Ideias de Chirico

tradução

Ressalva: Nesta Ideia de Chirico, traduzi um ensaio que eu já compartilhara em alguma das Notas Costuradas. Trata-se de “The computer build to last 50 years”, onde se fala sobre o conceito de um computador eterno, de manutenção permanente, como o são as máquinas de escrever. O texto foi escrito em inglês por Lionel Dricot (m.c.c. Ploum), famoso blogueiro e escritor belga, que recentemente publicou um romance distópico, o “Bikepunk”. Outro dia trarei outros textos do Ploum traduzidos do francês.

Esta tradução foi sugerida por @diegopds@bolha.us, que também fez a revisão do texto. Termos técnicos que não têm relativas precisas em português foram mantidos ou têm sua forma original entre parênteses, antecedida de uma sugestão de tradução. Afora esses casos, tentei ao máximo buscar traduções ou mesmo criar palavras que se adequem ao português. Logo, reconheçam esta tradução como propositiva. Isso faz parte de uma política linguística aqui nas Ideias de Chirico de, sempre que possível, usar termos estrangeiros traduzidos ou aportuguesados. Tal política está melhor desenvolvida na aba “Sobre”, ao topo desta página.

Para aqueles que gostarem deste texto e souberem o idioma inglês, também sugiro a leitura de “Reinventing How We Use Computers”, em que Ploum discorre mais sobre como imagina o Forever Computer em termos visuais e ergonômicos. O ensaio abaixo também conversa com uma outra publicação destas Ideias de Chirico, “Como e por que parei de comprar notebooks novos”, uma tradução de um texto do blogue Low Tech Magazine.

Boa leitura!

Três máquinas de escrever e um dispositivo de escrever similar à máquina de escrever sobre um piso de tacos. Imagem granulada e em preto e branco

“O computador feito para durar 50 anos”, escrito por Lionel Dricot (Ploum) em 2021

Como criar um computador duradouro que poupará sua atenção, sua carteira, sua criatividade, sua alma e o planeta. Acabar com monopólios será somente uma das consequências.

Cada vez que vejo minha máquina de escrever Hermes Rocket (à esquerda na imagem), fico surpreso pelo fato dela parecer bem moderna e, depois de uma limpeza, funcionar como por mágica. O aparelho tem 75 anos e é uma peça de tecnologia bem complexa, com mais de 2000 partes móveis. Isso ainda é uma das melhores ferramentas para focar na escrita. Bem, nem tanto. Prefiro a mais jovem Lettera 32, que tem quase 50 anos (à direita na imagem).

Máquinas de escrever são uma peça de maquinaria incrivelmente complexa e precisa. Em seu auge, nas décadas em torno da Segunda Guerra Mundial, as fabricávamos tão bem que hoje já não precisamos mais fabricar máquinas de escrever. Simplesmente temos o suficiente delas na Terra. Você pode contestar que isso se deve porque ninguém mais as usa. Não é verdade. Um monte de escritores seguem as usando, elas ficaram na moda durante os anos 2010 e, para escapar da vigilância, alguns serviços secretos voltaram a utilizá-las. É um mercado bem nichado, mas existente.

Aprofundemos essa ideia: basicamente fabricamos o suficiente de máquinas de escrever para o mundo em menos de um século. Se quisermos mais máquinas, a solução não será fabricar mais, mas encontrá-las em sótãos e restaurá-las. Para a maioria das máquinas de escrever, restauração é somente questão de tomar tempo para fazê-lo. Não há habilidades ou ferramentas complexas envolvidas. Mesmo as operações mais difíceis poderiam ser aprendidas sozinhas, por simples tentativa e erro. Toda a teoria necessária para entender a máquina de escrever é a própria máquina de escrever.

Por outro lado, precisamos mudar nossos notebooks a cada três ou quatro anos. Nossos celulares a cada dois anos. E todas as outras peças de equipamento (carregadores, roteadores, modem, impressoras...) precisam ser trocadas regularmente.

Mesmo com a devida manutenção, elas simplesmente pifam. Não ficam mais compatíveis com seu ambiente. Já é impossível alguém sozinho saber perfeitamente o que elas estão fazendo, imagine consertá-las. Baterias se desgastam. Telas trincam. Processadores tornam-se obsoletos. Programas [software] tornam-se inseguros, isso quando não quebram ou se recusam a ser executados.

Não é que você mudou alguma coisa nos seus hábitos. Você ainda basicamente comunica-se com as pessoas, busca informações, vê vídeos. Mas hoje seu trabalho está no Slack, o que requer um CPU moderno para carregar a interface do que basicamente é um IRC enxuto. Seu programa de videoconferência usa um novo codec que requer um novo processador. E um novo roteador de rede sem fio [wi-fi]. Seu cliente de e-mail agora só roda em 64 bits. Se você não atualiza, fica largado ao léu.

Claro, computadores não são máquinas de escrever. Eles fazem bem mais do que máquinas de escrever.

Mas poderíamos imaginar um computador feito como uma máquina de escrever? Um computador que ficaria com você por toda sua vida e seria passado para seus filhos?

Poderíamos fazer um computador desenhado para durar ao menos 50 anos?

Bem, dado o modo como usamos os recursos do nosso planeta, a questão não é se poderíamos ou não. Precisamos fazê-lo, não importa como.

Então, como poderíamos fazer um computador que dure 50 anos? Isso é o que quero explicar neste ensaio. Em minhas notas, estou me referindo a esse objeto como o #ForeverComputer. Você deve ter um nome melhor. Isso não importa de fato. Não é o tipo de objeto que terá uma palestra anual para apresentar o modelo novo em folha, nem anúncios por todos os lados nos falando o quão revolucionário é.

Focando em casos de uso atemporal

Não tem jeito de se prever qual será o próximo codec de vídeo ou o próximo padrão de rede sem fio. Não há porquê de tentá-lo. Não se pode adivinhar que tipo de atividade online estará na moda nos próximos dois anos.

Em vez de tentar fazer isso tudo, a gente poderia focar em montar uma máquina que fará atividades atemporais, e fazê-lo bem. Minha máquina de escrever de 1944 ainda está escrevendo. Ainda está fazendo algo que acho útil. Em vez de tentar criar um plataforma de jogos genérica ou um computador para assistir à Netflix, vamos aceitar algumas limitações.

A máquina será feita para comunicar-se em formato escrito. Isso significa escrita e leitura. Isso já cobre um monte de usos. Escrita de documentos. Escrita de e-mails. Leitura de mensagens, documentos, livros digitais. Busca por informação na rede. Leitura de blogues, newsletters e fóruns.

Isso não parece muito, mas, se você pensar nisso, já é bastante. Muita gente ficaria feliz por ter um computador que faz somente isso. Claro, designers gráficos, produtores de filmes e gamers não ficariam felizes com um computador assim. Esse não é o ponto. É só que a gente não precisa de um computador novinho toda hora. Espaços de trabalho dedicados e poderosos ainda poderiam existir, mas poderiam ser compartilhados ou ser renovados menos frequentemente se todo mundo tivesse acesso ao seu próprio dispositivo para escrita e leitura.

Restringindo o uso, a gente cria muitas oportunidades de design.

Peças [hardware]

A meta de um computador de 50 anos não é ser miúdo, ultraportátil e ultrapotente. Em vez disso, tem de ser robusto e resiliente.

Na época da máquina de escrever, um aparelho de cinco quilos era considerado como ultraportátil. Como eu era acostumado a um MacBook de 900g e senti que meu Thinkpad de 1,1kg era volumoso, pude me imaginar sobrecarregado. Mas, assim que comecei a escrever em um Freewhite (na imagem, entre minhas máquinas de escrever), percebi algo importante. Se quisermos criar objetos duradouros, os objetos precisam ser capazes de criar uma conexão conosco.

A sensação com um objeto mais pesado e bem desenhado é diferente. Você não precisa dele sempre consigo só por precaução. Você não o joga na sua mochila sem pensar. Ele não está lá para lhe aliviar do tédio. Ao contrário, carregar o objeto é um comprometimento. Um ato consciente de que você precisa dele. Você o sente em suas mãos, sente o peso. Você está dizendo ao objeto: “Eu preciso de você. Você tem um propósito”. Quando tal comprometimento é feito, o propósito raramente é “rolar um fio sem fim de vídeos de gatos”. Ter um propósito torna mais difícil jogar o objeto fora porque uma versão novinha acabou de ser lançada. Isso também ajuda a desenhar uma linha entre os momentos nos quais você usa o objeto e os momentos em que não o usa.

Além de robustez, um dos principais objetivos do ForeverComputer seria usar o mínimo de eletricidade possível. Baterias devem ser facilmente substituíveis.

A fim de que se torne relevante para os próximos 50 anos, o computador precisa ser feito com partes facilmente substituíveis. As inspirações são o Fairphone e o notebook da MNT Reform. As especificações de todas as partes precisam ser de código aberto, logo todo mundo pode produzi-las, consertá-las ou mesmo inventar alternativas. As partes poderiam ser separadas em alguns blocos lógicos: a unidade da computação, o que inclui a placa-mãe, CPU e RAM; a unidade de energia, ou seja, a bateria, a tela, o teclado; a unidade de rede, a unidade de som e a unidade de armazenamento. Tudo isso vem em um revestimento.

