Ideias de Chirico


Em lembrança do pintor surrealista greco-italiano Giorgio de Chirico (1888 - 1978), o maior ilustrador de ideias de jerico ― e de Chirico! Um blogue sobre cultura, cotidiano e tecnologia mantido por Arlon de Serra Grande.

Dispositivo Kindle sendo manuseado por uma mão feminina.

Imagem: Pinterest.

O Amazon Kindle, ao lado das invenções dos últimos trinta anos, é uma estranha tecnologia. Com tela sem emissão de luz, bateria durável, um corpo leve e portátil, esse é um dos raros aparelhos modernos que são feitos para durar, e possui uma única função: a leitura. As versões mais recentes desse leitor digital dispõem de conectividade wi-fi, o que permite a compra e a recepção de livros digitais, a tornar o processo de aquisição mais conveniente e mais prático para quem tem zero traquejo com tecnologia.

Na minha experiência, isso é “conveniente” até a página três... Há um tempo eu penava com a quantidade de passos necessários para o envio de livros .epub para o meu Kindle. Era necessário antes de tudo ter internet; depois era necessário abrir o navegador; depois logar no cliente de e-mail; depois enviar os arquivos para e-mail Amazon; para só então ter a rasa esperança de todos os livros que anexei serem reconhecidos pelo dispositivo; e, enfim... ler!

Pensando em um texto do blogue do Felipe Siles ― aqui também da casa ― falando sobre seus hábitos de leitura, passei a utilizar o calibre como veículo de transmissão de livros para o leitor digital. Calibre é um programa que permite a manutenção, edição e organização de livros digitais para dispositivos que aceitem esses arquivos com muita praticidade.

O envio de livros digitais, que através do e-mail levava cinco passos para ser realizado, pelo calibre resume-se a três: espetar o Kindle no computador; clicar em “Enviar livro para dispositivo”; ler. Utilizá-lo era também uma forma de prescindir do serviço de sincronização de livros e de progresso de leitura, muito útil para quem lê por mais de um dispositivo. No meu caso, eu só lia pelo Kindle.

E eis que fuçando o programa acabo por descobrir um recurso muito útil: o de importar e carregar feeds RSS. Eventualmente descobri também que é possível, ainda através do calibre, converter páginas web em arquivos .epub.

Tudo isso fez com que eu acabasse usando menos telas LCD para leitura, tendo, pois, mais conforto visual, e também matando mais rápido minha lista de leituras pendentes de artigos em páginas web que eu salvara. Neste texto mostrarei como é possível ler mais pelo Kindle, seja linques soltos da internet, seja artigos organizados em feed RSS, ou seja ainda através do download de livros.

Importando feed RSS

Após ler um artigo publicado no Manual do Usuário sobre um desenvolvedor que produziu um programa que “imprimisse” um “jornal” a partir de linques de sítios curados, fiquei pensando: e se fosse possível fazer o mesmo, só que em uma tecnologia de tela e-ink ― como o Kindle?

E, juntando os pontinhos, vi que há uma forma de fazê-lo: importando feeds RSS através do programa calibre! Caso não saiba o que é um feed RSS, sugiro a leitura deste artigo também do Manual do Usuário: “Esta tecnologia permite acompanhar seus sites e blogs favoritos de graça e sem filtragem de posts”. Posso ir já adiantando que, em linhas gerais, o RSS é um protocolo que permite agregar atualizações de vários sítios e blogues em um leitor, onde é possível a leitura offline dos textos, como ocorre com os podcasts ― que também utilizam o protocolo RSS.

Este é o método mais difícil de ler mais através de um leitor digital. Entretanto garanto que é o que mais ocupará o dispositivo. De qualquer modo, seu processo não é nada cronófago, pois o calibre é um programa extremamente intuitivo, desenhado com atenção especial para o Kindle.

O arquivo importado do feed RSS a partir do calibre vem com um leiaute dedicado para esse dispositivo e sua diagramação não deixa a desejar. Nele vemos os domínios organizados em listas de um lado, e em outra os textos publicados pelos mesmos domínios a partir da configuração que deixamos no calibre. Durante a leitura dos artigos, temos uma barra informando o progresso do texto no lado inferior, abaixo disso, o título do próximo artigo, e no lado superior o nome do artigo que está sendo lido.

Pelo programa podemos selecionar a quantidade de notícias dos sítios do feed, e qual será a publicação mais antiga da importação. Infelizmente, alguns artigos vêm sem a data de publicação, o que pode tornar a leitura confusa, já que os textos mais recentes são mostrados primeiro, e não há maneira de organizar uma sequência personalizada de leitura sem ter de retornar ao índice.

Para essa importação, basta você seguir as seguintes etapas:

  1. abra o calibre;

  2. clique na seta lateral à “Obter notícias”;

  3. clique em “Adicionar ou editar uma fonte de notícias personalizada”;

  4. clique em “Importar OPML”, que é o formato de arquivo exportado a partir de um leitor de feed RSS;

  5. escolha o arquivo emitido a partir do seu leitor;

  6. então o programa vai baixar todos os artigos dos links que estão no arquivo;

  7. alguns podem não ser reconhecidos ou podem estar com servidores offline, então vale a conferida antes de passar o arquivo .epub para o Kindle via cabo USB ou e-mail.

Este último método seria o menos cômodo e que se aproximaria mais à experiência de receber uma “revista eletrônica”. No meu caso, porém, como para isso é necessário ter o e-mail Amazon ativo, abortei essa opção. Mas fica a indicação.

Transformando sítios web em arquivo .epub

A segunda forma neste texto de ler mais através do Kindle é mais fácil do que a anterior. Sabe quando você está numa página e instintivamente aperta Ctrl mais “S”, para salvá-la, pensando estar editando um texto? Em lugar de apertar “Esc”, aperte “Enter”. Isso gerará um arquivo .html. Para um melhor resultado, sugiro desabilitar o Javascript. Com o arquivo .html na pasta de “downloads”, agora abra o nosso glorioso calibre e siga os seguintes passos:

  1. clique em “Adicionar livros”;

  2. selecione o arquivo .html gerado a partir da página web desejada;

  3. clique em “Converter livros”;

  4. mantenha o formato “.zip” na parte de “Formato de entrada” e “.epub” em “Formato de saída”;

  5. clique em “OK”;

  6. agora espete o seu dispositivo Kindle no computador;

  7. selecione o arquivo convertido;

  8. dentre as opções que abrirem, escolha “Enviar arquivo para Kindle”.

