE), passou a modificar minha perspectiva sobre vários assuntos, a começar pela perspectiva sobre a minha própria língua.

Por muito tempo, principalmente nos primeiros anos do curso de Letras Vernáculas, imaginei algum método de estranhar a língua portuguesa. Como assim? Eu queria olhá-la, lê-la, falá-la como um estrangeiro, como se nunca tivesse a visto antes. Esse desejo vinha sobremaneira dos meus experimentos com poesia concreta ― em alguns deles eu queria tornar a língua portuguesa um “ícone puro”, uma forma sem conteúdo (ou, como dizia sabiamente Décio Pignatari, tornar a língua portuguesa uma linguagem...)

Creio que quando dou aulas de PLE, consigo em alguns momentos chegar a esse ponto de estranhamento, de reset linguístico. Enquanto ensino o português para os estudantes estrangeiros, percebo suas dificuldades e passo a entendê-los; estranho a minha pronunciação; tenho dúvidas de ortografia; percebo as especificidades de minha língua e também as suas lacunas. E então, passo a amá-la mais. Amo minha língua depois de ensiná-la como se ama mais a própria casa depois de viajar.

Outra perspectiva modificada foi a profissional. Pela primeira vez na vida sinto prazer genuíno em ensinar. Mesmo. Ao terminar as aulas, não me sinto cansado; ao chegar em casa, não fico ansioso para fazer planos de aula; ao me deitar para dormir, sinto entusiasmo ao saber que no dia seguinte estarei em sala de aula. Acho que só agora, depois de quase um ano como professor, estou curtindo de verdade dar aulas!

Sei que a situação é assaz excepcional: ensino algo de que gosto a pessoas que precisam aprendê-lo. Os estudantes imigrantes do programa do qual participo estão se preparando para uma prova para comprovar aptidão em língua portuguesa. Caso sejam aprovados, estudarão nos cursos que desejam. Caso não passem na prova, ou repetem as aulas de língua portuguesa (consumindo mais dinheiro estatal de seus países), ou voltam para suas casas familiares ― o que talvez os deixaria envergonhados. Só que essa possibilidade parece não ser cogitada. Aparentemente gostam das minhas aulas, pois permanecem focados e até se divertem!

Há algumas discussões sobre se é realmente necessário saber outras línguas além do português para dar aulas de PLE. Com as línguas estrangeiras que aprendi ou tenho aprendido ― como espanhol, inglês e francês ―,por muito tempo imaginei aproveitá-las para ensinar estrangeiros a falar português.

Creio que, se eu fosse monolíngue, haveria muito mais dificuldade de apresentar um conceito. Além disso, falante somente de uma língua, eu não entenderia como ocorre a aquisição de línguas. Saber outras línguas tanto facilita o ensino quanto o aprendizado da língua materna...

Textinho rápido, apenas para atualizá-los sobre o que tem me ocupado nas últimas semanas ― já que só relatá-lo pela página /now não seria suficiente ― e aquecer um pouco a escrita com algumas reflexões que o meu novo trabalho tem proporcionado. Sigam me lendo, e, caso tenham alguma coisa para comentar, não hesitem em me contatar pelo e-mail que está no rodapé desta publicação.

#cotidiano


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A partir da recomendação de uma tradição vinda do blogue do Rodrigo Ghedin, passarei a escrever um relato a cada novo aniversário meu. Hoje completo vinte e nove anos.

Sinto que me tornei um leitor “fluente” apenas neste ano. Só agora sou capaz de estar com um livro durante horas sem que isso me enfade ou entedie, ou sem que o livro se torne uma atividade a ser enfrentada, mas uma atividade de lazer ou de formação como qualquer outra. Levei dez anos para fazê-lo ― em 2014, aos 18 anos, comprei o primeiro livro de minha biblioteca.

O mais engraçado é que sou um estudante de Letras! Só de pensar que levei tanto tempo para estar confortável com os livros, tremo ao imaginar em como deverei formar a leitura de meus futuros alunos escolares ― se é que eu irei para esta área de trabalho...

Também sinto que me tornei um adulto somente neste ano. Agora consigo responder pelos meus atos, planejar melhor minhas coisas, ver as coisas e decidi-las por conta própria, bem como estar consciente de cada comportamento que deve ser tomado a cada situação.

Para tanto, houve um grosso investimento em psicoterapia, vida social saudável, como também em formação intelectual. Minha irmã mesmo, com quem já tive uma série de problemas no passado e que me via como uma criança, na última vez em que nos vimos, disse que eu estava mais maduro ― mudar a impressão que familiares têm de nós é uma raridade, vocês devem concordar...

Inclusive pela primeira vez na vida depois que saí da casa de meus pais, em 2016, estou em paz com meus irmãos. Já não procuro mais me comparar com eles. Não os trato mais como superego ― aquela voz misteriosa que sussurra uma censura, aquele fantasma que se projeta sobre a visão na hora agá de um vacilo.