Claro, cada bloco poderia ser feito de componentes separados que poderiam ser consertados, mas fazer blocos lógicos claros com interfaces definidas nos permite uma compatibilidade mais fácil. O corpo requer atenção especial porque isso vai ser a essência do objeto. Assim como para o navio de Teseu, o computador pode permanecer o mesmo ainda que você substitua cada parte. Mas o revestimento protetor é especial. Desde que você mantenha o revestimento original, a sensação para com o objeto seria a de que nada foi mudado.

Em vez de ser produzido em massa na China, ForeverComputers poderiam ser fabricados localmente, a partir de cópias do projeto, de código aberto. Manufaturadores poderiam trazer em jogo suas próprias habilidades, suas próprias experiências. A gente poderia ir mais longe conectando cada ForeverComputer a um sistema do tipo Mattereum, em que modificações e reparos serão listadas. Assim, cada computador seria único, com uma história de pertencimento. Assim como o Fairphone, o computador deveria ser fabricado com materiais da forma mais ética possível. Se você quer criar uma conexão com um objeto, se você quiser dar-lhe uma alma, esse objeto deveria ser o mais respeitoso possível com seus princípios éticos.

Escolhas optativas

Logo que temos a escolha de usar sobretudo um computador para a interação escrita, faz sentido, no estado atual da tecnologia, usar uma tela de tinta eletrônica [e-ink]. Telas de tinta eletrônica economizam bastante energia. Isso faria toda a diferença entre um dispositivo que você tem de recarregar toda noite, trocando a bateria a cada dois anos, e um dispositivo que basicamente fica ocioso por dias, algumas vezes por semanas, e que você recarrega uma vez ou outra. Ou que você nunca precisa recarregar se, por exemplo, o revestimento protetor externo vier com painéis solares ou uma manivela emergencial.

Tela de tinta eletrônica atualmente é mais difícil de ser usada com mouses e dispositivos de apontar [pointing devices]. Mas a gente pode construir um computador sem nenhum dispositivo de apontar. Geeks e programadores sabem do benefício de fluxos de trabalho voltados ao teclado. Eles são eficientes, mas difíceis de aprender.

Com um programa dedicado, esse problema poderia ser resolvido de forma inteligente. O Freewrite tem uma parte dedicada na tela, sobretudo usada para estatísticas textuais ou para a disposição da hora. Esse conceito poderia ser estendido para mostrar comandos disponíveis. Boa parte das pessoas está pronta para aprender como usar suas ferramentas. Mas, ao mudar a interface toda hora com atualizações imprevistas, ao pedir que designers inovem em vez de focar em utilidade, a gente esquece de qualquer aprendizado a longo prazo, considerando usuários como idiotas em vez de os empoderar.

Podemos criar uma interface para o usuário orientada ao texto com uma curva de aprendizado gradual? Para um dispositivo que deve durar 50 anos, isso faz sentido. Por essência, tal dispositivo deve revelar a si mesmo, desbloqueando seus potenciais gradualmente. Um design cuidadoso não será sobre “mirar um dado segmento consumidor”, mas “fazê-lo útil para humanos que dedicaram tempo para aprender”.

Claro, alguém pode imaginar a substituição de um bloco de inserção de dados [input block] para ter um teclado com um dispositivo de apontar, como o famoso ponto vermelho da Thinkpad. Ou um mouse USB poderia ser conectado. Ou a tela poderia ser sensível ao toque. Mas e se a gente tentasse fazer o máximo que pudermos sem eles?

Tinta eletrônica sem dispositivo de apontar mataria qualquer rolagem infinita, forçando-nos a pensar na interface do usuário como uma ferramenta textual que deve ser eficiente e servir ao usuário, mesmo que isso requeira algum aprendizado. Ferramentas precisam ser aprendidas e cuidadas. Se você não precisa aprender, se você não precisa cuidar, então provavelmente não é uma ferramenta. Você não está a usando, você está sendo usado.

Claro, isso não significa que todo usuário precisa aprender a programar a fim de estar preparado para usar isso. Uma boa interface durável requer algum aprendizado, mas não requer quaisquer modelos mentais complexos. Você entende intuitivamente como uma máquina de escrever funciona. Você pode aprender alguns recursos mais complexos como tabulações. Mas você não precisa entender como o mecanismo interno funciona para recuar o papel com cada pressionar de tecla.

Offline por padrão

Nossos dispositivos atuais esperam estar online todo o tempo. Se você se desconecta por qualquer motivo, verá um monte de notificações, um monte de erros. Em 2020, usuários de MacOS infamemente descobriram que seus SO estavam enviando várias informações para os servidores da Apple, porque, por algumas horas, esses servidores não estavam respondendo, resultando em uma epidemia de bugues e erros. Ao mesmo tempo, simplesmente tentar usar meu notebook offline permitiu-me encontrar um bugue na distribuição Regolith Linux. Esperando estar online, uma pequena aplicação [applet] tentava reconectar furiosamente, usando toda a CPU disponível. O bugue nunca foi achado antes de mim porque poucos usuários ficam offline por um extenso período de tempo (deve-se notar que isso foi consertado nas horas que se seguiram ao meu informe inicial, código aberto é massa).

Essa conectividade permanente tem um efeito profundo na nossa atenção e no modo com que usamos computadores. Por padrão, o computador está nos notificando o tempo inteiro com sons e popapes. Desligá-los requer uma configuração avançada e, algumas vezes, raque [hack]. No MacOS, por exemplo, você não pode ligar o modo Não Perturbe permanentemente. Propositalmente, não ser perturbado é algo que deve ser raro. O raque que eu usava era configurar o modo para ser ativado automaticamente entre 3h da manhã e 2h da manhã.

Quando você está online, seu cérebro entende que algo pode estar acontecendo, mesmo sem notificação. Pode haver um novo e-mail esperando por você. Qualquer coisa nova em um website aleatório. Está lá, bem no seu computador. Basta mover a janela aberta para fora e você pode ter algo que você está ansiando: novidade. Você não tem de pensar. Logo que você tenha algum pensamento difícil, seus dedos provavelmente irão encontrar alguma diversão espontaneamente.

Mas essa conexão permanente é uma escolha. A gente pode desenhar um computador para ser offline por padrão [offline first]. Uma vez conectado, ele sincronizará tudo de que precisa: e-mails serão enviados e recebidos, notícias e podcasts serão baixados dos seus websites e RSS, arquivos serão subidos, alguns websites ou gemini pods podem até mesmo ser baixados até uma dada intensidade. Isso seria algo consciente. O estado da sua sincronização será mostrada em tela cheia. Por padrão, você não seria permitido de usar o computador enquanto estivesse online. Você verificaria se toda a sincronização foi finalizada para então deixar o computador offline de volta. Claro, a tela cheia poderia ser contornada, mas você precisaria fazê-lo conscientemente. Estar online não seria um padrão irracional.

Esse projeto de “offline por padrão” também teria um profundo impacto nas peças. Isso significa que, também por padrão, o bloco de rede poderia ser cabeado. Tudo de que você precisaria seria um simples conector RJ-45.

A gente não sabe como os protocolos de rede sem fio mudarão. Há uma grande possibilidade de que a rede sem fio de hoje em dia não seja suportado pelos roteadores de amanhã ou apenas seja um plano de recuperação alternativo. Mas há chances de que o RJ-45 permanecerá por ao menos algumas décadas. E se não o RJ-45, um simples adaptador poderia ser impresso.

Rede sem fio tem outros problemas: ela suga energia. Precisa de sempre estar escaneando em plano de fundo. Não é confiável e é complexa. Se você quer conectar-se à rede sem fio só por um instante, precisa habilitá-la, esperar pela busca em plano de fundo, escolher a rede para se conectar, cruzar seus dedos para que não haja nenhum ponto de acesso aleatório que queira espiar seus dados, escrever a senha. Esperar. Reescrever a senha porque provavelmente você escreveu um zero em vez de um O. Esperar. Parece que está conectado. É isso? Todos os arquivos estão sincronizados? Por que a conexão foi interrompida? Será que estou fora da área? Será que as paredes são muito grossas?

Por outro lado, tudo isso poderia ser alcançado plugando um conector RJ-45. Tem uma luzinha verde ou laranja? Sim, então o cabo está bem plugado, problema resolvido. Isso também acrescenta consciência de conexão. Você precisa andar até o roteador e fisicamente conectar o cabo. A sensação é de estar enchendo o tanque com informação.

Claro, a concepção de código aberto significa que qualquer um pode produzir uma placa de rede sem fio ou 5G que você pode plugar em um ForeverComputer. Mas, assim como os dispositivos de apontar, vale a pena tentar ver o quão longe podemos ir sem ela.

Apresentando a conectividade ponto a ponto (P2P)

O paradigma de “offline por padrão” leva a uma nova era de conectividade: P2P (physical peer to peer)¹. Em vez de conectar-se a um servidor central, você pode conectar dois computadores aleatórios com um simples cabo.

