Ideias de Chirico


Em lembrança do pintor surrealista greco-italiano Giorgio de Chirico (1888 - 1978), o maior ilustrador de ideias de jerico ― e de Chirico! Um blogue sobre cultura, cotidiano e tecnologia mantido por Arlon de Serra Grande.

Sala de aula. Várias cadeiras com o assento de cor laranja. Ao fundo , uma lousa para pincel. Ao redor, nas paredes, há bandeiras de vários países.

Sala de aula na qual darei aulas de português para estrangeiros durante este ano de 2025.

Um texto diferente do que tenho publicado. Apenas quero compartilhar algumas coisas que tem me acontecido.

Na última segunda-feira, dia 10 de fevereiro, passei a ministrar aulas de português como língua estrangeira (PLE), ofertadas em um projeto de extensão da Universidade Estadual do Ceará. Esse era um projeto que eu almejava há muito tempo e que só agora o pude realizar.

O que era para ser um mero projeto de extensão para pagar minhas contas e oferecer uma experiência extracurricular (na faculdade não temos cadeira de ensino de PLE), passou a modificar minha perspectiva sobre vários assuntos, a começar pela perspectiva sobre a minha própria língua.

Por muito tempo, principalmente nos primeiros anos do curso de Letras Vernáculas, imaginei algum método de estranhar a língua portuguesa. Como assim? Eu queria olhá-la, lê-la, falá-la como um estrangeiro, como se nunca tivesse a visto antes. Esse desejo vinha sobremaneira dos meus experimentos com poesia concreta ― em alguns deles eu queria tornar a língua portuguesa um “ícone puro”, uma forma sem conteúdo (ou, como dizia sabiamente Décio Pignatari, tornar a língua portuguesa uma linguagem...)

Creio que quando dou aulas de PLE, consigo em alguns momentos chegar a esse ponto de estranhamento, de reset linguístico. Enquanto ensino o português para os estudantes estrangeiros, percebo suas dificuldades e passo a entendê-los; estranho a minha pronunciação; tenho dúvidas de ortografia; percebo as especificidades de minha língua e também as suas lacunas. E então, passo a amá-la mais. Amo minha língua depois de ensiná-la como se ama mais a própria casa depois de viajar.

Outra perspectiva modificada foi a profissional. Pela primeira vez na vida sinto prazer genuíno em ensinar. Mesmo. Ao terminar as aulas, não me sinto cansado; ao chegar em casa, não fico ansioso para fazer planos de aula; ao me deitar para dormir, sinto entusiasmo ao saber que no dia seguinte estarei em sala de aula. Acho que só agora, depois de quase um ano como professor, estou curtindo de verdade dar aulas!

Sei que a situação é assaz excepcional: ensino algo de que gosto a pessoas que precisam aprendê-lo. Os estudantes imigrantes do programa do qual participo estão se preparando para uma prova para comprovar aptidão em língua portuguesa. Caso sejam aprovados, estudarão nos cursos que desejam. Caso não passem na prova, ou repetem as aulas de língua portuguesa (consumindo mais dinheiro estatal de seus países), ou voltam para suas casas familiares ― o que talvez os deixaria envergonhados. Só que essa possibilidade parece não ser cogitada. Aparentemente gostam das minhas aulas, pois permanecem focados e até se divertem!

Há algumas discussões sobre se é realmente necessário saber outras línguas além do português para dar aulas de PLE. Com as línguas estrangeiras que aprendi ou tenho aprendido ― como espanhol, inglês e francês ―,por muito tempo imaginei aproveitá-las para ensinar estrangeiros a falar português.

Creio que, se eu fosse monolíngue, haveria muito mais dificuldade de apresentar um conceito. Além disso, falante somente de uma língua, eu não entenderia como ocorre a aquisição de línguas. Saber outras línguas tanto facilita o ensino quanto o aprendizado da língua materna...

Textinho rápido, apenas para atualizá-los sobre o que tem me ocupado nas últimas semanas ― já que só relatá-lo pela página /now não seria suficiente ― e aquecer um pouco a escrita com algumas reflexões que o meu novo trabalho tem proporcionado. Sigam me lendo, e, caso tenham alguma coisa para comentar, não hesitem em me contatar pelo e-mail que está no rodapé desta publicação.