O evento de aniversário em si infelizmente ainda me afeta. Não consigo ficar alegre ou minimamente otimista quando chega todo dia 22 de janeiro. Me sinto mais velho e mais atrasado. Além de que ainda não superei meus traumas com esta data. Não esqueci das vezes que as pessoas que eu amei fizeram pouco deste dia; nem da vez que, na expectativa de que meu pai fosse me fazer uma festa de aniversário, em vez disso, ele me pôs para trabalhar de graça em um restaurante que nem era seu.

Então pouco a pouco fui me desencantando com este evento. Hoje, durante meus aniversários, prefiro estar assim: sozinho com minhas palavras em uma cafeteria, na esperança de que ninguém lembre que neste dia eu nascera. O máximo que aceito é um e-mail de amigos que quero bem. Tem sido assim desde 2022.

Por outro lado, até que enfim consegui voltar a me arriscar no amor. A última vez foi em 2023, e tive vários problemas com calúnia e manipulação ― e isso em um relacionamento casual, que não durou duas semanas. Fiquei então um ano sem sair com ninguém, só voltando a conhecer mais pessoas no fim de 2024. Sempre fui um fracasso com a vida amorosa, porém creio que agora estou em condições de melhorar minha situação.

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Há muito tempo, quando frequentei o Twitter, me incomodava a quantidade de vezes com que o tuiteiro médio recorria a si mesmo em suas postagens. Com essa consciência, fiz uma promessa para mim mesmo: nunca falaria de mim em redes sociais. Com o tempo, fui vendo que, ao contrário do que imaginava, é possível, sim, escrever um texto interessante tendo a si como ponto de partida.

Além disso, falar de outra pessoa, de certo modo, é também falar de nós mesmos, pois isso denuncia como essa figura nos influenciou ou por que ela nos é relevante. Há uma frase atribuída ao poeta francês Arthur Rimbaud que diz: “Mim é um outro” ― considerando a adaptação para este scherzo, claro.

Ultimamente tenho pensado em textos intitulados scherzo, que faria pelo prazer de escrever, trabalhando sobre algum aspecto estético. Já pensei em redigir um scherzo todo feito na dashboard do blogue, feito de uma sentada só; ou outro somente com palavras iniciadas com a letra “p” ou com a letra “a”; ou ainda outro no qual é vetado o uso do verbo “ser”. Mas me faltava o ímpeto. Enquanto lia na cama “On writing”, de Stephen King, aceitei o autodesafio de escrever sobre mim mesmo sem recorrer ao primeiro pronome pessoal no singular do caso reto ― vocês sabem qual.

Estou sendo café-com-leite neste mesmo scherzo porque me dei a permissão de escrever verbos em primeira pessoa, bem como a de utilizar pronomes possessivos da primeira pessoa ― o que forçosamente acusam o “mim”. Pode ser que em outro scherzo me dê a doida e exclua de todo o texto esses recursos gramaticais ― o que provavelmente daria uma bela tralha acadêmica, com o convencional abuso do pronome apassivador mesmo ao se falar de experiências pessoais, como em “Percebeu-se uma grande dor no cotovelo direito”.

Por que os scherzos? Porque precisava de algum estímulo de escrita enquanto alguma ideia séria de texto não surgia. Queria algum artifício análogo ao improviso para a música ou o croqui para o desenho, um exercício de linguagem que impulsionasse a expansão de seu campo de possibilidades e que pudesse ser feito despretensiosamente, em uma tarde de domingo, só pelo puro prazer. Em algum outro texto destas Ideias de Chirico devo ter escrito que a prosa é uma linguagem que não permite naturalmente que possamos escrever pelo mero prazer de escrever...

Scherzo significa “jogo” ou “brincadeira” em língua italiana; também é um movimento musical da música erudita, uma parte da peça musical desenrolada velozmente. Da mesma forma, tento escrever com a maior velocidade possível.

Este que vos escreve poderia muito bem também escrever um texto avulso sobre si mesmo, copicolá-lo em um Gepetto qualquer desses desta onda de IA e pedir-lhe para que retire todos os pronomes pessoais. Como parte do jogo, estou escrevendo a primeira versão deste texto na minha querida Remington 15, sem chance sequer de utilizar o backspace. O limite de páginas? Quem sabe. Bref. Tenho falado de tudo, menos de mim. Como este será o primeiro texto que publico no ano, falarei sobre o meu Réveillon.

Virei o ano de 2024 para o de 2025 na casa de minha cunhada, junto com meu irmão e alguns de seus amigos. Estive muito indeciso nesta opção porque aquele fora um espaço no qual passei uma parte não muito agradável da pandemia. Mas ou era isso, ou atravessar um mar de gente na festa pública na praia de Fortaleza, longe de casa e sob os perigos noturnos.

Outro motivo que me fez optar por reveillar indoors foi a própria presença do meu irmão, que atualmente mora nos Estados Unidos, trabalhando com pesquisa na área de produção animal. Só posso vê-lo uma vez ao ano, quando muito duas. Como estaremos longe um do outro em breve ― voltará lá para cima em meados de janeiro ―, preferi ficar com ele. Os amigos e familiares que moram próximo e que foram à praia poderiam esperar...