Durante essa conexão, ambos computadores dirão um ao outro do que eles necessitam e, se por algum caso puderem satisfazer alguma dessas necessidades, as satisfarão. Eles poderiam também transmitir mensagens criptografadas para outros usuários, como garrafas no mar. Se acontecer de você encontrar Alice, por favor, dê-lhe esta mensagem.

Conexão entre pares implica em forte criptografia. Informação privada deve ser criptografada sem nenhum outro metadado que não o destinatário. O computador conectando-se a você não tem ideia se você é o remetente original ou somente um nó da cadeia de transmissão. Informação pública deve ser assinada, então você tem a certeza de que vêm do usuário que você confia.

Isso também significa que nossos discos rígidos enormes poderiam ser usados totalmente. Em vez de assentar-se em um monte de discos rígidos vazios, seu armazenamento agirá como um mensageiro para outros. Quando estiver cheio, de forma inteligente apagará coisas mais velhas e provavelmente menos importantes.

A fim de usar meu computador offline, eu baixei a Wikipédia, com gravuras, usando o programa Kiwix. Isso só tomou 30GB do meu disco rígido e posso ter a Wikipédia comigo todo o tempo. Só me falta uma toalha para ser um verdadeiro mochileiro das galáxias.

Nesse modelo, grandes servidores centrais apenas servem como um portal que faz as coisas acontecerem mais rápido. Eles não são mais necessários. Se um portal central desaparecer, não há um grande problema.

Mas não é só sobre Wikipédia. Protocolos como IPFS pode nos permitir construir toda uma internet P2P e sem servidores. Em algumas áreas rurais do planeta, onde o acesso à banda larga não é fácil, tais Redes Tolerantes a Atraso (Delay Tolerant Networks ― DTNs) já são funcionais e extensivelmente em uso, incluindo para navegar na internet.

Programas [Software]

Não precisa dizer que, a fim de construir um computador que poderia ser usado pelos próximos 50 anos, todo programa deve ser de código aberto.

“Código aberto” significa que bugues e problemas de segurança podem ser resolvidos muito tempo depois de que a empresa que os codificou desapareceu. Mais uma vez, veja as máquinas de escrever. Muitas empresas desapareceram ou se transformaram a ponto de não serem mais reconhecidas (tente trazer de volta o seu IBM Selectric para um atendente da IBM pedindo por um conserto, só para ver a cara dele. E, sim, seu IBM Selectric provavelmente tem exatamente 50 anos). Mas máquinas de escrever ainda são uma coisa porque você não precisa de uma empresa para consertá-las para você. Tudo de que precisa é um pouco de tempo, destreza e conhecimento. Para as partes faltantes, outras máquinas de escrever, algumas vezes de outras marcas, podem ser recolhidas.

Para um computador de 50 anos atinja o mercado, precisamos de um sistema operacional. Essa é a parte mais fácil já que os melhores sistemas operacionais que há já são de código aberto. Precisamos também de uma interface de usuário que deve ser dedicada para nossas necessidades particulares. Isso é um trabalho duro, mas viável.

A parte da rede P2P offline por padrão é talvez a parte mais desafiadora. Como dito antes, peças essenciais como IPFS já existem. Mas tudo tem que ser colado junto com uma boa interface de usuário.

Claro, faz sentido confiar primeiramente em alguns servidores centrais. Por exemplo, codificar em Debian e conseguir subir todos os recursos dedicados como parte do repositório oficial do Debian já oferece alguma garantia a longo prazo.

O ponto principal é mudar nossa postura psicológica a respeito de projetos tecnológicos. Descartemos a mentalidade do Vale do Silício de tentar permanecer na surdina para então, do nada, tentar ter o máximo de fatia de mercado possível a fim de contratar mais desenvolvedores.

O próprio fato de eu estar escrevendo isto publicamente é um compromisso com o espírito do projeto. Se nós conseguirmos mesmo fazer um computador que seja utilizável por 50 anos e eu estiver envolvido, quero que se destaque que, desde sua primeira descrição, tudo foi feito de forma aberta e livre.

Mais sobre a perspectiva

Um computador feito para durar 50 anos não é sobre fatia de mercado. Não é sobre levantar uma marca, arrecadar dinheiro de capital de risco [venture capital] e ser vendido por um monopólio. Não é sobre criar um unicórnio ou mesmo um bom negócio.

É tudo sobre criar uma ferramenta que ajude a humanidade a sobreviver. É tudo sobre tomar o melhor de oito bilhões de cérebros para criar esta ferramenta, em vez de contratar alguns programadores.

Claro, a gente precisa pagar as contas. Uma empresa pode ser um bom veículo para criar um computador ou ao menos partes dele. Não há nada de errado com empresas. Na verdade, penso que uma empresa é atualmente a melhor opção. Mas, logo no início, tudo deve ser feito levando em consideração que o produto deve durar mais do que a empresa.

O que significa que os clientes comprarão uma ferramenta. Um objeto. Isso lhes pertencerá. Eles poderão fazer o que quer que seja com isso posteriormente.

Parece óbvio, mas hoje em dia quase todos os itens de alta tecnologia que compramos não nos pertence. Nós os alugamos. Dependemos da empresa para os utilizar. Não somos permitidos a fazer o que queremos. Somos até mesmo forçados a fazer coisas que não queremos como atualizar programas em um momento inadequado, enviar dados sobre nós, e hospedar programas que não queremos usar, que não podem ser removidos, ou usar serviços de nuvem proprietários.

Parando para pensar, o computador feito para durar 50 anos é uma tentativa de lidar com o consumo excessivo de dispositivos, de combater monopólios, de reivindicar nossa atenção, nosso tempo e nossa privacidade e de nos libertar de indústrias abusivas.

Não é muito para um único dispositivo? Não, porque esses problemas são todos faces diferentes de uma mesma moeda. Você não pode combatê-los separadamente. Você não pode combatê-los em seus próprios campos. A única esperança? Mudar o campo. Mudar as regras do jogo.

O ForeverComputer não é uma substituição. Ele não será melhor do que seu MacBook ou seu tablet Android. Não será mais barato. Será diferente. Será uma alternativa. Lhe permitirá que use seu tempo em um computador de forma diferente.

Ele não precisa substituir tudo o mais para vencer. Precisa somente existir. Fornecer um espaço seguro. O Mastodon jamais substituirá o Twitter. O Linux para computadores jamais substituiu o Windows. Mas eles são um imenso sucesso porque existem.

Podemos sonhar. Se o conceito tornar-se popular o suficiente, alguns negócios podem tentar tornar-se compatíveis com esse mercado de nicho. Alguns sites ou serviços populares podem tentar tornar-se acessíveis em um aparelho que fica offline a maior parte do tempo, que não requer por padrão um dispositivo de apontar e que requer somente uma tela de tinta eletrônica.

Claro, esses negócios poderiam encontrar algo mais do que publicidade, taxa de cliques e visualizações para arrecadar dinheiro. Esse é o ponto principal. Cada oportunidade de substituir um trabalho de publicidade (o que inclui todos os funcionários da Google e do Facebook) por um meio honesto de arrecadar dinheiro é um passo de destruir um pouco menos o nosso planeta.

Construindo as primeiras camadas

Há um equilíbrio delicado em jogo quando uma inovação tenta mudar nossa relação com tecnologia. A fim de ter sucesso, precisam-se de tecnologias, um produto e conteúdos. A maioria dos tecnólogos tenta primeiro fazer as tecnologias, então os produtos inseridos nelas, então espera pelo conteúdo. Ou isso falha, ou torna-se um troço de nicho. Para ter sucesso, deve haver um jogo de vai-e-vem entre essas etapas. As pessoas têm de gradualmente usar os novos produtos sem o perceber.

O ForeverComputer que descrevi aqui nunca ganharia tração real se lançado hoje. Seria incompatível com muitos dos conteúdos que consumimos todo dia.

O primeiríssimo pequeno passo que imaginei é fazer algum conteúdo que poderia mais tarde já estar compatível. Como não sou o cara do hardware (sou um escritor com experiência em software), isso também é o passo mais fácil que eu mesmo poderia fazer hoje.

Eu chamo esse primeiro passo de WriteOnly [“Só-Escreva”]. Ele não existe ainda, mas é bem mais realista do que o ForeverComputer.

WriteOnly, como o imagino, é uma ferramenta minimalista de publicação para escritores. A meta é simples: escrever arquivos de texto em Markdown no seu computador. Mantê-los. E publicá-los pelo WriteOnly. Os leitores escolherão como ler. Eles podem ler em um site como um blogue, receber seu texto por e-mail ou RSS se eles estiverem inscritos, podem também optar por ler através do Gemini, do DAT ou do IPFS². Podem receber uma notificação através de uma rede social ou através do Fediverso. Isso não lhe interessa. Você não deve se importar com isso, só escrever. Seus arquivos de texto que são sua escrita.

Os recursos são mínimos. Sem comentários. Sem rastreio. Sem estatísticas. Imagens ficam granuladas [dithered] e em escala de cinza por padrão (um formato que permite que fiquem incrivelmente leves ao tempo que ficam mais informativas e mais nítidas do que imagens totalmente coloridas quando dispostas em uma tela de tinta eletrônica).