Baixando livros em .epub

A terceira forma de ler mais pelo Kindle é a mais fácil de todas e só depende de alguns linques. Caso você não saiba, há sítios que disponibilizam livros digitais gratuitamente! Uau! Quem diria que uma coisa assim poderia ser encontrada na atual internet tomada de bostificação e streaminguização, hein?

Dentre os sítios web que conheço e que disponibilizam um material assim, estão: 1. Library Genesis ― espelho um e espelho dois ―; 2. Trantor; e 3. Internet Archive; e 4. Anna's Archive. Caso alguns desses espelhos estejam fora do ar, instale o navegador Tor Browser e experimente as versões “cebolas”, ou “dark web”, desses domínios.

A partir dessas dicas, posso apostar que você estará mais ocupado com o seu Kindle do que com o seu telefone celular cheio de notificações, informações sem curadoria e distrações!

#tecnologia


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Imagem de vários pixels soltos formando duas mãos escrevendo sobre uma máquina de escrever

Imagem: Serenity Strull/BBC/Getty Images.

Reportagens dos últimos dois anos:

Os “telefones burros” voltaram? (vídeo da CNBC, março de 2023).

Porque as câmeras digitais estão retornando (vídeo da TODAY, fevereiro de 2023).

As fitas cassete voltaram, o dilema é encontrar um toca-fitas. (matéria da New York Times, outubro de 2024)

Por que as máquinas de escrever estão tendo um renascimento na era digital (vídeo da PBS NewsHour, outubro de 2024).

Uma tiktoker de 23 anos faz vídeos sobre como e porquê voltou à mídia impressa (artigo da Slate, setembro de 2023).

Graças a entusiastas do minidisc, é possível adicionar músicas do seu smartphone em um tocador de minidisc (matéria da The Verge, outubro de 2024).

Por que tem se falado tão pouco desse súbito renascimento de várias tecnologias de comunicação antigas? De um lado uma indústria gastando rios de dinheiro na promoção das realidades virtual e aumentada, na streaminguização e na bluetoothização das coisas, e, é claro, na inteligência artificial; de outro, a nova geração reciclando aqui e ali várias tecnologias analógicas, como a máquina de escrever, ou tecnologias eletrônicas “ultrapassadas”, como a câmera digital ou mesmo como os blogues, que participam do movimento da chamada Web Revival, da qual estas Ideias de Chirico fazem parte. Tolice pensar que isso é moda de gente saudosista e ludista...

Essa não parece ser simplesmente uma onda sazonal e gratuita, concentrada em estética. Não é também como a moda hipster dos anos 2010, entusiasta sobretudo do vinil e da máquina de escrever ― eventualmente da fita cassete, como em 2016. Essa nova onda revivalista investe em muito mais tecnologias. Não é organizada em um movimento, mas dela pode se apontar um recorte geracional, nacional e de classe ― gente do norte global, de classe média, com idades em torno de 25 a 35 anos.

Há uma ímpar, crescente e geral insatisfação pelas tecnologias digitais ― seja por conta da bostificação, seja por conta do lock in, seja por conta da economia de atenção. O que esse pequeno movimento (mesmo que nichado) diz a respeito do Vale do Silício? O que posso dizer é que, definitivamente, o analógico é o novo hi-tech. E o offline é o novo online. Não é por outra razão que o filme “Dias Perfeitos” fez sucesso com o público abaixo de 30 anos... Eis aí todo um mundo ocultado pela digitalização compulsiva da vida. “O futuro do futuro é o presente”, já dizia o midiólogo Marshall McLuhan ― o que implica em dizer que o futuro do presente é o passado. Enquanto uma nova tecnologia for ofertada, não como ferramenta, mas imposta como meio de exclusão social (tal como o carro), o analógico seguirá como vanguarda.

#cultura #tecnologia #notas


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Três desenhos feitos por crianças, que estão sobrepostas sobre uma mesa de madeira gasta.

Sempre foi um sonho meu ser desenhado. Por outra pessoa. Sim, porque no período mesmo em que aprendia a desenhar, eu próprio fiz autorretratos. Mas, para mim, ter a própria imagem feita por outros era um grande sinal de admiração. Não é (tanto) este o caso quando o desenhado e o desenhista são a mesma pessoa...

Claro, autorretratar é um ótimo exercício de autoanálise. Mil autorretratos, no entanto, podem não elevar a autoestima de quem desenha. Talvez fosse essa pequena ponta de carinho que eu gostaria de ter!

Mas aí o destino me fez professor escolar de Língua Portuguesa e agora com frequência sou modelo de meus alunos, que volta e meia me presenteiam com um desenho. Nos últimos seis meses de aula, recebi pelo menos três desenhozinhos ― além de recadinhos. Como forma de agradecimento a eles, nesta publicação analisarei suas artes. Para preservar suas identidades, os nomes abaixo são fictícios.

Toca o Vivaldi, DJ!

“Arlon, 04.04.24”, arte de Paula Benevides.

Desenho feito por uma criança. É o retrato de um homem jovem de barba e cabelos curtos. Está feito em estilo mangá.

Nem todos os autorretratos de Rembrandt juntos atingiriam a profundeza que esta obra de Paula Benevides, estudante de 14 anos, atinge. Em papel pólen 70 g/m², com a gramatura alta o suficiente para suportar uma boa camada de grafite, “Arlon, 04.04.24” é uma obra prima da arte discente. O modelo, autodeclarado branco, foi retratado com traços indígenas ― olhos puxados, cabelos lisos, lábios finos ―, um fenótipo muito presente na população do Ceará. Isso implicaria em uma dívida geracional aos povos originários ― “todos somos descendentes de indígenas”?

A figura retratada mostra uma aparente apatia frente ao que está diante de si (sua presença demarcada pela penumbra sobre os olhos); isso, no entanto, só disfarçaria sua segurança, similar ao de um atleta olímpico diante de uma prova decisiva ― o modelo é posto de frente ao observador provavelmente para provocar este efeito.

Nesta obra enfatizaram-se os ombros, denotando estabilidade. Para a artista, o modelo é uma figura de autoridade, mas que flutua ― não se vê seus pés. Apenas um Velásquez pintando a família real espanhola seria capaz de tamanho feito.

É possível notar a influência das iluminuras japonesas, bem como a arte contemporânea do mangá, o que torna a obra de Paula Benevides um ícone da arte pop brasileira...

“04/06/24 Arlon”, de Eddy Leite.

Desenho feito por uma criança. É o retrato de uma figura masculina de óculos, camiseta e calças. Está em estilo de cartum.