Nesta virada de ano fiz coisas comuns, mas que não costumo fazer. Imaginem o quê? Dançar e cantar. Depois da virada, me apareceu uma mulher, amiga de minha cunhada, que me puxou para dançar. Como se fala em “Promessa ao amanhecer”, “O que uma mulher quer, Deus também quer”. Mesmo sem ter dado um passo de forró na vida, aceitei o desafio de aprender a dirigir com o carro andando. Não me saí mal, mas, de qualquer modo, ainda bem que não houve registros da festa ― não que se saiba.

Ao pé da varanda da casa, os anfitriões montaram um pequeno espaço com projetores de tela, caixa de som e microfones. Ou seja, montaram um palco de karaokê! Como já dava meia noite e meia, como ninguém começara a cantar, e como a cerveja já esquentava na barriga, tive a iniciativa de cantar uma das poucas músicas que sei de cor: “Bella Ciao”. Não, não a aprendi por conta de La casa de papel. Sim, sei língua italiana e a cantei fora do tom. Mas como “Bella ciao” é cantada em estádios de futebol italianos por torcidas antifa, me senti confortável ao desafinar.

Desta vez tentei contrastar a experiência do Réveillon do ano passado, que passei involuntariamente sozinho por vários motivos, entre os quais a falta de férias no trabalho que eu tinha então. Como não foi uma boa, decidi fazer o oposto daquilo, e brincar enquanto boa parte das pessoas do mundo também brincavam.

Certas datas festivas, como Natal e Carnaval, consigo atravessar sozinho. Nunca gostei das alegrias planejadas desses dois dias. Não é o caso do Ano Novo. Desde criança me acostumei a sair com a família e com amigos para ir a algum lugar aberto, onde se possa ver fogos de artifício, rir e beber cerveja. Meu organismo já está programado para fazê-lo na primeira hora de todo ano.

Acho que já está bom por este scherzo. Na hora da revisão, espero não ter perdido o jogo mais vezes do que esperava enquanto escrevia. Obrigado pela leitura e feliz Ano Novo!

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Três desenhos feitos por crianças, que estão sobrepostas sobre uma mesa de madeira gasta.

Sempre foi um sonho meu ser desenhado. Por outra pessoa. Sim, porque no período mesmo em que aprendia a desenhar, eu próprio fiz autorretratos. Mas, para mim, ter a própria imagem feita por outros era um grande sinal de admiração. Não é (tanto) este o caso quando o desenhado e o desenhista são a mesma pessoa...

Claro, autorretratar é um ótimo exercício de autoanálise. Mil autorretratos, no entanto, podem não elevar a autoestima de quem desenha. Talvez fosse essa pequena ponta de carinho que eu gostaria de ter!

Mas aí o destino me fez professor escolar de Língua Portuguesa e agora com frequência sou modelo de meus alunos, que volta e meia me presenteiam com um desenho. Nos últimos seis meses de aula, recebi pelo menos três desenhozinhos ― além de recadinhos. Como forma de agradecimento a eles, nesta publicação analisarei suas artes. Para preservar suas identidades, os nomes abaixo são fictícios.

Toca o Vivaldi, DJ!

“Arlon, 04.04.24”, arte de Paula Benevides.

Desenho feito por uma criança. É o retrato de um homem jovem de barba e cabelos curtos. Está feito em estilo mangá.

Nem todos os autorretratos de Rembrandt juntos atingiriam a profundeza que esta obra de Paula Benevides, estudante de 14 anos, atinge. Em papel pólen 70 g/m², com a gramatura alta o suficiente para suportar uma boa camada de grafite, “Arlon, 04.04.24” é uma obra prima da arte discente. O modelo, autodeclarado branco, foi retratado com traços indígenas ― olhos puxados, cabelos lisos, lábios finos ―, um fenótipo muito presente na população do Ceará. Isso implicaria em uma dívida geracional aos povos originários ― “todos somos descendentes de indígenas”?

A figura retratada mostra uma aparente apatia frente ao que está diante de si (sua presença demarcada pela penumbra sobre os olhos); isso, no entanto, só disfarçaria sua segurança, similar ao de um atleta olímpico diante de uma prova decisiva ― o modelo é posto de frente ao observador provavelmente para provocar este efeito.

Nesta obra enfatizaram-se os ombros, denotando estabilidade. Para a artista, o modelo é uma figura de autoridade, mas que flutua ― não se vê seus pés. Apenas um Velásquez pintando a família real espanhola seria capaz de tamanho feito.

É possível notar a influência das iluminuras japonesas, bem como a arte contemporânea do mangá, o que torna a obra de Paula Benevides um ícone da arte pop brasileira...

“04/06/24 Arlon”, de Eddy Leite.

Desenho feito por uma criança. É o retrato de uma figura masculina de óculos, camiseta e calças. Está em estilo de cartum.