A meta do WriteOnly é impedir que escritores fiquem preocupados com onde publicar um determinado escrito. Ele também é uma luta contra a censura e o conformismo cultural. Escritores não devem tentar escrever para agradar aos leitores de uma dada plataforma, de acordo com a métrica dos magnatas dessa plataforma. Eles devem conectar-se com seus eus internos e escrever, lançando palavras aos ventos.

Nunca sabemos qual será o impacto de nossas palavras. Devemos deixar nossa escrita livre em vez de reduzi-la a uma ferramenta de marketing para vender coisas ou a nós mesmos.

O benefício de uma plataforma como WriteOnly é que, ao adicionar um novo método de publicação, todo o conteúdo existente seria adicionado nela. A meta final é manter sua escrita acessível para qualquer um sem deixar hospedado em nenhum lugar certo. Poderia ser através de IPFS, DAT ou qualquer novo protocolo em cadeia de blocos [blockchain]. Não sabemos ainda, mas já podemos trabalhar no WriteOnly como uma plataforma de código aberto.

Também podemos já trabalhar no ForeverComputer. Provavelmente haverá diferentes versões. Alguns podem falhar. Outros podem reinventar a computação pessoal como a conhecemos.

Em todo caso, sei o que quero amanhã.

Quero um computador de código aberto, sustentável, descentralizado, offline por padrão e durável.

Quero um computador feito para durar 50 anos e posto na minha mesa próximo à minha máquina de escrever.

Quero um ForeverComputer.

Faça acontecer

Como falei, sou um cara do software. É improvável que eu consiga fazer o ForeverComputer acontecer sozinho. Mas ainda tenho um monte de ideias de como fazê-lo. Também quero focar primeiro no WriteOnly. Se você acha que poderia me ajudar a torná-lo realidade e quer investir nesse projeto, contate-me por lionel@ploum.net.

Se você gostaria de usar um ForeverComputer ou um WriteOnly, pode também seguir este blogue (que está sobretudo em francês) ou inscrever-se aqui em um grupo de discussão [mailing-list] dedicado. Não venderei esses endereços, não os compartilharei e não os usarei para nada além de informá-los sobre o projeto quando se tornar realidade. Na verdade, há uma boa chance de que nenhuma mensagem seja enviada para este grupo de discussão dedicado. E, para tornar as coisas mais difíceis, você terá que confirmar seu endereço de e-mail clicando em um link dentro de uma mensagem de confirmação escrita em francês.

ATUALIZAÇÃO de dezembro de 2022: o grupo de discussão agora é uma lista de discussão aberta:

https://lists.sr.ht/~lioploum/forevercomputer

Leituras complementares

“The Future of Stuffs”, de Vinay Gupta. Um livro curto, de leitura obrigatória, sobre nossa relação com os objetos e a fabricação.

“The Typewriter Revolution”, de Richard Polt. Um livro e guia completo sobre a filosofia por trás das máquinas de escrever no século XXI. Quem as utiliza, como e por que usar uma você mesmo em uma era de conectividade permanente.

NinjaTrappeur fez em casa uma máquina de escrever digital com uma tela de tinta eletrônica em um revestimento de madeira:

https://alternativebit.fr/posts/ultimate-writer/

Outro projeto DIY com tela de tinta eletrônica e painel solar inclusos:

https://forum.ei2030.org/t/e-ink-low-power-cpu-solar-power-3-sides-of-the-same-lid/82

SL está usando um sistema operacional velho e experimental (Plan9), que o permite de fazer somente o que ele quer (e-mail, navegação de web simples e programação).

http://helpful.cat-v.org/Blog/2019/12/03/0/

Dois artistas vivendo fora de rede em um barco a vela e conectando-se só raramente.

https://100r.co/site/working_offgrid_efficiently.html

“Se alguém produzisse uma máquina de escrever simples, uma máquina de escrever eletrônica que fosse silenciosa, que eu pudesse usar em aviões, que me mostrasse uma tela de 8,5 por 11, como uma página regular, e eu pudesse armazenar nela e imprimir a partir dele como um manuscrito, eu compraria um na mesma hora!” (Harlan Ellison, escritor de ficção científica e cenarista de Star Trek).

http://harlanellison.com/interview.htm

LowTech magazine tem um artigo excelente sobre uma internet low-tech, incluindo Redes Tolerantes a Atraso: https://solar.lowtechmagazine.com/2015/10/how-to-build-a-low-tech-internet.html

Outro artigo da LowTech magazine sobre o impacto que as máquinas de escrever e os computadores tiveram no trabalho de escritório.

https://solar.lowtechmagazine.com/2016/11/why-the-office-needs-a-typewriter-revolution.html

ATUALIZAÇÃO de 6 de fevereiro de 2020: esqueci completamente de Scuttlebutt, que é uma rede social offline por padrão e P2P. Ela faz exatamente o que estou descrevendo aqui para se comunicar.

https://scuttlebutt.nz/get-started/

Uma boa e curta introdução sobre a rede no BoingBoing:

https://boingboing.net/2017/04/07/bug-in-tech-for-antipreppers.html

ATUALIZAÇÃO de 8 de fevereiro de 2020: o excelente “Tales from the Dork Web” tem uma edição sobre o Computador de 100 Anos, que é surpreendentemente similar a este ensaio.

https://thedorkweb.substack.com/p/the-100-year-computer

Adiciono também esta tentativa a um protocolo offline por padrão: o protocolo Pigeon:

https://github.com/PigeonProtocolConsortium/pigeon-spec

E outra máquina de escrever DIY com tinta eletrônica:

https://hackaday.com/2019/02/18/offline-e-paper-typewriter-lets-you-write-without-distractions/

ATUALIZAÇÃO de 15 de fevereiro de 2020: o designer Micah Daigle propôs o conceito de Prose, um notebook com tinta eletrônica e livre de distrações.


¹: Nota do revisor desta tradução: “P2P físico”, a meu ver, é uma redundância. Aqui, sou obrigado a entrar mais fundo num detalhe técnico. Não sei se Ploum tem conhecimento sobre redes de computadores. Mas a rede ponto a ponto (P2P) surge justamente na rede física composta por dois computadores: um ligado ao outro por meio de um cabo; o P2P não-físico seria, por exemplo, o Torrent (que comumente se dá via internet).

²: Sugestão de leituras sobre os protocolos Gemini e IPFS: Gemini (protocolo) – Wikipédia, a enciclopédia livre, Dat (software) – Wikipedia e Sistema de Arquivos Interplanetário – Wikipédia, a enciclopédia livre.

#tradução #tecnologia


CC BY-NC 4.0Ideias de ChiricoComente isto via e-mailInscreva-se na newsletter


Em 1972 o escritor italiano Italo Calvino publicou o seu Le città invisibili, uma série de descrições de cidades imaginárias, ambientadas em algo que seria um Mediterrâneo ou um Oriente Médio medievais; essas descrições partem de diálogos imaginados entre o viajante Marco Polo e o monarca Kublai Kan, imperador dos Tártaros. Cada cidade é uma metáfora, e boa parte delas seguem a estética do maravilhoso.

Li Le città invisibili ano passado, e ele foi a minha primeira leitura de um livro completo em língua italiana. Há alguns dias o trecho que selecionei para esta Ideia de Chirico rodava em volta de minha cabeça, porém eu não conseguia lembrar de onde ele vinha. Ontem finalmente decidi buscá-lo e fazer-lhe uma tradução em português, também como forma de praticar um pouco do italiano, que me tem estado em baixa. Espero que vocês gostem e que isso os incentive a ler Calvino, um dos mais originais autores da Itália moderna.

Excepcionalmente esta publicação não trará imagens, a fim de que as descrições não sejam “infectadas” por elas nas suas imaginações.

As cidades e as trocas. 2.

Em Cloe, grande cidade, as pessoas que passam pelas ruas não se conhecem. Ao verem-se, imaginam mil coisas um do outro, os encontros que poderiam ter entre si, as conversas, as surpresas, as carícias, as mordidas. Mas ninguém saúda ninguém, os olhares cruzam-se por um segundo e depois se afastam, buscando outros olhares ― não param.

Passa uma moça que roda uma sombrinha apoiada no ombro, e também um pouco o redondo dos quadris. Passa uma mulher vestida de preto que demonstra a todos os seus anos, com os olhos inquietos sob o véu e os lábios trêmulos. Passa um gigante tatuado; um homem jovem de cabelos brancos; uma anã; duas gêmeas vestidas de coral. Algo corre entre eles, uma troca de olhares como linhas que ligam uma figura a outra e desenham flechas, estrelas, triângulos, até que todas as combinações em um átimo desaparecem, e outros personagens entram em cena: um cego com uma onça na corrente, uma cortesã com leque de plumas de avestruz, um mancebo, uma mulher-bala. Assim, entre aqueles que por acaso encontram-se juntos a abrigar-se da chuva sob o pórtico, ou amontoam-se sob uma tenda de feira, ou param para escutar a banda na praça, consumam-se encontros, seduções, abraços, orgias, sem que se troque uma palavra, sem que se toque um dedo, quase sem levantarem os olhares.

Uma vibração luxuriosa move continuamente Cloe, a mais casta das cidades. Se homens e mulheres começassem a viver os seus efêmeros sonhos, cada fantasma tornar-se-ia uma pessoa com quem começar uma história de perseguições, de fingimentos, de mal-entendidos, de irritações, de opressões, e o carrossel das fantasias pararia.