Traço näif, humor, simplicidade e objetividade: essas são características da primorosa arte de Eddy Leite, estudante de 11 anos, que acaba de despontar em sua promissora carreira através de “04/04/24 Arlon”.

Se por um lado Paula (acima) e Patty (abaixo) preferiram expor closes do modelo, Eddy, detalhista desenhista, preferiu “montar todo o mosaico”, e trabalhou com astúcia movido por seu cubista instinto de mostrar o objeto observado em sua plenitude, buscando não esconder um traço sequer do expectador.

Todas as partes do corpo da figura têm a mesma medida, vejam vocês! Em vez de um corpo de proporção de oito cabeças ― como manda a Academia de Belas-Artes ―, Eddy, conscientemente disruptivo e em um claro protesto contra essa instituição, preferiu desenhá-lo na proporção de três cabeças. Ainda assim, sua obra é muito mais precisa do que o mais acurado afresco de Leonardo da Vinci. Neste momento ― tenho certeza ―, as mais aclamadas salas de aula de desenho acadêmico em Paris devem estar confusas, necessitando de rever toda a sua teoria de anatomia...

Ao contrário das demais artes expostas nesta publicação, Eddy fez o modelo não como alguém que pretende algum confronto, mas como alguém que, diante das intempéries da vida, não se mostra abalado. Notem que, enquanto todo o corpo do modelo possui rugas e marcas de movimento, seu rosto segue liso como bumbum de bebê.

“Prof. Arlon. 'Eu sei que não ficou nada a ver, mas to tentando'”, arte de Patty Ferreira.

Desenho feito por uma criança de uma cabeça de cabelos curtos e óculos. A orelha esquerda tem um pequeno buraco no lóbulo.

Esta obra foi realizada por Patty, uma estudante de 11 anos, e é um grafite sobre papel ofício 65 g/m², entregue em um caprichado envelope artesanal de material igual ao da obra.

Patty, na incrível altura de seus 11 anos, já demonstra um excepcional domínio de sua ferramenta artística: o lápis hexagonal de ponta de grafite, da fabricante Bic. A figura central desta obra foi retratada com a dor honesta de um combatente da Segunda Guerra Mundial ou da Guerra do Vietnã ― é possível até mesmo notar pequenas gotas de lágrima em volta dos olhos (ou seriam talvez reflexos de luz ao fim do túnel desta vida que é ser professor?).

A boca de dentes plenamente cerrados denotam um momento de aflição (algo que o deixa como “um goleiro na hora do gol”, como dizia Belchior) ― alguma incompreensão por parte da turma, alguma desobediência, falta de cooperação por parte do estafe escolar? Patty nos convida a terminar de compor este quadro que, com toda a certeza, já ocupa o rol dos cânones ocidentais...

Seu traço é frenético, mas mostra domínio das proporções do rosto humano. Sua direta menção à arte grega do escorço é por demais notável, máxime por sua multidirecionalidade. Além disso, Patty é claramente uma adepta da escola de expressionismo alemão, pois que carrega o frenesi de um Wols, o desespero de um Egon Schiele e a melancolia de uma Käthe Kollwitz.

Os signos que Patty nos fornece são feitos aos mínimos traços: duas linhas formam a orelha, outras duas delineiam o nariz, dois círculos fazem os óculos etc., uma atitude típica de quem entendeu as maiores lições da Escola Bauhaus de design ― “Menos é mais”.

Claramente uma obra que fará demasiado burburinho nos principais museus de arte europeus, como o Centro Pompidou, e que, por conta de sua irreverência deveras singular, circulará bastante pelas principais colunas de arte dos Estados Unidos, como o da New Yorker.


#cotidiano

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Foto da silhueta de alguns postes de luz contra a luz do final da tarde. No céu, degradês em lilás, amarelo e azul escuro.

Entardecer em Fortaleza. Foto minha.

Como ando meio sem ideia do que publicar, eis um compilado de postagens do meu microblogue Akkoma, conversas de e-mail, ivesdropes e outros fragmentos de pensamentos que não renderiam uma publicação, mas que valem a pena compartilhar, além de eventuais recomendações.

Sobre o estado das Ideias de Chirico

Com frequência tenho um desejo de escrever ― sem saber o quê. É mais uma vontade de escrever por escrever ― como se assovia em vez de cantar. Uma pena que não dá para fazer “estudos” com escrita, como se faz com pintura por exemplo, ou “improvisos melódicos” como com um instrumento musical. Às vezes o que quero é escrever só pelo prazer de linguagem.

Ter um blogue tem me ensinado que a visibilidade vem através do tempo, e não através de um só espaço, e que às vezes ela não apresenta sinais ― como curtidas e compartilhamentos. Blogar tem me educado a não desanimar quando as coisas publicadas não causam “ruído” de primeira.

O que interessa é você deixar pontes visíveis para a sua produção. Sejam hashtags ou hiperlinkagens, se há pontes, as pessoas vão circular por ali.

Veículo para vídeos curtos

Assistir a vídeos curtos pelo computador é dez vezes melhor do que assistir pelo telefone. Assim dá para dividir a tela em duas, deixar o feed em um lado, e outra aba em outro, onde se pode pesquisar alguma recomendação ou abrir algum perfil enquanto o vídeo roda. Acho também que assim me sinto menos preso. Recomendo bastante.

National rock

Nomes de bandas brasileiras de pop-rock ― meio desprezadas ― escritos em inglês soam como qualquer outra banda estadunidense que o povo paga pau por aí:

New Cloth;

Initial Capital;

Assassins Mamonas;

Urban Legion;

Hawaii's Engineers;

Red Baron;

The Success' Mudguards

Twenty Two CPM.

Please, come to Brazil ― and make money!

Estava ouvindo o pessoal do podcast mimimídias ― aqui o corte do episódio ― falando sobre a nova música do Offspring, Come to Brazil, e Clara Matheus falou uma coisa que faz sentido.

Uma vez que o público brasileiro engaja em publicações de gringos falando sobre o Brasil (essa coisa toda de Brazil mentioned), agora os artistas internacionais, caso estejam precisando de uma grana, na dúvida metem o nosso país em uma nova produção.

Essa música do Offspring por exemplo parece ser puro suco de turismo barato, coisa de quem só ouviu falar do Rio de Janeiro, de mulher bonita, caipirinha, churrasco, samba etc.

Ouvir o mundo falar do Brasil é legal, mas tem de se ver se é um movimento genuíno, de alguém que conhece o país, e se, afinal, não é uma forma de nos transformar em massa de manobra para descolar um cachê...