Traço näif, humor, simplicidade e objetividade: essas são características da primorosa arte de Eddy Leite, estudante de 11 anos, que acaba de despontar em sua promissora carreira através de “04/04/24 Arlon”.

Se por um lado Paula (acima) e Patty (abaixo) preferiram expor closes do modelo, Eddy, detalhista desenhista, preferiu “montar todo o mosaico”, e trabalhou com astúcia movido por seu cubista instinto de mostrar o objeto observado em sua plenitude, buscando não esconder um traço sequer do expectador.

Todas as partes do corpo da figura têm a mesma medida, vejam vocês! Em vez de um corpo de proporção de oito cabeças ― como manda a Academia de Belas-Artes ―, Eddy, conscientemente disruptivo e em um claro protesto contra essa instituição, preferiu desenhá-lo na proporção de três cabeças. Ainda assim, sua obra é muito mais precisa do que o mais acurado afresco de Leonardo da Vinci. Neste momento ― tenho certeza ―, as mais aclamadas salas de aula de desenho acadêmico em Paris devem estar confusas, necessitando de rever toda a sua teoria de anatomia...

Ao contrário das demais artes expostas nesta publicação, Eddy fez o modelo não como alguém que pretende algum confronto, mas como alguém que, diante das intempéries da vida, não se mostra abalado. Notem que, enquanto todo o corpo do modelo possui rugas e marcas de movimento, seu rosto segue liso como bumbum de bebê.

“Prof. Arlon. 'Eu sei que não ficou nada a ver, mas to tentando'”, arte de Patty Ferreira.

Desenho feito por uma criança de uma cabeça de cabelos curtos e óculos. A orelha esquerda tem um pequeno buraco no lóbulo.

Esta obra foi realizada por Patty, uma estudante de 11 anos, e é um grafite sobre papel ofício 65 g/m², entregue em um caprichado envelope artesanal de material igual ao da obra.

Patty, na incrível altura de seus 11 anos, já demonstra um excepcional domínio de sua ferramenta artística: o lápis hexagonal de ponta de grafite, da fabricante Bic. A figura central desta obra foi retratada com a dor honesta de um combatente da Segunda Guerra Mundial ou da Guerra do Vietnã ― é possível até mesmo notar pequenas gotas de lágrima em volta dos olhos (ou seriam talvez reflexos de luz ao fim do túnel desta vida que é ser professor?).

A boca de dentes plenamente cerrados denotam um momento de aflição (algo que o deixa como “um goleiro na hora do gol”, como dizia Belchior) ― alguma incompreensão por parte da turma, alguma desobediência, falta de cooperação por parte do estafe escolar? Patty nos convida a terminar de compor este quadro que, com toda a certeza, já ocupa o rol dos cânones ocidentais...

Seu traço é frenético, mas mostra domínio das proporções do rosto humano. Sua direta menção à arte grega do escorço é por demais notável, máxime por sua multidirecionalidade. Além disso, Patty é claramente uma adepta da escola de expressionismo alemão, pois que carrega o frenesi de um Wols, o desespero de um Egon Schiele e a melancolia de uma Käthe Kollwitz.

Os signos que Patty nos fornece são feitos aos mínimos traços: duas linhas formam a orelha, outras duas delineiam o nariz, dois círculos fazem os óculos etc., uma atitude típica de quem entendeu as maiores lições da Escola Bauhaus de design ― “Menos é mais”.

Claramente uma obra que fará demasiado burburinho nos principais museus de arte europeus, como o Centro Pompidou, e que, por conta de sua irreverência deveras singular, circulará bastante pelas principais colunas de arte dos Estados Unidos, como o da New Yorker.


#cotidiano

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Foto da silhueta de alguns postes de luz contra a luz do final da tarde. No céu, degradês em lilás, amarelo e azul escuro.

Entardecer em Fortaleza. Foto minha.

Como ando meio sem ideia do que publicar, eis um compilado de postagens do meu microblogue Akkoma, conversas de e-mail, ivesdropes e outros fragmentos de pensamentos que não renderiam uma publicação, mas que valem a pena compartilhar, além de eventuais recomendações.

Sobre o estado das Ideias de Chirico

Com frequência tenho um desejo de escrever ― sem saber o quê. É mais uma vontade de escrever por escrever ― como se assovia em vez de cantar. Uma pena que não dá para fazer “estudos” com escrita, como se faz com pintura por exemplo, ou “improvisos melódicos” como com um instrumento musical. Às vezes o que quero é escrever só pelo prazer de linguagem.

Ter um blogue tem me ensinado que a visibilidade vem através do tempo, e não através de um só espaço, e que às vezes ela não apresenta sinais ― como curtidas e compartilhamentos. Blogar tem me educado a não desanimar quando as coisas publicadas não causam “ruído” de primeira.

O que interessa é você deixar pontes visíveis para a sua produção. Sejam hashtags ou hiperlinkagens, se há pontes, as pessoas vão circular por ali.