Le città e gli scambi. 2.

A Cloe, grande città, le persone che passano per le vie non si conoscono. Al vedersi immaginano mille cose uno dell’altro, gli incontri che potrebbero avvenire tra loro, le conversazioni, le sorprese, le carezze, i morsi. Ma nessuno saluta nessuno, gli sguardi s’incrociano per un secondo e poi si sfuggono, cercano altri sguardi, non si fermano.

Passa una ragazza che fa girare un parasole appoggiato alla spalla, e anche un poco il tondo delle anche. Passa una donna nerovestita che dimostra tutti i suoi anni, con gli occhi inquieti sotto il velo e le labbra tremanti. Passa un gigante tatuato; un uomo giovane coi capelli bianchi; una nana; due gemelle vestite di corallo. Qualcosa corre tra loro, uno scambiarsi di sguardi come linee che collegano una figura all’altra e disegnano frecce, stelle, triangoli, finché tutte le combinazioni in un attimo sono esaurite, e altri personaggi entrano in scena: un cieco con un ghepardo alla catena, una cortigiana col ventaglio di piume di struzzo, un efebo, una donna-cannone. Così tra chi per caso si trova insieme a ripararsi dalla pioggia sotto il portico, o si accalca sotto un tendone del bazar, o sosta ad ascoltare la banda in piazza, si consumano incontri, seduzioni, amplessi, orge, senza che ci si scambi una parola, senza che ci si sfiori con un dito, quasi senza alzare gli occhi.

Una vibrazione lussuriosa muove continuamente Cloe, la più casta delle città. Se uomini e donne cominciassero a vivere i loro effimeri sogni, ogni fantasma diventerebbe una persona con cui cominciare una storia d’inseguimenti, di finzioni, di malintesi, d’urti, di oppressioni, e la giostra delle fantasie si fermerebbe.


In: “Le città invisibili” (1972), de Italo Calvino. Tradução de Arlon de Serra Grande.

P. S. (7 abr. 2025): tradução atualizada com as gentis recomendações do italófilo Renato Stanz, companheiro do Clube Poliglota.

#tradução #cultura


CC BY-NC 4.0Ideias de ChiricoComente isto via e-mailInscreva-se na newsletter


Imagem de Mário de Andrade, um homem pardo e calvo usando óculos de grau redondos e terno. Sua face está sendo iluminada por uma luz que vem debaixo.

Mário de Andrade

é um desafiador da servil e adocicada e grandiloquente cultura oficial, um criador de palavras que morrem de inveja da música, e que são, contudo, capazes de ver e dizer ao Brasil e também capazes de o mastigar, por ser o Brasil um sabaroso amendoim quente.

De férias, pelo puro gosto de se divertir, Mário de Andrade transcreve ditos e feitos de Macunaíma, herói sem nenhum caráter, tal como os escutou do dourado bico de um papagaio. Segundo o papagaio, Macunaíma, negro feio, nasceu no fundo da selva. Até os seis anos, por preguiça, não pronunciou uma palavra, dedicado como estava a decapitar formigas, a cuspir na cara de seus irmãos e a meter a mão nas graças de suas cunhadas. As cômicas aventuras de Macunaíma atravessam todos os tempos e todos os espaços do Brasil, em uma grande gozação que não deixa santo por desvestir, nem fantoche com cabeça.

Macunaíma é mais real do que seu autor. Como todo brasileiro de carne e osso, Mário de Andrade é um delírio da imaginação.


1927, Araraquara

Imagem de Mário de Andrade, um homem pardo e calvo usando óculos de grau redondos e roupão. Mário fuma e tem diante de si um amontoado de papéis.

Mário de Andrade

es un desafiador de la servil y dulzona y grandilocuente cultura oficial, un creador de palabras que se mueren de envidia de la música y que son sin embargo capaces de ver y decir al Brasil y también capaces de masticarlo, por ser el Brasil un sabroso maní caliente.

En vacaciones, por el puro gusto de divertirse, Mário de Andrade transcribe dichos e hechos de Macunaíma, héroe sin ningún carácter, tal como los escuchó del dorado pico de un papagayo. Según el papagayo, Macunaíma, negro feo, nació en el fondo de la selva. Hasta los seis años no pronunció una palabra, por pereza, dedicado como estaba a decapitar hormigas, a escupir a la cara de sus hermanos y a meter mano a las gracias de sus cuñadas. Las desopilantes aventuras de Macunaíma atraviesan todos los tiempos y todos los espacios del Brasil, en una gran tomadura de pelo que no deja santo por desvestir ni títere con cabeza.

Macunaíma es más real que su autor. Como todo brasileño de carne y hueso, Mário de Andrade es un delirio de la imaginación.


In: “Memoria del fuego III. El siglo del viento” (1986), de Eduardo Galeano. Tradução de Arlon de Serra Grande.

#cultura #tradução


CC BY-NC 4.0Ideias de ChiricoComente isto via e-mailInscreva-se na newsletter


Imagem: reprodução da entrada do Internet Artifacts.

Não tem jeito. Estou viciado em explorar sites. Desde que o blogue The Jolly Teapot publicou um linkroll contendo uma enormidade de endereços curiosinteressantes, estou fascinado pela ideia de interpretar sites como produtos artesanais. Como arte mesmo. As plataformas comerciais ― ou de entretenimento ― felizmente não detonaram de todo esse ramo da internet, e, de certa forma, até lhe deram um novo fôlego, como a Small Web (ou Indie Web) e o Fediverso mesmo.

Um desses endereços que The Jolly Teapot publicou é o Internet Artifacts ― não o confunda com o Internet Archive (eu confundi aqui durante a redação do texto). Trata-se de um pequeno museu de (digamos) “atos inaugurais” da internet: o primeiro emoticon utilizado, o primeiro meme, o primeiro blogue, o primeiro site de delivery etc. O arsenal é imenso, e vai de 1977 até 2007. Como há algumas reproduções de mídia, é necessário ativar Javascript. De qualquer modo, vale a visita. Para abrir o apetite de vocês, separei três das diversas curiosidades que há no endereço e os traduzi. Boa leitura.

O primeiro “:–)” (1983)

Reprodução de tela de um boletim acadêmico. Nela Scott Fahlman sugere o uso de uma carinha feliz e uma carinha triste para distinguir piadas e posts sérios na rede.

Imagem: reprodução do boletim da Universidade de Carnegie Mellon.

O primeiro uso registrado de um “:–)” na internet é de 1982, quando o cientista da computação Scott Fahlman propôs o uso de :–) e :–( para distinguir piadas e posts sérios na rede.

A proposta veio em resposta a um post no boletim da Universidade de Carnegie Mellon, em que um estudante brincou dizendo que havia mercúrio espirrado no elevador do departamento de física. Outros estudantes não sacaram a piada e pensaram que o espirro realmente aconteceu.

Os emojis foram aos poucos adotados na Carnegie Mellon e mais tarde por toda a internet.

Fogcam (1994)

Reprodução do site Fogcam com duas imagens, uma de uma rodovia e outra de cadeiras perto de uma piscina. O site é mostrado pelo antigo navegador Netscape.

Imagem: reprodução do site da Fogcam, que ainda está na ativa.

Criado por dois graduandos da Universidade Estadual de São Francisco, a Fogcam é celebrado como a webcam mais longeva. Originalmente posta como um experimento para compartilhar parte do cotidiano do campus, ela rapidamente se tornou um recurso amado nos primeiros anos da internet. A webcam tinha até uma sala de bate-papo na qual os usuários poderiam discutir o clima.

A webcam quase foi fechada em 2019, mas o público implorou por mantê-la ativa. Ela tem estado ao vivo por 30 anos.

Dancing Baby (1996)

Imagem animada de um modelo 3D de um bebê usando fraldas em um fundo preto, dançando chá-chá-chá

Imagem: reprodução do .gif do Dancing Baby.

Um dos maiores memes do início da internet, o Dancing Baby foi um resultado não intencional da demonstração de um plugin para 3D Studio Max, que poderia animar criaturas bípedes. Criada em 1996 a partir de plugin de animação com dança chá-chá-chá sobre um modelo 3D de um bebê, a animação resultante foi descartada por ser muito “perturbadora”.

A animação recebeu uma segunda vida quando foi recriada a partir dos mesmos arquivos e postada como .gif em um fórum CompuServe. Ela tomou seu rumo através de e-mails institucionais e teve uma explosão de popularidade depois de receber a música “Hooked on a Feeling” como fundo. Ela foi intermitentemente remixada, e até apareceu em uma alucinação na série Ally McBeal.

#tradução #tecnologia


CC BY-NC 4.0Ideias de ChiricoComente isto via e-mailInscreva-se na newsletter


Imagem de Buster Keaton

Buster Keaton

Faz rir o homem que nunca ri.

Como Chaplin, Buster Keaton é um mago de Hollywood. Ele também criou um herói do desamparo. O personagem de Keaton ― chapéu de palha, cara de pedra, corpo de gato ― não se parece nada a Carlito ― o Vagabundo ―, mas está metido na mesma guerra cômica contra policiais, bandidos e máquinas. Sempre impassível, gelado por fora, ardente por dentro, muito dignamente caminha pela parede ou pelo ar ou pelo fundo do mar.