#cotidiano


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A partir da recomendação de uma tradição vinda do blogue do Rodrigo Ghedin, passarei a escrever um relato a cada novo aniversário meu. Hoje completo vinte e nove anos.

Sinto que me tornei um leitor “fluente” apenas neste ano. Só agora sou capaz de estar com um livro durante horas sem que isso me enfade ou entedie, ou sem que o livro se torne uma atividade a ser enfrentada, mas uma atividade de lazer ou de formação como qualquer outra. Levei dez anos para fazê-lo ― em 2014, aos 18 anos, comprei o primeiro livro de minha biblioteca.

O mais engraçado é que sou um estudante de Letras! Só de pensar que levei tanto tempo para estar confortável com os livros, tremo ao imaginar em como deverei formar a leitura de meus futuros alunos escolares ― se é que eu irei para esta área de trabalho...

Também sinto que me tornei um adulto somente neste ano. Agora consigo responder pelos meus atos, planejar melhor minhas coisas, ver as coisas e decidi-las por conta própria, bem como estar consciente de cada comportamento que deve ser tomado a cada situação.

Para tanto, houve um grosso investimento em psicoterapia, vida social saudável, como também em formação intelectual. Minha irmã mesmo, com quem já tive uma série de problemas no passado e que me via como uma criança, na última vez em que nos vimos, disse que eu estava mais maduro ― mudar a impressão que familiares têm de nós é uma raridade, vocês devem concordar...

Inclusive pela primeira vez na vida depois que saí da casa de meus pais, em 2016, estou em paz com meus irmãos. Já não procuro mais me comparar com eles. Não os trato mais como superego ― aquela voz misteriosa que sussurra uma censura, aquele fantasma que se projeta sobre a visão na hora agá de um vacilo.

O evento de aniversário em si infelizmente ainda me afeta. Não consigo ficar alegre ou minimamente otimista quando chega todo dia 22 de janeiro. Me sinto mais velho e mais atrasado. Além de que ainda não superei meus traumas com esta data. Não esqueci das vezes que as pessoas que eu amei fizeram pouco deste dia; nem da vez que, na expectativa de que meu pai fosse me fazer uma festa de aniversário, em vez disso, ele me pôs para trabalhar de graça em um restaurante que nem era seu.

Então pouco a pouco fui me desencantando com este evento. Hoje, durante meus aniversários, prefiro estar assim: sozinho com minhas palavras em uma cafeteria, na esperança de que ninguém lembre que neste dia eu nascera. O máximo que aceito é um e-mail de amigos que quero bem. Tem sido assim desde 2022.

Por outro lado, até que enfim consegui voltar a me arriscar no amor. A última vez foi em 2023, e tive vários problemas com calúnia e manipulação ― e isso em um relacionamento casual, que não durou duas semanas. Fiquei então um ano sem sair com ninguém, só voltando a conhecer mais pessoas no fim de 2024. Sempre fui um fracasso com a vida amorosa, porém creio que agora estou em condições de melhorar minha situação.

#cotidiano


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Há muito tempo, quando frequentei o Twitter, me incomodava a quantidade de vezes com que o tuiteiro médio recorria a si mesmo em suas postagens. Com essa consciência, fiz uma promessa para mim mesmo: nunca falaria de mim em redes sociais. Com o tempo, fui vendo que, ao contrário do que imaginava, é possível, sim, escrever um texto interessante tendo a si como ponto de partida.

Além disso, falar de outra pessoa, de certo modo, é também falar de nós mesmos, pois isso denuncia como essa figura nos influenciou ou por que ela nos é relevante. Há uma frase atribuída ao poeta francês Arthur Rimbaud que diz: “Mim é um outro” ― considerando a adaptação para este scherzo, claro.

Ultimamente tenho pensado em textos intitulados scherzo, que faria pelo prazer de escrever, trabalhando sobre algum aspecto estético. Já pensei em redigir um scherzo todo feito na dashboard do blogue, feito de uma sentada só; ou outro somente com palavras iniciadas com a letra “p” ou com a letra “a”; ou ainda outro no qual é vetado o uso do verbo “ser”. Mas me faltava o ímpeto. Enquanto lia na cama “On writing”, de Stephen King, aceitei o autodesafio de escrever sobre mim mesmo sem recorrer ao primeiro pronome pessoal no singular do caso reto ― vocês sabem qual.