E-mail para o Professor Pasquale

Religiosa e diariamente acompanho “A Nossa Língua de Todo Dia”, programa da Rádio CBN que ouço via podcast, apresentado pelo lendário Professor Pasquale. Neste programa, Pasquale responde, de segunda à sexta, a dúvidas de gramática. Como forma de ilustrar as regras gramaticais, ele roda ótimas músicas ― ou, como ele chama, “auxílios luxuosos”.

Em meados de setembro enviei uma mensagem na qual, além de pedir a solução de uma dúvida, também comentei sobre outro boletim seu, cujo título era “É correto aplicar o plural em frases que citam o número zero?” ― aqui o episódio. Aí, Pasquale faz uma confusão sobre a ironia em construções, muito comum entre a juventude, do tipo “Tal notícia surpreendeu um total de zero pessoas”, aplicando a mais rançosa das gramáticas normativas.

No começo deste mês de outubro, Pasquale respondeu minha dúvida. Entretanto, por uma questão de economia de tempo, não leu o meu comentário a respeito de sua má interpretação sobre construções com “zero”. Como forma de pôr a discussão para frente, aqui vai o meu e-mail na íntegra:

Boa tarde, professor Pasquale e equipe CBN! Quem escreve outra vez Arlon de Serra Grande, aquele que enviou a pergunta do programa do dia 7 de junho, sobre o uso do verbo ser em “Deus é contigo”. Antes de fazer minha nova pergunta, gostaria de dar meus dois centavos sobre a dúvida/discussão levantada no programa do dia 29 de agosto, a respeito de expressões com “zero”.

Expressões do tipo “O evento recebeu zero pessoas”, “Estou estagiando com a remuneração de zero centavos” etc., são muito comuns entre a geração de cristal (também conhecida por geração Z) e pode entrar no rol das expressões figurativas, logo, não deve ser lida de modo literal.

Me explico: quem o diz provavelmente tem plena consciência de que as palavras seguidas de zero não são flexionadas no plural. Ainda assim essa pessoa o faz para enfatizar a ineficácia ou a frustração de um evento esperado. Tanto é que em geral, quando as pessoas falam essa expressão, sublinham-na com o tom da voz: “Eu estou ganhando duro e ganhando ZERO centavos por isso, acredita?”.

Há ainda outra expressão neste formato: “A nossa festa recebeu um total de zero pessoas”. Ora, quando se fala de “total”, fala-se de soma, mas a expectativa de que há alguma quantia somável é quebrada pelo “zero”, que é ainda enfatizada pelo plural cinicamente flexionado. Então, dito isso, defendo que essa construção de suposto desvio é consciente, fruto de sarcasmo.

À parte disso, gostaria de lhe perguntar sobre outra coisa. Tenho percebido que há uma série de palavras em LP terminadas em “bundo”. Sua significação é quase que intuitiva para o falante. Por exemplo:“furibundo” é aquele que está com fúria; “meditabundo” é aquele que medita, ou que está pensativo; “moribundo” é aquele que está por morrer. Não nos esqueçamos ainda do conhecidíssimo “vagabundo”, aquele que vaga, que é associado ao ócio.

Mas, afinal, de onde vem e o que significa esse “bundo” grudado nessas palavras? Por que há variações dessas palavras mais simplificadas, como “furioso” e “meditativo”? Faço essa pergunta porque sei que você é uma figura muito afeita à filologia (ciência também conhecida como linguística histórica ― cuidado para não pronunciarem “linguiça”, hein!), e dúvidas filológicas são difíceis de serem sanadas através da internet.

É tudo. Se não for pedir demais, gostaria de que mandassem um abraço a Yuri Bravos, grande companheiro da internet fediversal, também daqui de Fortaleza, e, assim como eu, ouvinte assíduo da Nossa Língua de Todo Dia.

Abraços!

Readymades de ônibus

Frases roubadas de pichações, conversas, telas de telefone ou outras quase-interjeições que ouvi/li enquanto tomava condução coletiva.

“Vivo isso, não disso”.

“Prefiro me vestir igual um mendigo do que ficar igual um mendigo depois”.

“Não tenha medo de peidar enquanto mija ― não há chuva sem trovão. Mas cuidado com o deslizamento de terra...”.

“Não estou dizendo nada, só estou falando”.

#cotidiano #notas


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Imagem de uma teia de aranha molhada por orvalho

Alguns dos linques mais interessantes que encontrei durante o mês de setembro, com alguma reflexão que eles me trouxeram... Para quem não fala o idioma inglês, infelizmente eles não servirão de muita coisa.

Rewind Museum, uma “Wikipédia” de eletrônicos domésticos antigos ― de rádio à fita cassete, dos primeiros microcomputadores ao gramofone, de televisões analógicas aos videogames. É legal para mostrar para o Enzo que não tem ideia de como as coisas eram antes do esmartefone.

Lista de fotografias consideradas as mais importantes. Autoexplicativo. De vez em quando me pego vendo esta lista e acho uma das coisas mais fascinantes da Wiki.

Sítio web de “Dias Perfeitos”, filme teuto-japonês sobre o qual já escrevi nestas Ideias de Chirico. Sua página inicial promete mostrar “353 dias da vida de Hirayama não mostradas no filme”. Não é para tanto. Há, porém, outras informações relevantes: créditos completos, trilha sonora, entrevistas, dados sobre o estafe e referências de livros.

A visita acima de tudo vale a pena por ser uma obra prima de sítio. Muito caprichado mesmo. Esse é um tipo de material que satisfaz um pouco aquela necessidade de “extras” que vinham junto nos discos DVD, como cortes não incluídos no filme e faixa com comentários do diretor. Quem dera se essa moda de desenhar sítios web para filmes pegasse!

Como ter um banho mais sustentável? Essa é a pergunta levantada pelo ambientalista Kris de Decker em seu novo texto no blogue Low-Tech Magazine, “Communal Luxury: The Public Bathhouse”. Para pensar sobre o impacto ambiental desse costume ordinário e universal, Kris faz um levantamento histórico dos hábitos banhistas na Europa e na Ásia ― completamente em casas de banho público ― e qual a diferença de uso de recursos naturais dessa cultura em comparação com o atual e ubíquo costume do “banho privado”.

Recomendo a leitura. Kris escreve muito bem e é muito interessante ver como o hábito de tomar banho mudou com o tempo, e como, se quisermos ter uma vida sustentável, teremos de mudar drasticamente nossa cultura. Durante a leitura do texto também fiquei pensando na hipótese de nós brasileiros nos sentirmos extremamente vexados ao estarmos nus na frente de outras pessoas pelo fato de não termos tido uma cultura de banho público.