Keaton não é tão popular como Chaplin. Seus filmes divertem, mas têm muito mistério e melancolia.

1919, Hollywood

Imagem de Buster Keaton

Buster Keaton

Hace reír el hombre que nunca ríe.

Como Chaplin, Buster Keaton es un mago de Hollywood. Él también ha creado un heróe del desamparo. El personaje de Keaton, sombrero de paja, cara de piedra, cuerpo de gato, no se parece en nada a Carlitos el Vagabundo, pero está metido en la misma guerra desopilante contra los policías, los matones y las máquinas. Siempre impasible, helado por fuera, ardiente por dentro, muy dignamente camina por la pared o por el aire o por el fondo del mar.

Keaton no es tan popular como Chaplin. Sus películas divierten, pero tienen demasiado misterio y melancolia.


In: “Memoria del fuego III. El siglo del viento” (1986), de Eduardo Galeano. Tradução de Arlon de Serra Grande.

#cultura #tradução


CC BY-NC 4.0Ideias de ChiricoComente isto via e-mailInscreva-se na newsletter


Estas Ideias de Chirico estão organizadas em três grandes eixos: #cultura, #cotidiano e #tecnologia. Às vezes também faço #tradução. Textos curtos ou sem um tema específico estão sinalizados como #notas.

Imagem: Kris De Decker utilizando um de seus IBM Thinkpad, enquanto o recarrega através de seu projeto de captação de energia fotovoltaica.

Disclaimer: Minha nova ideia de Chirico foi traduzir um texto que já há algum tempo me encanta. Trata-se de “How and Why I Stopped Buying New Laptops”, do inventor belga — agora residente da Espanha —, militante ambientalista, anarquista, jornalista e escritor Kris De Decker.

Publicado em seu blogue Low-tech Magazine (LTM) ― hospedado em servidor do próprio autor e alimentado por energia solar ―, esse texto me fascina tanto pelas ideias antiestablishment sobre a tecnologia (para mim então inéditas), quanto pela forma clara de escrita, próprio de um autor acadêmico, sim, mas capaz de escrever numa linguagem acessível para o grande público.

Com traduções em francês, alemão, neerlandês, espanhol e polonês, notei que o texto não tinha ainda uma tradução em português, nem em seu site, nem em outro pela internet, deixando o texto fora dos meios lusófonos.

Procurei manter nesta tradução a organização e formatação textuais originais do texto de Decker, além de suas imagens. Também mantive os hyperlinks originais que, por na maioria das vezes direcionarem o leitor às outras publicações do LTM, abrem páginas em inglês. Além disso, também fiz uma conversão simples de euro para real, considerando somente a cotação atual, para que os leitores brasileiros tenham uma ideia básica do que Decker gastou em cada compra.

Espero que gostem de ler esta que talvez seja uma das melhores expressões da resistência contemporânea à obsolescência programada.

Como e por que parei de comprar novos notebooks

Publicado por Kris De Decker em 20 de dezembro de 2020. Tradução em português por Arlon de Serra Grande.

Como um jornalista freelancer ― ou um trabalhador de escritório, como queira ―, sempre acreditei que eu deveria comprar regularmente um novo notebook. Mas máquinas antigas oferecem mais qualidade por menos dinheiro

Imagem: Low-tech Magazine agora é escrito e publicado em um ThinkPad X60s dos anos 2006.

Enquanto jornalista independente ― ou trabalhador de escritório, como queira ― sempre pensei que eu precisava de um computador decente e que eu devia pagar por qualidade. Entre 2000 e 2017, usei três notebooks que comprei novos e que me custaram em torno de 5 mil euros (23 mil reais) ao todo ― mais ou menos 300 euros (1,5 mil reais) por ano durante todo o período. A média de vida útil dos meus três notebooks foi de 5,7 anos.

Em 2017, em algum momento ao conseguir meu escritório, decidi não mais comprar notebooks novos. Em vez disso, fiquei com uma máquina de segunda-mão dos anos 2006 que comprei pela internet por 50 euros (265 reais) e que faz tudo que quero e necessito. Incluindo uma nova bateria e um aprimoramento simples em hardware, investi menos do que 150 euros (795 reais).

Se meu notebook de 2006 durar tanto quanto minhas outras máquinas ― se ainda rodar por pouco mais de um ano e meio ― ele me custará só 26 euros (138 reais) ao ano. Isso é menos do que 1/10 do que custou meus notebooks anteriores. Neste artigo, explicarei meus motivos de não comprar mais notebooks novos, e como você poderia fazer o mesmo.

Uso de energia e materiais de um notebook

Não comprar notebooks novos economiza um bom dinheiro, mas também muitos recursos, e evita a destruição do meio-ambiente. De acordo com a mais recente análise do ciclo de vida, leva-se de 3 101 a 4 340 megajoules de energia primária para se produzir um notebook ― isso inclui a extração de materiais, a fabricação da máquina, e o frete até o mercado¹.

A cada ano, compramos entre 160 e 200 milhões notebooks. Usando os dados acima, isso significa que a produção de notebooks requer um consumo anual de energia de 480 a 868 petajoules, o que corresponde entre um quarto e quase a metade de toda a energia solar fotovoltaica produzida mundialmente em 2018 (2023 petajoules)². A fabricação de um notebook também envolve o alto consumo de materiais, que inclui uma ampla variedade de materiais que podem ser consideradas escassas devido a diferentes tipos de restrições: econômica, social, geoquímica e geopolítica³ ⁴.

A produção de microchips é um processo de uso intensivo de energia e de materiais, mas este não é o único problema. O alto uso de recursos dos notebooks ocorre também porque eles têm uma vida útil muito curta. A maior parte dos 160 a 200 milhões de notebooks vendidos a cada ano são compras para substituição. O notebook médio é substituído a cada três anos (em empresas) ou até cinco anos (em outros ambientes)³. Minha experiência de 5,7 anos para cada notebook não é excepcional.

Notebooks não mudam

O estudo acima citado é de 2011, e refere-se a uma máquina fabricada em 2001: um Dell Inspiron 2500. É compreensível que você pense que “o mais recente estudo de ciclo de vida de um notebook” está datado, mas não está. Um artigo científico de 2015 descobriu que a energia incorporada dos notebooks foi constante durante o tempo⁵.

Os pesquisadores desmontaram 11 notebooks de tamanho similar, produzidos entre 1999 e 2008, e pesaram seus diversos componentes. Além disso, mediram a área de matriz de silício de todas as placas-mãe e 30 cartões de memória DRAM produzidas mais ou menos no mesmo período (até 2011). Eles descubriram que a massa e o material de composição de todos os componentes principais ― bateria, placa-mãe, disco-rígido, memória ― não mudaram significativamente, ainda que os processos de produção tornaram-se mais eficientes no uso de energia e material.

A razão é simples: melhorias em funcionalidade equilibram os ganhos em eficiência obtidos no processo de produção. As massas da bateria, memória, e do disco-rígido decaíram por unidade de funcionalidade, mas apresentaram totais constantes por ano. A mesma dinâmica explica porque notebooks novos não apresentam consumo de eletricidade operacional menor comparados a notebooks mais antigos. Novos notebooks podem ter maior eficiência energética por potência computacional, mas esses ganhos são compensados com uma maior potência computacional. Não há lugar em que o paradoxo de Jevons seja tão evidente quanto na informática.

O desafio

Tudo isso significa que não há benefício ambiental ou financeiro qualquer que seja em substituir um notebook velho por um novo. Ao contrário, a única coisa que o consumidor pode fazer para melhorar a sustentabilidade ecológica e econômica de seu notebook é usá-lo o máximo possível. Isso é facilitado pelo fato de que os notebooks são agora tecnologicamente maduros e têm mais do que suficiente energia computacional. Há um problema, entretanto. Consumidores que tentam manter-se trabalhando em seus velhos notebooks tendem a acabar se frustrando. Vou explicar brevemente minhas frustrações abaixo, e estou bem convencido de que eles não são excepcionais.

Imagem: os três notebooks que usei entre 2000 e 2017.

Meu primeiro notebook: Apple iBook (2000-2005)

Em 2000, quando eu trabalhava como jornalista freelance de ciência e tecnologia na Bélgica, comprei meu primeiro notebook, um Apple iBook. Pouco mais do que dois ou três anos depois, meu carregador começou a dar problemas. Quando soube do preço de um novo carregador, tomei tanto desgosto pela prática de vendas da Apple ― carregadores são bem baratos de se produzir, mas a Apple os vende muito caros ―, que me recusei a comprar. Em vez disso, procurei manter o carregador funcionando por mais alguns anos, primeiro pondo-o debaixo do peso de livros e móveis, e, quando parou de funcionar, apertando-o firmemente com uma abraçadeira.