Veículo para vídeos curtos

Assistir a vídeos curtos pelo computador é dez vezes melhor do que assistir pelo telefone. Assim dá para dividir a tela em duas, deixar o feed em um lado, e outra aba em outro, onde se pode pesquisar alguma recomendação ou abrir algum perfil enquanto o vídeo roda. Acho também que assim me sinto menos preso. Recomendo bastante.

National rock

Nomes de bandas brasileiras de pop-rock ― meio desprezadas ― escritos em inglês soam como qualquer outra banda estadunidense que o povo paga pau por aí:

New Cloth;

Initial Capital;

Assassins Mamonas;

Urban Legion;

Hawaii's Engineers;

Red Baron;

The Success' Mudguards

Twenty Two CPM.

Please, come to Brazil ― and make money!

Estava ouvindo o pessoal do podcast mimimídias ― aqui o corte do episódio ― falando sobre a nova música do Offspring, Come to Brazil, e Clara Matheus falou uma coisa que faz sentido.

Uma vez que o público brasileiro engaja em publicações de gringos falando sobre o Brasil (essa coisa toda de Brazil mentioned), agora os artistas internacionais, caso estejam precisando de uma grana, na dúvida metem o nosso país em uma nova produção.

Essa música do Offspring por exemplo parece ser puro suco de turismo barato, coisa de quem só ouviu falar do Rio de Janeiro, de mulher bonita, caipirinha, churrasco, samba etc.

Ouvir o mundo falar do Brasil é legal, mas tem de se ver se é um movimento genuíno, de alguém que conhece o país, e se, afinal, não é uma forma de nos transformar em massa de manobra para descolar um cachê...

E-mail para o Professor Pasquale

Religiosa e diariamente acompanho “A Nossa Língua de Todo Dia”, programa da Rádio CBN que ouço via podcast, apresentado pelo lendário Professor Pasquale. Neste programa, Pasquale responde, de segunda à sexta, a dúvidas de gramática. Como forma de ilustrar as regras gramaticais, ele roda ótimas músicas ― ou, como ele chama, “auxílios luxuosos”.

Em meados de setembro enviei uma mensagem na qual, além de pedir a solução de uma dúvida, também comentei sobre outro boletim seu, cujo título era “É correto aplicar o plural em frases que citam o número zero?” ― aqui o episódio. Aí, Pasquale faz uma confusão sobre a ironia em construções, muito comum entre a juventude, do tipo “Tal notícia surpreendeu um total de zero pessoas”, aplicando a mais rançosa das gramáticas normativas.

No começo deste mês de outubro, Pasquale respondeu minha dúvida. Entretanto, por uma questão de economia de tempo, não leu o meu comentário a respeito de sua má interpretação sobre construções com “zero”. Como forma de pôr a discussão para frente, aqui vai o meu e-mail na íntegra:

Boa tarde, professor Pasquale e equipe CBN! Quem escreve outra vez Arlon de Serra Grande, aquele que enviou a pergunta do programa do dia 7 de junho, sobre o uso do verbo ser em “Deus é contigo”. Antes de fazer minha nova pergunta, gostaria de dar meus dois centavos sobre a dúvida/discussão levantada no programa do dia 29 de agosto, a respeito de expressões com “zero”.

Expressões do tipo “O evento recebeu zero pessoas”, “Estou estagiando com a remuneração de zero centavos” etc., são muito comuns entre a geração de cristal (também conhecida por geração Z) e pode entrar no rol das expressões figurativas, logo, não deve ser lida de modo literal.

Me explico: quem o diz provavelmente tem plena consciência de que as palavras seguidas de zero não são flexionadas no plural. Ainda assim essa pessoa o faz para enfatizar a ineficácia ou a frustração de um evento esperado. Tanto é que em geral, quando as pessoas falam essa expressão, sublinham-na com o tom da voz: “Eu estou ganhando duro e ganhando ZERO centavos por isso, acredita?”.

Há ainda outra expressão neste formato: “A nossa festa recebeu um total de zero pessoas”. Ora, quando se fala de “total”, fala-se de soma, mas a expectativa de que há alguma quantia somável é quebrada pelo “zero”, que é ainda enfatizada pelo plural cinicamente flexionado. Então, dito isso, defendo que essa construção de suposto desvio é consciente, fruto de sarcasmo.

À parte disso, gostaria de lhe perguntar sobre outra coisa. Tenho percebido que há uma série de palavras em LP terminadas em “bundo”. Sua significação é quase que intuitiva para o falante. Por exemplo:“furibundo” é aquele que está com fúria; “meditabundo” é aquele que medita, ou que está pensativo; “moribundo” é aquele que está por morrer. Não nos esqueçamos ainda do conhecidíssimo “vagabundo”, aquele que vaga, que é associado ao ócio.