Isto é mais uma dica do que uma recomendação de sítio web. Sempre estranhei o fato de que no Instagram pelo computador você só consegue visualizar as postagens recomendadas pelo algoritmo. No aplicativo móvel pelo menos há uma opçãozinha escondida para ver a lista de favoritos (para ver publicações de perfis selecionados pelo usuário) e a lista de seguindo (para ver as últimas publicações em ordem cronológica). Na versão mobile nenhum desses feeds mostra propagandas e são menos viciantes, já que eles “têm fim”, digamos.

Durante esta semana, no entanto, eu soube que há, sim, um modo de acompanhar postagens recentes e a lista de favoritos pela versão desktop do Instagram, só que os desenvolvedores, claro, a fim de limitar os recursos dessa versão e forçar o usuário ao retorno da versão mobile, simplesmente ocultaram a droga dos botões. Bigtech sendo Bigtech, como sempre.

Na versão desktop, para você entrar na lista de favoritos, tem de pôr <?variant=favorites> depois de , e para entrar na lista das últimas postagens, tem de pôr <?variant=following> depois do mesmo domínio. Ficando assim:

https://www.instagram.com/?variant=following

https://www.instagram.com/?variant=favorites

Praticamente uma easter egg. Cada dia que passa mais eu desejo o fim do predomínio desta que é talvez a rede social mais mal feita da web 2.0. Deixo avisado que a experiência do Instagram por computador é muito mais positiva, já que é menos viciante (por ter mais espaço de tela), e por a gente ter a possibilidade de não ver propagandas. Neste último caso, recomendo a instalação da extensão Ublock, disponível para Mozilla Firefox e Google Chrome.

Que tal zapear por alguns canais do Youtube como se fosse por uma tevê analógica? Essa é a proposta de YTCH. Como a própria sigla acusa (Youtube Channel), a ideia do sítio é mostrar, à moda televisual, uma reprodução ininterrupta e aleatória de canais interessantes do Youtube.

Há separação por categorias como “ciência”, “documentário”, “comida” etc. Independente de qual seja a categoria, os vídeos sempre surpreendem pela qualidade. Sua edição em geral tem aquele quê de canais educativos que é bem relaxante… A sacada é genial e espero que inspire projetos para outras plataformas que necessitam urgentemente de uma curadoria humana de conteúdo, como o TikTok.

#cultura #tecnologia #notas #surfandoweb


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Reflexões sobre a escuridão na cultura ocidental

Imagem de sombras de folhas de árvores no chão.

Imagem: quadro final de “Dias Perfeitos” (2023). Por que nos negamos às sombras?

Quando chego em casa pela noite, não acendo as luzes. Não. Limito-me a cruzar a sala tateando com o olhar. Tem sido assim desde que notei uma sensibilidade à luz ― tenho astigmatismo. Quando a percebi, tratei logo de evitar luzes fortes. Tudo quanto faço, se possível, faço sem luz: me agrada tomar banho com a luz que vem de fora do banheiro, faço as refeições noturnas em penumbra, às vezes até me preparo no escuro para sair...

Mas isso não é tudo ― passei também a ver beleza na escuridão. É bela a vida escura! E o estranho é o quanto se demora para o perceber. Vivendo a maior parte do tempo com uma forte luz sobre nós, não nos atemos ao fato de que as sombras também possuem seu encanto, que não podem ser vistas somente como um mero realçador da luz, mas também como elemento que circunscreve sua própria beleza.

Além do fato de eu ter sentido sensibilidade à luz, um ensaio me foi essencial para compreender o belo possível da penumbra: “Em louvor da sombra”, de Junichiro Tanizaki. Em um Japão tradicional do século XX ameaçado pela luz elétrica, intelectuais como Tanizaki buscaram registrar a apreciação pelas sombras ― ou, se possível, resgatá-las.

“Em louvor da sombra” é a descrição mais genuína possível do contraste entre as sombras dos espaços internos tradicionais do Japão e a luz ofuscante da era moderna, vinda da Europa ― luz que, ironicamente, marca muito mais o Japão contemporâneo do que a sombra.

Se por um lado esse ensaio de Tanizaki a respeito do impacto da luz elétrica sobre a arquitetura, a moda e a culinária japoneses soa conservador, por outro nos faz refletir o quanto de sensibilidade é perdida a cada nova invenção que envolva os sentidos mais imediatos do ser humano ― como a visão noturna ante a luz artificial.

Mais de uma vez, tentei mostrar neste blogue a minha afeição pelas coisas de baixa definição, como quando escrevi sobre o longa-metragem “Dias Perfeitos”. Falo de “baixa definição” em termos de Marshall McLuhan, falo das coisas que não estão dadas, que nos pedem para “ligar os pontinhos”, que requerem a nossa participação para a sua plenitude.

Poemas, fotografias em baixa definição, memes shitpost, música lo-fi, quadrinhos, vídeo-chamadas, palavras polissêmicas, al-guém que... FAla... meiotipoassinsabe?: esses são signos que não nos vêm “empacotados” ― participamos de sua “linha de montagem”.

As sombras possibilitam essa experiência de baixa definição. Um momento em penumbra é uma fuga desta nossa vida de consumo que ansia pela alta definição: a iluminação intensa dos supermercados, as superfícies lisas de ambientes públicos, o signo fácil das propagandas. Afinal: baixa definição = baixo estímulo; logo, alta definição = alto estímulo.

As coisas, em estado penumbral, podem ser quaisquer outras. Uma cadeira com roupas por dobrar pode ser uma poltrona; um cisco no assoalho do banheiro pode ser uma barata ou um naco de sabonete; todos os talheres na gaveta da cozinha, quando escura, são iguaizinhos. Nas sombras, devemos estar atentos, devemos nos preparar para tudo...

A sombra também é atraente em sua qualidade simbólica. Textos “sombreados”, obtusos, são aqueles que não se definem de cara, que convidam o leitor a uma coautoria, que ampliam o branco de sua página esperando ser terminada. É o texto de um Mikhail Bakhtin, deste já citado Marshall McLuhan, de um Machado de Assis, da maioria dos poetas, sobretudo os modernos.

A sensualidade mesmo está diretamente relacionada às sombras. Pensemos nas danças de strip tease ― são feitas à contraluz. Esses mesmos movimentos, se feitos em sol-a-pino, seriam de um humor vulgar e, em lugar de provocar, trariam uma irresistível vergonha alheia.