Estou sendo café-com-leite neste mesmo scherzo porque me dei a permissão de escrever verbos em primeira pessoa, bem como a de utilizar pronomes possessivos da primeira pessoa ― o que forçosamente acusam o “mim”. Pode ser que em outro scherzo me dê a doida e exclua de todo o texto esses recursos gramaticais ― o que provavelmente daria uma bela tralha acadêmica, com o convencional abuso do pronome apassivador mesmo ao se falar de experiências pessoais, como em “Percebeu-se uma grande dor no cotovelo direito”.

Por que os scherzos? Porque precisava de algum estímulo de escrita enquanto alguma ideia séria de texto não surgia. Queria algum artifício análogo ao improviso para a música ou o croqui para o desenho, um exercício de linguagem que impulsionasse a expansão de seu campo de possibilidades e que pudesse ser feito despretensiosamente, em uma tarde de domingo, só pelo puro prazer. Em algum outro texto destas Ideias de Chirico devo ter escrito que a prosa é uma linguagem que não permite naturalmente que possamos escrever pelo mero prazer de escrever...

Scherzo significa “jogo” ou “brincadeira” em língua italiana; também é um movimento musical da música erudita, uma parte da peça musical desenrolada velozmente. Da mesma forma, tento escrever com a maior velocidade possível.

Este que vos escreve poderia muito bem também escrever um texto avulso sobre si mesmo, copicolá-lo em um Gepetto qualquer desses desta onda de IA e pedir-lhe para que retire todos os pronomes pessoais. Como parte do jogo, estou escrevendo a primeira versão deste texto na minha querida Remington 15, sem chance sequer de utilizar o backspace. O limite de páginas? Quem sabe. Bref. Tenho falado de tudo, menos de mim. Como este será o primeiro texto que publico no ano, falarei sobre o meu Réveillon.

Virei o ano de 2024 para o de 2025 na casa de minha cunhada, junto com meu irmão e alguns de seus amigos. Estive muito indeciso nesta opção porque aquele fora um espaço no qual passei uma parte não muito agradável da pandemia. Mas ou era isso, ou atravessar um mar de gente na festa pública na praia de Fortaleza, longe de casa e sob os perigos noturnos.

Outro motivo que me fez optar por reveillar indoors foi a própria presença do meu irmão, que atualmente mora nos Estados Unidos, trabalhando com pesquisa na área de produção animal. Só posso vê-lo uma vez ao ano, quando muito duas. Como estaremos longe um do outro em breve ― voltará lá para cima em meados de janeiro ―, preferi ficar com ele. Os amigos e familiares que moram próximo e que foram à praia poderiam esperar...

Nesta virada de ano fiz coisas comuns, mas que não costumo fazer. Imaginem o quê? Dançar e cantar. Depois da virada, me apareceu uma mulher, amiga de minha cunhada, que me puxou para dançar. Como se fala em “Promessa ao amanhecer”, “O que uma mulher quer, Deus também quer”. Mesmo sem ter dado um passo de forró na vida, aceitei o desafio de aprender a dirigir com o carro andando. Não me saí mal, mas, de qualquer modo, ainda bem que não houve registros da festa ― não que se saiba.

Ao pé da varanda da casa, os anfitriões montaram um pequeno espaço com projetores de tela, caixa de som e microfones. Ou seja, montaram um palco de karaokê! Como já dava meia noite e meia, como ninguém começara a cantar, e como a cerveja já esquentava na barriga, tive a iniciativa de cantar uma das poucas músicas que sei de cor: “Bella Ciao”. Não, não a aprendi por conta de La casa de papel. Sim, sei língua italiana e a cantei fora do tom. Mas como “Bella ciao” é cantada em estádios de futebol italianos por torcidas antifa, me senti confortável ao desafinar.

Desta vez tentei contrastar a experiência do Réveillon do ano passado, que passei involuntariamente sozinho por vários motivos, entre os quais a falta de férias no trabalho que eu tinha então. Como não foi uma boa, decidi fazer o oposto daquilo, e brincar enquanto boa parte das pessoas do mundo também brincavam.