Mas, afinal, de onde vem e o que significa esse “bundo” grudado nessas palavras? Por que há variações dessas palavras mais simplificadas, como “furioso” e “meditativo”? Faço essa pergunta porque sei que você é uma figura muito afeita à filologia (ciência também conhecida como linguística histórica ― cuidado para não pronunciarem “linguiça”, hein!), e dúvidas filológicas são difíceis de serem sanadas através da internet.

É tudo. Se não for pedir demais, gostaria de que mandassem um abraço a Yuri Bravos, grande companheiro da internet fediversal, também daqui de Fortaleza, e, assim como eu, ouvinte assíduo da Nossa Língua de Todo Dia.

Abraços!

Readymades de ônibus

Frases roubadas de pichações, conversas, telas de telefone ou outras quase-interjeições que ouvi/li enquanto tomava condução coletiva.

“Vivo isso, não disso”.

“Prefiro me vestir igual um mendigo do que ficar igual um mendigo depois”.

“Não tenha medo de peidar enquanto mija ― não há chuva sem trovão. Mas cuidado com o deslizamento de terra...”.

“Não estou dizendo nada, só estou falando”.

#cotidiano #notas


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Imagem de uma folha em branco com uma lapiseira ao lado sobre uma mesa de madeira.

Após apresentar “O Pequeno Príncipe” de Saint-Exupéry à turma de 7° série, o professor de redação pediu-lhes para que apresentassem uma síntese do livro. O único comando que ele dispôs no quadro negro foi “Escrevam apenas o essencial da história”.

Enquanto toda a sala rascunhava rapidamente sobre seus papéis, o pior aluno entregou uma folha em branco. O professor, contrariado, indagou do que se tratava aquilo. E o aluno timidamente respondeu:

― Professor, é que eu aprendi com o Pequeno Príncipe que

O essencial é invisível aos olhos.

Este aluno recebeu a melhor nota da turma.

#cotidiano #notas


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Imagem: desenho de Kurt Vonnegut. Fonte: Flashbak.com.

A quick one.

No começo do ano, abri este espaço como uma forma de desencanar minha escrita.

Ávido por escrever, mas cansado de enviar textos para zero pessoas pelo Instagram ― uma rede hostil by-design ao texto ―, e cansado de fazer textos na faculdade para uma só pessoa ler ― meu professor ―, vi no Fediverso uma vazão para meus textos.

Devo assumir que não estou satisfeito com a maneira com a qual isto tem caminhado. Não penso tanto em temas, nem em frequência de postagens ― é natural que um blogue não publique assiduamente ―, mas em estilística.

Uma de minhas preocupações quanto à forma é o problema de alinhar meu estilo ― naturalmente academicista e prolixo ― a temas ordinários ― rotina, tecnologia e arte ― com texto direcionado ao maior número de pessoas possível.

Ao abrir estas Ideias, me inspirei em blogues como os de Rodrigo Ghedin, de Kris De Decker e de Lionel Dricot, tanto visualmente ― todos em html quase puro ―, quanto estilisticamente: apesar de terem um estilo de escrita bem polido, são capazes de escrever de forma interessante para o público geral sobre o seu assunto principal ― tecnologia. Não estou confiante ainda de que estou neste caminho.

Ao fim e ao cabo, não sei sequer porque escrevo este blogue! De início, meu propósito era escrever ensaios. No entanto, cada vez mais me vejo distante desse gênero textual. No meu último texto mesmo, a fim de “ensaiar um ensaio”, fiz uma trapaça tremenda quanto às citações que, se vocês soubessem, ficariam enojados...

Além disso, gostaria de promover um canal de comunicação para o leitor geral destas Ideias. O Fediverso é muito receptivo ao que escrevo, no entanto gostaria de saber também o que pessoas que vêm de outros lugares têm a dizer. Tenho pensado em fazer o e-mail ser este canal. Falta saber só como provê-lo com segurança dentro da estrutura deste blogue.

É tudo. Espero que compreendam minha necessidade de expôr o que tem me passado, e que a experiência lance luz sobre como o superar.

#cotidiano #notas


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Capa de “Clássico anticlássico”, de Giulio Carlo Argan.

Dos tempos em que cursei arquitetura, pelos idos de 2017, ainda lembro de um livrinho que a professora de História da Arte e Arquitetura recomendou como leitura complementar sobre Maneirismo. Tratava-se de “Clássico anticlássico”, do historiador italiano Giulio Carlo Argan.

Como já diz o seu subtítulo ― “O Renascimento de Bruneleschi a Bruegel” ―, “Clássico anticlássico” contempla a arte e a arquitetura do Renascimento e também do Maneirismo ― o entr'acte entre o Renascimento e o Barroco.

Mas não é sobre arte propriamente que quero escrever, mas sim desse precioso paradigma que Argan inaugurou: “Clássico anticlássico”. Clássico anticlássico! A tradição que nega a si, mas que, ao mesmo tempo, gira em torno de si. A tese-antítese ― sem síntese. Isso me evoca quase que instantaneamente aquela figura do cachorro que corre atrás do próprio rabo sem, no entanto, mordê-lo.