Meu segundo notebook: IBM Thinkpad R52 (2005-2013)

Quando meu carregador finalmente morreu de vez em 2005, decidi procurar por um novo notebook. Eu tinha só uma exigência: que ele deveria ter um carregador que durasse ou cuja troca ao menos fosse barata. Encontrei mais do que estava procurando. Comprei um IBM Thinkpad R52, e foi amor ao primeiro uso. Meu notebook IBM era a contrapartida do Apple iBook, não apenas em termos de design (uma caixa retangular disponível em todas as cores, desde que seja preto). Mais importante ainda, toda a máquina foi feita para durar, feita para ser segura e feita para ser reparável.

Produtos circulares e modulares estão em alta hoje em dia, sua vida útil poderia ser estendida intermitentemente por reparo e substituição graduais de cada parte da qual ele é constituído. A questão não é como a gente pode evoluir para uma economia circular, mas sim por que a gente continua a evoluir distante dela.


A questão não é como a gente pode evoluir para uma economia circular, mas sim por que a gente continua a evoluir distante dela.


Meu Thinkpad foi mais caro do que meu iBook, mas ao menos não investi todo o dinheiro em um design bonitinho mas sim em um computador decente. O carregador não deu problemas, e, quando o perdi durante uma viagem e tive de comprar um novo, pude adquirir por um preço justo. Pouco sabia que minha compra feliz viria a ser uma experiência única na vida.

Imagem: O IBM ThinkPad R52, de 2005.

Meu terceiro notebook: Lenovo Thinkpad T430 (2013-2017)

Corta para 2013. Agora moro na Espanha e mantenho o Low-tech Magazine. Ainda trabalho com o meu IBM Thinkpad R52, mas há alguns problemas à vista. Primeiro de tudo, a Microsoft vai em breve me forçar a atualizar meu sistema operacional, já que o suporte para Windows XP encerrará em 2014. Não estou a fim de gastar alguns centos de euros em um novo sistema operacional que, de qualquer modo, poderia demandar demais do meu velho notebook. Além disso, o notebook tem ficado um pouco lerdo, mesmo depois dele ter sido restaurado à sua configuração de fábrica. Em resumo, caí na cilada que as indústrias de hardware e software nos montaram e cometi o erro de pensar que eu precisava de um novo notebook.

Estando tão afeito ao meu Thinkpad, nada mais lógico do que adquirir um novo. Eis o problema: em 2005, pouco depois de eu ter comprado meu Thinkpad, a Lenovo, uma fábrica chinesa que agora é a maior produtora de computadores do mundo, comprou o negócio de computadores pessoais da IBM. Companhias chinesas não têm reputação em fazer produtos com qualidade, não especificamente naquele tempo. De qualquer modo, visto que a Lenovo seguia vendendo Thinkpads que pareciam quase idênticos aos fabricados pela IBM, decidi tentar a sorte e comprar um Lenovo Thinkpad T430 em abril de 2013. A um preço exorbitante, mas considerei que por qualidade se paga.

Meu erro estava claro desde o início. Tive de devolver o notebook novo de volta duas vezes porque a carcaça estava deformada. Quando finalmente consegui um que não ficava em falso sobre minha mesa, rapidamente me deparei com outro problema: as teclas começaram a quebrar. Ainda consigo lembrar da minha incredulidade quando isso aconteceu pela primeira vez. O Thinkpad da IBM é conhecido por seu teclado robusto. Se você quer quebrá-lo, precisa de um martelo. Lenovo obviamente não achou isso tão importante e sutilmente substituiu o teclado por um inferior. Veja, até posso digitar agressivamente, mas nunca quebrei nenhum outro teclado.

Aborrecido, pedi a substituição da tecla por 15 euros (80 reais). Meses depois disso, a substituição de teclas tornou-se um custo recorrente. Depois de gastar mais de 100 euros (530 reais) em teclas de plástico, que em breve poderiam se quebrar outra vez, calculei que meu teclado tinha 90 teclas e que substituí-las todas duma só vez me custaria 1350 euros (7155 reais). Parei de usar o teclado por completo, temporariamente tendo a solução em um teclado externo. De qualquer modo, isso era antiprático, especialmente para trabalhar fora de casa ― e por que mais eu iria querer um notebook?

Já não havia mais retorno: eu precisava de um novo notebook. Outra vez. Mas qual? Com certeza não poderia ser algum feito pela Lenovo ou Apple.

Imagem: substituir todas as teclas do meu Lenovo T430 teria me custado 1350 euros (7350 reais).

Meu quarto notebook: IBM Thinkpad X60s (2017-atualmente)

Não encontrando o que eu procurava, decidi voltar no tempo. Àquela altura, ficou claro que notebooks novos têm uma qualidade inferior se comparadas aos velhos, mesmo que carreguem etiquetas com preços mais altos. Soube que a Lenovo trocou os teclados por volta de 2011 e comecei a pesquisar sites de leilões de Thinkpads fabricados antes desse ano. Eu poderia voltar ao meu Thinkpad R52 de 2005, mas por ora, estava acostumado ao teclado espanhol, e o R52 tinha o bélgico.

Em abril de 2017, fiquei com um Thinkpad X60s usado, do ano 2006. A partir de dezembro de 2020, a máquina estará em operação por quase 4 anos e tem 14 anos ― de três a cinco vezes mais longevo do que um notebook médio. Se eu amei o meu Thinkpad R52 de 2005, sou doido pelo meu Thinkpad X60s de 2006. Ele é tão robusto quanto ― já sobreviveu a uma queda de uma mesa até um chão de concreto ― mas é ainda menor e também mais leve: 1,42 kg vs. 3,2 kg.

Meu Thinkpad X60s faz tudo o que quero que ele faça. Uso-o para escrever artigos, pesquisar, e manter sites. Tenho o utilizado também para dar palestras em auditórios, projetando imagens em uma tela grande. Só há uma única coisa que faz falta no meu notebook, especialmente hoje em dia, que é uma webcam. Resolvo isso ligando o maldito notebook de 2013 com as teclas quebradas sempre que necessito, feliz por dar-lhe um uso que não envolva o teclado. Isso poderia também ter sido resolvido mudando para um Thinkpad X200 de 2008, que é uma versão mais recente do mesmo modelo, mas com uma webcam.

Imagem: Meu Thinkpad X60s.

Como fazer um notebook velho rodar como se fosse novo

Nunca mais comprar notebooks novos não é tão simples quanto comprar um notebook usado. É recomendável que se aprimore o hardware, e é essencial que se reduza a versão de software. Eis duas coisas que você precisa fazer:

1. Usar software de abaixo consumo energético

Em meu computador roda Linux Lite, um dos vários sistemas operacionais de código aberto programados especialmente para funcionar em computadores antigos. O uso de um sistema operacional Linux não é mera sugestão. Não tem condições de você reviver um notebook velho se você se agarra a sistemas operacionais da Microsoft Windows ou da Apple, porque a máquina instantaneamente trava. Linux Lite não tem os efeitos visuais exuberantes das mais novas interfaces da Apple e da Windows, mas tem uma interface gráfica familiar e parece qualquer coisa que não obsoleta. Ele toma muito pouco espaço do disco rígido e demanda menos poder operacional. O resultado é que um notebook velho, independente de suas especificações, roda tranquilamente. Também uso navegadores leves: Vivaldi e Midori.

Tendo usado Microsoft Windows por tanto tempo, achei que sistemas operacionais Linux são notavelmente melhores, ainda mais porque são livres para serem baixados e instalados. Além do mais, sistemas operacionais Linux não roubam seus dados pessoais e não tentam lhe prender neles, que nem fazem os mais recentes sistemas operacionais tanto da Windows quanto da Apple. Dito isso, mesmo com Linux, a obsolescência não pode ser desconsiderada. Por exemplo, Linux Lite vai parar de dar suporte para máquinas de 32-bits em 2021, o que significa que em breve terei de procurar por um sistema operacional alternativo, ou comprar um notebook de 64-bits um pouco mais novo.

2. Trocar a unidade de disco rígido (HDD) por uma unidade de estado sólido (SSD)

Nos últimos anos, as unidades de estado sólido (SSD) ficaram disponíveis e adquiríveis, e são bem mais rápidas do que as de disco rígido (HDD). Embora você possa reviver um velho notebook simplesmente passando para um sistema operacional mais leve, se você também trocar a unidade de disco rígido por uma de estado sólido, você também terá uma máquina que é tão rápida quanto um notebook novo em folha. Dependendo da capacidade que você queira, um SSD custará a você entre 20 euros (106 reais) por 120 GB, e 100 euros (530 reais) por 960 GB.

A instalação é bastante prática e está bem documentada pela internet. Unidades de estado sólido rodam silenciosamente e têm uma resistência maior a impactos físicos, mas eles têm uma expectativa de vida mais curta do que as unidades de disco rígido. A minha tem funcionado por quase quatro anos. Me parece que, tanto do ponto de vista ambiental quanto do financeiro, um notebook velho com um SSD é uma escolha muito melhor do que comprar um notebook novo, mesmo que, vez ou outra, a unidade de estado sólido precise ser trocada.

Notebooks reservas

Nesse meio-tempo, minha estratégia tem mudado. Comprei dois modelos idênticos por um preço similar, em 2018 e no início de 2020, para usar como notebooks reservas. Agora planejo me manter trabalhando com essas máquinas por quanto tempo for possível, tendo mais do que o suficiente de peças reservas disponíveis. Desde que comprei o notebook, ele teve dois problemas técnicos. Depois de cerca de um ano de uso, a ventoinha morreu. Tive o conserto com entrega imediata em uma lojinha bagunçada de informática mantida por um chinês em Antwerp, na Bélgica. Ele me falou que minha ventoinha consertada poderia rodar por mais seis meses, mas ela tem funcionado mais de dois anos depois.