Esquisito é a campanha milenar dentro da cultura ocidental (ou ocidentalizada) contra as sombras. Nos filmes de terror, os piores monstros saem da escuridão; as rodas de contação de histórias macabras são feitas em torno de uma fogueira ou de um foco de luz, que faz os ouvintes evitarem olhar o seu entorno sombreado; as áreas de sombras nas casas são aquelas mais temidas pelas crianças, cujos pais, por nada neste mundo, não as ensinam a se sentir confortáveis no escuro.

Certo, há uma razão envolvendo a segurança das crianças que faz com que esses mesmos pais ensinem-nas a evitar os espaços assombrados. No entanto, esse medo é levado à vida adulta em forma de aversão. Saídos da infância, nunca mais nos arriscamos a ver as sombras com a atenção que damos à luz.

É compreensível que o homem rupestre, em um ambiente imprevisível, evitasse o escuro. Este era o lugar dos animais selvagens ou pençonhentos, era o lugar do mistério natural. Mas por que o homem moderno, com casa, energia e alimentação armazenada ainda segue com essa oposição ao escuro?

Essa aversão ao escuro é também encontrada no campo da linguagem figurativa. Quando passamos por um momento de dificuldade, dizemos que “procuramos ver a luz no fim do túnel”. Uma pessoa instruída é uma pessoa “esclarescida”. Qual a expressão afirmativa análoga à “Com certeza”? “É claro”! Quando temos dúvida sobre algo, buscamos alguém para “nos esclarescer”. A que está relacionado o Deus cristão? À “luz eterna”...

Não defendo que se evite toda a tecnologia eletrônica que nos ilumina e nos circunda. Não. Creio que devemos emular em nossas vidas o equilíbrio de uma floresta ensolarada. É impossível não se encantar com os feixes de luz que atravessam suas folhas. As sombras destacam a poeira iluminada pela luz solar. O sol não nos é tão quente em uma sombra arborizada, e é nessa mesma sombra que se desenha o movimento das árvores... Isso é komorebi!

“Komorebi” (木漏れ日) é a palavra japonesa para designar a dança entre a luz e as sombras, criada pelas folhas das árvores balançadas ao vento ― isso só existe uma vez, no momento em que é percebida. Apreciar tanto as sombras quanto as luzes nos educa também a viver o aqui-agora sem a perturbação constante do ali-depois. É na apreciação da impermanência, acredito, que reside a felicidade.

#cultura #tecnologia


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Imagem de Yui Kamiji, uma mulher amarela cadeirante, usando boné branco e camisa vermelha, fazendo um lance de tênis com uma raquete em mãos.

Imagem: Yui Kamiji, tenista japonesa, jogando durante os Jogos Paralímpicos (ou Paraolímpicos?).

Você sabe porque falamos “paralimpíadas” e não “paraolimpíadas” ou, o que seria mais natural, “parolimpíadas”?

Para responder essa questão, não é necessário nenhuma explicação gramatical mirabolante.

Segundo o Pasquale Cipro Neto, no programa “A nossa língua de todo dia” da Rádio CBN da semana passada¹, o Comitê Paralímpico Internacional (sediado nos EUA) “pediu” que todas as variantes vocabulares das línguas de países envolvidos com esses jogos seguissem o padrão anglófono “paralympic”. Fim. É isso. Essa é a razão pela qual falamos “paralimpíadas”.

A maior representação de colonialismo foi, segue sendo e será expressa pela língua de um povo.


¹: Ouça o episódio através deste linque. Para saber mais das discussões a respeito desse termo, leia este artigo do sítio Ciberdúvidas.

#cultura #notas


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Hirayama e Niko, personagens de “Dias Perfeitos”, respectivamente interpretadas por Koji Yakusho e Arisa Nakano.

Quando criança, durante um longo carnaval em casa, assisti diversas vezes ao “Garfield” (2004). Sentado no chão da sala, me encantava com seu brilho, sua cor, seu movimento (a história era um detalhe). Meus parentes, cansados de ver e ouvir a animação em lupe, imploravam para que eu largasse a televisão. Mas, apenas subiam os créditos finais, lá estava eu outra vezes tocando o “play”. Rodei aquele disco no aparelho de DVD como um pião na mão.

Raras foram as vezes que, depois da infância, voltei mais de uma vez a um filme. Um longa-metragem, entretanto, tem recuperado aquele encanto que eu tinha diante da tela, me fazendo retornar a ele diversas vezes. Falo de “Dias Perfeitos” (2023), um drama dirigido pelo alemão Wim Wenders.

“Dias perfeitos” mostra a rotina de um zelador de banheiros de Tóquio chamado Hirayama. Hirayama é um profissional dedicado: cumpre suas horas com natural pontualidade (não usa sequer despertador), tem seu próprio material de limpeza, e, em horário comercial, não se comunica com ninguém sobre outra coisa que não envolva o trabalho.

Duas coisas marcam Hirayama: ele é um introvertido homem de terceira idade, solteiro, e mora sozinho; e seu grande afeto pelas tecnologias analógicas ― ouve música em fita cassete enquanto vai ao trabalho, fotografa com sua câmera analógica durante o horário de almoço e religiosamente lê romances antes de dormir.

No entanto, Hirayama não toma seu ofício como sua vida: nas horas livres, encontra-se com amigos em bares, pedala por diversão, vai à livraria com frequência (é até tido por “intelectual” pela garçonete do seu bar favorito) e mostra gosto por jardinagem.

Hirayama mostra-se satisfeito com seus dias equilibrados, até que um dia tem de receber sua sobrinha Niko (filha de uma irmã com a qual há muito não fala), que inesperadamente aparece em sua casa (precisa de abrigo ― fugiu da mãe).

Temos aí o mais belo culto à simplicidade e à rotina dos últimos tempos, com uma personagem que leva uma invejável vida idílica e minimalista ― parafraseando as palavras do blogue sol2070 em resenha sobre o filme ―, personagem que toma corpo através de um ator que torna fresco cada gesto ordinário, capaz de nos mostrar a ação diária como o movimento de uma dança silenciosa e sem fim.

Mas, para além disso, “Dias Perfeitos” me encanta por seu mistério. Claro, não possui as cores e os movimentos de “Garfield” (é um filme, na maior parte do tempo, escuro), mas tem bastantes e deliciosas lacunas; mesmo tendo duas horas de duração, sabemos muito pouco sobre o protagonista¹.

Não temos reminiscências de Hirayama, e não sabemos sequer quais são seus pensamentos ― apenas seus sonhos, que envolvem sombras (um signo chave para o longa). As poucas informações que temos são pequenos detalhes, mostrados a conta-gotas através de outras personagens ― nem tão próximas do protagonista, ainda por cima.