Em um certo prisma, podemos ler o “Clássico anticlássico” como o establishment que, com propósitos mais ou menos escusos, surge em momentos de crise como antiestablishment a fim de se afirmar como solução prática e definitiva para um problema estrutural e complexo. São os Collors, os Bolsonaros e os Mileis da vida.

Mas também, por outro prisma, entrevemos no paradigma do “clássico anticlássico” a genialidade do criador que soube manobrar uma cultura remota ao tempo presente sem lançar mão da nostalgia ou do reacionarismo estético, mas sim captar “de um belo olho velho a flama invicta” ― como escrevia o poeta Ezra Pound em um de seus Cantos. São os Joyces, os Chomskys e os Andrades ― “Passado é lição para refletir, não repetir”, é uma frase atribuída a um dos modernistas de 1922.

Como não sei se essas possibilidades de leitura do paradigma arganiano estão claras para o leitor, vou ilustrá-lo a seguir com alguns exemplos nos quais substituo “clássico” por outra palavra, exemplos que tenho coletado com o passar dos anos ou que me ocorreram durante a escrita deste texto. Lembrem-se, porém, que este é um work in progress, logo, eventualmente irei atualizar esta lista à medida que mais exemplos surgirem...

Clássicos anticlássicos: 1. arte antiarte: Marcel Duchamp; 2. político antipolítico: Jair Bolsanaro ― um “clássico anticlássico” por excelência; 3. música antimúsica: John Cage; 4. trabalhador antitrabalhador: o pobre de direita; 5. poesia antipoesia: Décio Pignatari e os demais concretistas; 6. intelectual anti-intelectual: Olavo de Carvalho; 7. prosa antiprosa: James Joyce em seu “Finnegans”; 8. brasileiro antibrasileiro: o brasileiro; 9. Estado antiEstado: Javier Milei, Collor de Mello, Margaret Thatcher etc., etc., etc. 10. homem anti-homem, branco antibranco, hétero anti-hétero etc.: o esquerdomacho.

Durante os tempos de isolamento social da Covid-19, no período de atos contra o então presidente Bolsonaro, rolava pela internet um template da Ação Antifascista, no qual as pessoas escreviam qualquer profissão, ocupação livre ou identidade específica seguida de “antifascista”. Desse template surgiu uma infinitude de memes do tipo “calvos antifascistas”, “agiotas antifascistas” e coisas que tais. Ocasionalmente surgiu um “fascista antifascista”. Como não consegui pensar em alguém que se enquadrasse nesse exemplo de “clássico anticlássico”, convido vocês a pensarem em um “fascista antifascista”.

(Continua...)

#cotidiano #cultura


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Imagem em preto e branco de um campo de futebol visto de trás das grades.

Campo de futebol no bairro Messejana de Fortaleza

Nos últimos meses tenho fotografado em preto e branco através de um esmartefone Motorola e20. O aparelho funciona perfeitamente bem e as fotos não passam por filtros ou edições. Não a princípio. Apenas as vejo em primeira mão por uma tela sem cores. Tenho experimentado usar meu aparelho com as cores de sua tela desativadas. Que se tenha claro desde já que fazê-lo não interfere no arquivo final da fotografia. Somente a visualização das fotos pelo esmartefone fica em preto e branco ― seu arquivo permanece em cores.

No link acima citado, do Manual do Usuário, há algumas razões que me convenceram de não usar meu aparelho com tela colorida. Em uma publicação futura, detalharei todas elas e também os benefícios práticos que obtive. Neste texto me concentrarei apenas na vivência de fotografar com essa configuração.


Somente a visualização das fotos pelo esmartefone fica em preto e branco ― seu arquivo permanece em cores.


Meus companheiros do Fediverso sabem que tenho um espaço dedicado para compartilhar fotos dentro do protocolo Activity Pub. Por ora, no entanto, gostaria de, além de expôr as imagens, discutir alguns efeitos que a ausência de cor provoca no processo de suas capturas.

Processo de “revelação”

Foto em preto e branco de um homem barbudo, de toca e camiseta pretas fumando em uma varanda cuja visão dá para os edifícios altos de uma cidade.

Rafaboy fumando em uma varanda do bairro Meireles de Fortaleza. Os edifícios e os corpos humanos caem bem em preto e branco.

Alguns dos efeitos imediatos de não ver a foto colorida imediatamente após a captura são a ritualização do processo fotográfico e a valorização das cores ― ou de sua ausência.

Nos primeiros dias, ao tirar uma foto pelo celular, eu ficava ansioso para subi-la para a nuvem, a fim de ver por outro dispositivo como ela ficava em cores.

Essa vivência de fotografar “às cegas”, sem ter ideia imediata do resultado final, me lembrou daqueles que trabalham com equipamentos fotográficos analógicos, que só podem ver o produto de seus cliques após semanas, meses ou mesmo anos, através de uma revelação dos filmes em sala escura.