Daí, no último ano, meu X60s de repente parou de carregar sua bateria, um defeito que também surgiu no meu notebook desgraçado de 2013. Esse parece ser um problema comum com Thinkpads, mas que ainda não pude resolver. Nem precisaria, já que tenho um notebook reserva pronto, que comecei a usar sempre que preciso ou quero trabalhar fora de casa.

Imagem: três notebooks idênticos do ano de 2006, todas em funcionamento, por menos de 200 euros (1060 reais).

Imagem: Interior do Thinkpad X60s. Fonte: Manual de Manutenção de Hardware

O mágico cartão de memória SD

Agora, deixe-me lhe apresentar ao meu mágico cartão de memória SD, que é outro aprimoramento de hardware que facilita o uso de notebooks velhos (mas também novos). Muitas pessoas têm seus documentos pessais armazenados em seus discos rígidos e logo fazem becapes em um dispositivo de mídia externo se está tudo certo. Faço isso ao contrário.

Tenho todos os meus dados em um cartão de memória de 128 GB, que posso plugar em qualquer um dos Thinkpads que possuo. Então faço becapes mensais do cartão, que eu guardo em um dispositivo de armazenamento externo, bem como becapes regulares de documentos nos quais estou trabalhando, que eu temporariamente guardo na memória do computador em que estou trabalhando. Isso tem se provado bem confiável, ao menos para mim: parei de perder trabalho por conta de problemas computacionais e becapes insuficientes.

Outra vantagem é que posso trabalhar no computador que eu quiser e que não dependo de uma máquina em particular para acessar meu trabalho. Você pode ter vantagens similares ao manter todos os seus dados em uma nuvem, mas cartão de memória é a opção mais sustentável, e funciona sem acesso à internet.

Hipoteticamente, eu poderia ter dois erros de disco rígido no mesmo dia e me manter trabalhando como se nada tivesse acontecido. Uma vez que uso alternadamente dois notebooks – um com bateria, outro sem – posso também deixá-los em diferentes localidades e rodar por entre esses cantos enquanto carrego somente o meu cartão na minha carteira. Tente isso com seu notebook novinho e caro. Posso também usar meus notebooks juntos se preciso de uma tela extra.

Em combinação com uma unidade de disco rígido, o cartão SD também melhora a performance de um notebook velho e pode ser uma alternativa à instalação de uma unidade de estado sólido. Meu notebook reserva não tem um e ele pode ficar lerdo ao navegar por sites pesados. De qualquer modo, graças ao cartão SD, abrir um mapa ou um documento acontece quase instantaneamente, assim como rolar por um documento ou salvá-lo. O cartão SD também mantém o disco rígido rodando tranquilamente, já que está em geral vazio. Eu não sei o quão prático é usar um cartão SD em outros notebooks, mas todos os meus Thinkpads têm um eslote para isso.

Os custos

Façamos um cálculo de custo completo, incluindo o investimento em notebooks reservas e cartões de memória, e os preços usuais tanto para unidades de estado sólido quanto para cartões de memória, que se tornaram ainda mais baratos desde que os comprei:

• ThinkPad X60s: 50 euros (265 reais) • Notebook reserva ThinkPad X60s: 60 euros (318 reais) • Notebook reserva ThinkPad X60: 75 euros (397,5 reais) • Duas trocas de bateria: 50 euros (265 reais) • Unidade de estado sólido (SSD) de 240 GB: 30 euros (159 reais) • Cartão de memória SD de 128 GB: 20 euros (106 reais) • Total: 285 euros (1510,5 reais)

Mesmo se você comprar tudo isso, gastará somente 285 euros. Por esse preço, você talvez possa comprar o computador novo mais capenga do mercado, mas isso certamente não te propiciará dois notebooks reservas. Se você planeja seguir trabalhando com esse arranjo por dez anos, seu notebook poderia custar 28.5 euros (151 reais) ao ano. Você talvez precise trocar algumas unidades de estado sólido e cartões de memória, mas isso não fará muita diferença. Além disso, você evita o dano ecológico que é causado pela produção de novos notebooks a cada 5,7 anos. As necessidades do meu notebook estão atendidas por um futuro previsto.

As necessidades do meu notebook estão atendidas por um futuro previsto.

Não exagere

Ainda que eu tenha usado meu Thinkpad X60s como exemplo, a mesma estratégia funcionaria com outros modelos de Thinkpad ― aqui há um panorama de todos os modelos históricos ― e notebooks de outras marcas (das quais não sei nada a respeito). Se você preferir não comprar em sites de leilão, pode ir à loja de usados mais próxima e arrumar um notebook de segunda mão com uma garantia. É provável que você não precise sequer comprar um, já que tem muita gente com notebooks velhos por aí.

Não há necessidade de voltar para uma máquina de 2006. Espero que esteja claro que estou tentando traçar um argumento aqui, e provavelmente fiquei bem atrás de onde se pode manter as coisas práticas. Minha primeira tentativa foi um Thinkpad X30 de 2002, mas ela foi um passo muito distante. Ele tem um tipo diferente de carregador, não tem eslote para cartão de memória, e eu não poderia manter a conexão de internet sem fio funcionando. Para muitas pessoas, talvez seja melhor escolher um notebook um pouco mais recente. Isso lhe proporcionaria uma webcam e uma arquitetura de 64-bits, o que torna as coisas mais fáceis. Claro, você também pode me superar e voltar aos anos 1990, mas aí você teria que se virar sem portas USB e internet sem fio.

A escolha de seu notebook também depende daquilo que você quer fazer com ele. Se você o usa sobretudo para escrever, navegar, se comunicar e se entreter, pode fazer o mesmo que fiz pelo mesmo preço baixo. Se você trabalha com visual ou audiovisual, fica mais complicado, porque neste caso você provavelmente seja um usuário de Apple. A mesma estratégia poderia funcionar em um notebook um pouco mais recente e mais caro, mas eu sugeriria a mudança de um Mac para um sistema operacional Linux. Quanto a aplicações para escritório, Linux é evidentemente melhor do que as alternativas comerciais. Por falta de experiência, não posso lhe relatar se o mesmo vale para outros softwares.

Isso é um truque, não um novo modelo econômico

Embora o capitalismo possa nos oferecer notebooks usados por décadas a fio, a estratégia descrita acima deve ser vista como um truque, não como um modelo econômico. É um modo de lidar ou de escapar de um sistema econômico que tenta forçar você e eu a consumir o máximo possível. É uma tentativa de romper esse sistema, mas não é uma solução em si mesma. Precisamos de um outro modelo econômico, no qual possamos fabricar todos os notebooks como os Thinkpad pré-2011. Como consequência, a venda de notebooks cairia, mas é especificamente disso que precisamos. Além disso, com a eficiência computacional de hoje, poderíamos reduzir significativamente o uso de energia operacional material de um laptop se revertermos a tendência de uma funcionalidade cada vez maior.

Claramente, mudanças em hardware e software levam a uma rápida obsolescência de computadores, mas o segundo tem sido o fator mais crucial. Um computador de 15 anos tem tudo de hardware que você precisa, mas não é compatível com o software (comercial) mais recente. Isso é verdade para sistemas operacionais e todo tipo de software, desde jogos, passando por aplicações para escritório, até sites. Consequentemente, para tornar o uso de notebooks mais sustentável, a indústria de software deveria começar a fazer cada nova versão de seus produtos mais leves em vez de mais pesados. Quanto mais leve for o software, mais duradouros serão nossos notebooks, e de menos energia precisaremos para usá-los e produzi-los.

Imagens: Jordi Manrique Corominas, Adriana Parra, Roel Roscam Abbing


  1. Deng, Liqiu, Callie W. Babbitt, and Eric D. Williams. “Economic-balance hybrid LCA extended with uncertainty analysis: case study of a laptop computer.” Journal of Cleaner Production 19.11 (2011): 1198-1206. https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0959652611000801
  2. International Renewable Energy Agency (IRENA). https://www.irena.org/solar
  3. André, Hampus, Maria Ljunggren Söderman, and Anders Nordelöf. “Resource and environmental impacts of using second-hand laptop computers: A case study of commercial reuse.” Waste Management 88 (2019): 268-279. https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0956053X19301825
  4. Kasulaitis, Barbara V., et al. “Evolving materials, attributes, and functionality in consumer electronics: Case study of laptop computers.” Resources, conservation and recycling 100 (2015): 1-10. https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0921344915000683
  5. Kasulaitis, Barbara V., et al. “Evolving materials, attributes, and functionality in consumer electronics: Case study of laptop computers.” Resources, conservation and recycling 100 (2015): 1-10. https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0921344915000683 
Esta publicação foi mencionada no texto “Como tornar a tecnologia divertida de novo” destas Ideias de Chirico.

#tecnologia #tradução


CC BY-NC 4.0Ideias de ChiricoComente isto via e-mailInscreva-se na newsletter