“Dias Perfeitos” nos convida a uma profunda e constante participação. Já que o longa-metragem não nos vem como um objeto completo, somos impelidos a montá-lo, como se fosse um mosaico de pequenas e brilhantes pedrinhas. Cada gesto, cada figurante e cada objeto de “Dias Perfeitos”, paulatinamente percebidos a cada visita, interferem no enredo, o que o torna um filme novo a cada nova visita.

Sua natureza de baixa definição lembra-me outro longa-metragem, também japonês, chamado “Mind Game” (2004) ― um misto de “Pinóquio” e “Yellow Submarine”. Em filmes assim, só podemos especular, estipular alguma protointerpretação. Hirayama viria de uma família abastada?, tornou-se zelador por vontade própria ou passou por algum momento de necessidade?, desejou um romance impossível com a garçonete, o que o fez voltar a experimentar cigarros e bebidas?

Só nos resta revisitar o longa-metragem teuto-japonês mais uma vez logo após lhe assistimos ― como fazíamos quando éramos crianças ―, quem sabe dessa vez nos apareça algum dado que “ilumine” suas belas sombras?


¹: (post scriptum, 17 de setembro de 2024) recentemente descobri que o longametragem tem um websítio próprio onde nos são apresentados “353 dias da vida de Hirayama não mostradas no filme”. Não o visitei por completo, mas, além de fornecer informações que podem preencher esses vazios dos quais comentei, tem também dados sobre os atores e outras curiosidades. Vale a visita: https://www.perfectdays-movie.jp/en/

#cultura


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Fotografia de uma máquina de escrever sobre uma mesa de plástico com um lençol cor de creme em cima. Há um papel de com amarela posto em seu carro.

Estas Ideias de Chirico agora são escritas nesta Remington 15 (juro para vocês como isso não tem nada a ver com a fonte monoespaçada deste blogue).

Este texto está sendo escrito em uma máquina de escrever. Embora isso não faça uma notável diferença na sua leitura, faz uma cabal diferença na minha escrita.

Em um mundo ansioso pela novidade tecnológica, lançar mão de ferramentas obsoletas, antes predominantes, parece um ato de inadequação, e até mesmo de insanidade. Acontece que não é pela máquina de escrever ser conveniente na maior parte das minhas tarefas que eu a utilizo, mas sim por ela me fornecer um outro tato com o texto que outras não fornecem, e até por me oferecer um outro meio pelo qual pensar.

Costumo dizer que sou um entusiasta de tecnologias. Quando o digo, não me refiro somente aos dispositivos e aos veículos de ponta ― seja a inteligência artificial, o Fediverso, ou assistentes de voz. Quando o digo, também me refiro às tecnologias tradicionais, como o rádio, a televisão e a máquina de escrever.

Neste texto falarei das razões pelas quais decidi adotar este instrumento, como tem sido minha experiência com ele, bem como o modo com o qual tenho o conjugado com outros intrumentos de escrita.

Como adquiri

A máquina de escrever, por ser um artigo de colecionador, é muito difícil de ser encontrado no mercado comum ― e difícil de ser encontrado por um preço acessível. Antes então de conseguir uma, pensava em primeiro experimentá-la.

Porém, na última viagem que fiz, a São Paulo, me encontrava frequentemente com um amigo poeta, Diego Dias, que por acaso também é colecionador de máquinas de escrever.

Diego, que vira que eu tinha um genuíno interesse em adquirir uma, certa noite dispôs uma parte de sua coleção sobre a mesa de seu escritório, que fica no Largo do Paissandu. Entre vários modelos, estavam uma Baby Hermes vermelha (seu xodó), algumas Remingtons, e até mesmo um modelo com alfabeto russo.

Experimentei duas delas e gamei com uma Remington 15 de cor creme ― esta em que bato agora. Foi amor à primeira batida. Ela respondia bem ao toque, não era tão pesada e tinha todos os caracteres da língua portuguesa. Diego, que fumava seu habitual cigarro de tabaco, disse um direto e gentil “Pode ficar com ela!”. Depois de resistir um pouco ― já que eu pensava que iria subtrair sua coleção ―, aceitei o presente.

Vocês não imaginam o trabalho que deu de transportá-la para o Ceará... Um estojo de 20 centímetros por 25 não cabia em nenhuma mala de uma viagem curta como aquela ― eu passei somente algumas semanas em terras oswaldianas. Eu teria, então, de levá-la como uma bagagem à parte! No entanto, valeu a viagem.

Porque adquiri

Já havia um tempo que eu escrevia todos os meus textos em um bloco de notas ridiculamente simples do computador, sem recursos de formatação ― papel o qual eu deixava para o LibreOffice Writer. Me interessava sobretudo desenvolver o escrito. Queria tirar todo o atrito e toda a burocracia que existia entre mim e o computador.

Para isso, fiz de tudo, desde inicializar o sistema operacional sem senha, até configurar o bloco de notas como programa de inicialização. Ainda assim, existiam o boot necessário e as atualizações eventuais, que demandavam alguns minutos de atenção.

Cheguei a pesquisar programas que emulassem a experiência da máquina de escrever (que era o meu ideal de instrumento sem distrações), como o Cold Turkey Writer¹, e até mesmo cheguei a pesquisar projetos que fossem um híbrido de notebook e máquina de escrever, como os dispositivos da marca Freewrite e o Zerowriter. No entanto, ainda assim existiria o atrito da eventual necessidade de eletricidade e ocasionalmente internet.

Além disso tudo, fiquei com ainda mais vontade de conseguir uma máquina de escrever após a leitura de um texto de Lionel “Ploum” Dricot, “A complexidade da simplicidade” ― que ainda pretendo traduzir algum dia para o português. Neste texto Dricot comenta, entre outras coisas, o efeito desse instrumento em seus escritos.

Não tinha jeito: a única ferramenta dedicada à escrita, que me permitiria sentar e já começar a digitar sem parar e sem me preocupar com questões laterais, seria a máquina de escrever.

Claro, tenho enfrentado algumas questões com o instrumento, como o seu barulho, que dificulta a escrita durante alta noite, e a necessidade de constante força física na digitação². Essa força é em parte remediada por conta do touchtyping que desenvolvi, isto é, a memória muscular com o teclado de computador, que me permite que eu digite sem olhar para o teclado e que eu não tecle somente com dois dedos.

Tudo isso, porém, é compensado pelo seu conforto visual (já que não emite luz), pelo foco ininterrupto que o texto recebe e pela possibilidade de ser guardada de modo que esteja preparada para o próximo uso, uma vez que posso pô-la no estojo com um papel posto no seu carro.