Claro, ao contrário da revelação de filmes analógicos, o meu processo de “revelação” é gratuito, rápido e prático, dependendo só de outro dispositivo com uma tela colorida e ligado à nuvem ― já que evito ao máximo recolocar as cores no esmartefone.

No entanto, esse simples processo de retardamento de “revelação” faz com que eu me engaje integralmente no processo de fotografar, sem me importar tanto com o modo em que saiu a foto, mas me concentrando totalmente na sorte de poder registrar um momento que nunca mais se repetirá.


Ao ver a fotografia integralmente por outro dispositivo, suas cores vinham para mim como coisas inéditas.


Ao ver a fotografia integralmente por outro dispositivo, suas cores chegavam para mim como coisas inéditas. A partir daí, me caberia saber se valeria mais a pena compartilhá-la em cores ou sem elas.

Estetização do real

Imagem de uma visão panorâmica de edifícios em Fortaleza.

Noturnos também são uma boa pedida para imagens em preto e branco. Em fotos monocromáticas, o branco se torna figura (recebendo mais destaque) e o preto se torna fundo.

Desde que comecei a utilizar o celular sem cores, a vinculação entre realidade e reprodução do real arrefeceu-se de todo. Percebe-se com muito esforço que a nossa experiência com o mundo através do olho não coincide com nossa experiência mundana através de algum veículo.

Não vejo nisso, no entanto, um demérito para as tecnologias. Marshall McLuhan, em seu “Understanding Media” (1964), chama a atenção para a especificidade que os aparelhos eletrônicos têm de funcionarem como amplificadores de nossas faculdades corporais e mentais.

Ver uma paisagem natural por, por exemplo, um aparelho televisivo não embota nossa experiência de vê-la a olho nu, mas faz com que percebamos, através desse “amplificador visual”, atributos que não seriam perceptíveis de outro modo.

Nos frustramos ao ver que as fotos que tiramos não ficaram nem um pouco parecidas com a imagem que vemos a olho nu ― o que acontece 90% das vezes. Ao desligar as cores, me dei conta de como elas impactavam na minha percepção da realidade.

Me dei conta também de que a reprodução do real não deveria, a priori, emulá-lo talqualmente, mas que poderia, em vez disso, “vesti-lo”.

Bem, passada aquela primeira fase de ansiedade e estranhamento pela falta de cores, pouco a pouco, no entanto, fui aceitando essa natureza da tela, e, ocasionalmente, vendo sua beleza. Eventualmente, quando a foto está muito boa em preto e branco, não quero sequer saber de como ficou a sua versão colorida.

Temas

Foto em preto e branco de um homem de dreads, regata e chapéu chinês dançando. Ao fundo, um grande edifício.

Novamente Rafaboy posando. Desta vez, no Parque do Cocó de Fortaleza.

Há todo um culto em torno da fotografia monocromática. No entanto, fotografar em preto e branco não resulta em puro glamour em todos os temas. Há aqueles em que as cores devem de ser forçosamente invocadas. Somente fotografando sem cores me dei conta de que não é frequente encontrar por aí fotografias monocromáticas de comida ou de naturezas-mortas — o. s., frutas, plantas, louças ou legumes organizados em uma composição de fotografia ou pintura. Isso porque grande parte da beleza de uma comida está em sua cor.

Lembro de certa vez em que fotografei um conjunto de pedras sobre um tanque de peixes. Tirei, então, sua saturação a fim de que ficasse em branco e preto. Ao publicá-lo, algumas pessoas pensaram que aquilo se tratasse de um prato com carne. Me pareceu naquele momento que a natureza não foi feita para ser fotografada sem cores.

Tenho a impressão de que, em geral, a fotografia em preto e branco cai bem sobretudo a tudo aquilo que é obra do homem, tudo o que é ortogonal, composicional, rítmico: edifícios, campos de futebol, automóveis ou o próprio corpo humano. Além disso, como a cor foi extraída da fotografia, cabe a esta revelar texturas, pondo à disposição do olho os valores táteis das coisas.

Downgrading

Foto em preto e branco de um emaranhado de fios elétricos ligados a um poste de luz. O ângulo da foto é de baixo para cima.

A desorganização parece ser enfatizada pela ausência de cor.

Diz-se que, quando há o embotamento de algum dos sentidos, há o fortalecimento dos demais. Por exemplo, caso uma pessoa perca um pouco de sua visão, sua sensibilidade auditiva, por uma questão de sobrevivência, é catapultada. Tive uma experiência similar a esta quando realizei esse “downgrading” do dispositivo e passei a fotografar sem cores. Tive uma melhora em meu senso de reconhecimento de enquadramento e de texturas, estes que são atributos que as cores distraem.

Entrementes, me tornei mais paciente, uma vez que tinha de esperar pela “revelação” da foto, sem contar que vivi mais os momentos sem me preocupar tanto com a finalização dos registros. Acima de tudo senti o mundo de uma maneira diversa da que eu vivia até então, percebendo novos padrões de beleza visual.

#cotidiano #tecnologia


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