E o computador?

Blocos de notas, máquinas de escrever, gravadores de voz e computadores são ferramentas, e, ferramentas que são, atendem a propósitos bem determinados e distintos. Nenhum elimina o papel do outro; antes complementam-se.

Com pequenas notas de bolso, redijo os principais tópicos de um texto vindouro; através de um gravador ― recurso sobre o qual já escrevi ―, registro meus primeiros insaites; com a máquina de escrever, desenrolo o fio do pensamento a partir dos recursos anteriores; e com o computador, faço o acabamento textual e a formatação, e incluo linques, imagens e o mais que a publicação final precisar.

Além disso, ter mais de um recurso para a mesma tarefa permite que um esteja no lugar de outro quando necessário. Caso a tinta da caneta ou o papel acabe na hora em que eu mais precisar fora de casa, ainda terei o gravador de voz para tomar notas urgentes e rápidas; caso eu não tenha bateria suficiente no telefone, mas esteja em casa, ainda terei o computador para redigir notas; e caso o computador dê pane, ou minha vista estiver cansada demais para olhar para telas, ainda terei a máquina de escrever para desenvolver textos “grossos”.

A este conjunto de recursos de escrita conjugado chamo de “caixa de ferramentas de escrever”!


¹: Ainda a respeito de programas emulando máquinas de escrever e dispositivos zero-distração, sugiro a leitura de um fio da Nina Kalinina no Mastodon falando a respeito de sua jornada para construir um “ambiente de trabalho feliz”, isto é, sem distrações. Conheci o Cold Turkey Writer através desse fio. Este foi outro texto também valioso para eu tomar a decisão de conseguir um equipamento dedicado à escrita.

²: No período em que escrevi este texto, ainda estava, digamos, fazendo “academia digital”, exercitando os dedos para o teclado mecânico. Hoje em dia já não sinto que ele necessita de tanta força, mas sim de precisão.

#tecnologias


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Imagem: série “Marilyn Monroe”, de Andy Warhol. Com o fim da hegemonia dos veículos de massas na comunicação social, todo anônimo tornou-se uma celebridade em potencial e toda “celebridade” tornou-se um anônimo em potencial.

Você desbloqueia seu telefone. Toca em qualquer rede social. Qual é a primeira pessoa que vê? Um artista internacionalmente conhecido, um político regionalmente relevante, ou um empresário do ramo tecnológico? Não. Grande chance há de que seja o amigo de infância que há muito não vê relatando que “O de hoje está pago”, o seu colega de trabalho com o qual fala pouco compartilhando fotos e fatos do último rolê, uma crush da qual você já perdeu o interesse publicando um “tbt” ― em outras palavras: gente anônima.

Permaneça nesta mesma rede social. Role um pouco. Se tiver alguma aba de vídeos curtos com curadoria algorítmica, role ainda mais. Se não for gente anônima, um artista do qual nem você e nem o seu colega de apartamento ouviram falar ― um anônimo. Se não for um artista do qual não se sabe, uma influenciadora de um assunto que o algoritmo jurou que seria do seu interesse ― uma anônima. Se não for uma influenciadora, alguma criança ou senhora engraçada “trendando” ― anônimos, anônimos, anônimos.

Os “quinze minutos de fama” preconizados por Andy Warhol saturaram-se. Agora que todos são famosos, ninguém é conhecido. Pense em duas bandas da atualidade que seja do seu gosto. Agora pergunte ao seu pai, ao seu melhor amigo ou amiga, ao seu colega menos íntimo e a qualquer pedestre avulso que passa em frente a sua casa se eles conhecem essas bandas. Se todos as conhecerem, há uma enorme probabilidade de serem bandas locais ou ligadas ao seu círculo ― ou de serem eles próprios a banda.

A recíproca será verdadeira se pescarmos de uma tela de outdoor ou indoor mais próxima e experimentarmos o inverso, procurarmos algum nome conhecido ― e esta será uma tentativa frustrante.

O fato é que as pessoas desconhecidas, aquelas as quais nunca vimos ― e as quais nunca mais veremos outra vez ―, tomaram o palco das celebridades. Isso porque o palco, que era a televisão e o cinema, mudou de lugar. Os Instagrams, os Tiktoks, os Kwais tornaram-se ubíquos. Neles, as pessoas incógnitas ― os seus próprios usuários ― aparecem mais do que as figuras pop sobre a qual outrora ouvíamos em todos os lugares.

Os veículos de massa, que foram o céu ao qual todos assistiam, perderam a predominância no campo das mídias. Se antes todos olhavam para cima, vendo as “estrelas” e as “celebridades” como figuras distantes, graças à invenção do algoritmo e do feed infinito de publicações, agora todos se cruzam e se olham, como se estivessem em uma movimentada rua do centro da cidade.

O antropólogo Michel Alcoforado em conversa no podcast “Boa Noite, Internet” define o espaço neoliberal como aquele onde tudo ocorre concentradamente ao mesmo tempo e em um só lugar: assim é o shopping, assim é a rede social, assim é um player de vídeos curtos.

Tudo, aqui e agora. Todas as pessoas em todos os lugares ao mesmo tempo. Assim é viver no auge da era da eletricidade. Por conta desse fenômeno, há um estado de “atonalidade” de capital social entre as pessoas: a depender do perfil de um usuário de uma rede social algoritmizada, um influenciador do interior do Ceará pode aparecer tanto quanto Elon Musk no seu feed; e a depender do perfil de outro usuário nas mesmas condições socio-econômicas que o primeiro, essas duas figuras podem lhe não ser mais do que estranhas.

Prevejo contudo que em um futuro breve não haverá mais fama, porque não haverá mais veículos de massas. Como ser famoso à velocidade da luz? Como ser famoso para um público que não tem tempo suficiente de reconhecer o seu rosto? Como ser famoso para um público que não teve sequer a chance de o conhecer graças ao seu isolamento algorítmico?

Pode ser que em breve, não haverá mais figuras pop. Apenas comunidades e nichos. Esses círculos circunscreverão no máximo 150 membros, como defende o número de Dunbar. Assim como a maioria dos cientistas só é conhecido dentro da comunidade acadêmica, amanhã pode ser que haja brilhantes figuras dos mais diversos campos da cultura com públicos “ínfimos” para os padrões atuais. E pode ser que nunca mais conheçamos outros Elvis, outros Marleys, outras Monroes, outros Jacksons, outras Madonnas. Todos serão anonimamente conhecidos e todas as esquinas serão tapetes vermelhos.

#cultura #tecnologia


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