Certas datas festivas, como Natal e Carnaval, consigo atravessar sozinho. Nunca gostei das alegrias planejadas desses dois dias. Não é o caso do Ano Novo. Desde criança me acostumei a sair com a família e com amigos para ir a algum lugar aberto, onde se possa ver fogos de artifício, rir e beber cerveja. Meu organismo já está programado para fazê-lo na primeira hora de todo ano.

Acho que já está bom por este scherzo. Na hora da revisão, espero não ter perdido o jogo mais vezes do que esperava enquanto escrevia. Obrigado pela leitura e feliz Ano Novo!

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Capa do disco “Nadadenovo”.

Em um tempo quando ouvir música na internet não era fácil, tive o hábito de gravar CDs com álbuns que eu, com muito esforço, baixava. Ao passar dos anos, guardei alguns deles e, ao contrário do restante dos meus arquivos pessoais, eles perduraram. Com o tempo, fui os acumulando e organizando por ano (o disco de 2016, de 2017 etc.) ou por ordem alfabética (A-P, M-Z etc.).

Até que um dia decido revisitar alguns desses discos, que estiveram todos esses anos guardados no fundo da gaveta de minha escrivaninha. Na superfície de um deles, escrevi “2015”. Aquele fora um ano de muita experimentação e de pesquisa de novos gêneros musicais. Eu era capaz de ouvir qualquer coisa que me recomendassem...

Foi nesse período que comecei a ouvir o jazz de um Miles Davis, as sinfonias de Antonín Dvořák ou de Heitor Villa-Lobos, o folk de Bert Jansch e uma série de grupos do assim-chamado “post-rock”, como Godspeed You! Black Emperor, Bark Psychosis e Stereolab. Eu tinha então 19 anos, estava em um período de pré-vestibular, ainda por me entender e me descobrir, com todo o futuro em aberto.

De todos esses grupos, saquei um ao qual no tempo não dei tanta atenção, que fizera muito sucesso entre 2005 e 2015, e que, sabe-se lá o porquê, acabei gravando no disco: “Nadadenovo”, o primeiro do grupo de rock alternativo Mombojó, gravado em 2004.

No princípio da reescuta, me agradou o nostálgico que era o ouvir: ele me fazia recordar daquela época da infância quando se passava a maior parte do tempo em frente à televisão, assistindo à MTV ou qualquer outra bobagem da rede aberta; dos romances que eu ouvia de amigos mais velhos; dos passeios em família, nos quais meu irmão mais velho punha música no carro de nossos pais; também de outras bandas de rock alternativo brasileiro como Los Hermanos, Vivendo do Ócio e Móveis Coloniais de Acaju, que eram muito ao gosto dos hipsters de então; e, por fim, daquele mesmo ano de 2015, de uma difícil, mas feliz, solidão.

Mas claro, não há música de qualidade que sobreviva só de nostalgia. Depois do primeiro encontro, vem o segundo interesse: Mombojó é de um som imprevisível. Como o disco “Ao som dos planetas”, sobre o qual já escrevi nestas mesmas Ideias de Chirico, nas canções de “Nadadenovo” somos a todo momento jogados de um gênero musical a outro, de um ritmo a outro. Mas, diferentemente desse disco de Alberto Continentino, essas variações acontecem em uma mesma faixa, e acontecem gentilmente, por vezes timidamente, sem um movimento brusco.

Temos por exemplo, “Deixe-se acreditar”, a segunda faixa do disco, que se introduz com um envolvente surf music, para então partir para um rock arisco com acordes oitavados, típicos do hardcore, e é encerrada com um tema de bossa-nova ― tudo isso em um pequeno raio de três minutos. Durante a escuta do disco, com muita frequência somos carregados nessa montanha russa rítmica.

Outro ponto forte de “Nadadenovo” é a vastidão de sua paleta de timbres. Durante o disco acompanhamos toda sorte de instrumentos acústicos (como violões clássicos e flautas transversais ― um forte das composições) e instrumentos eletrônicos (como baterias sintéticas e teclados elétricos), bem como o tratamento elétrico-acústico de vocais, com manipulação de frequências, como em “Nem parece”, no qual ouvimos o vocal alternando ora para um timbre limpo de estúdio, ora para um timbre de ligação telefônica.

As letras não possuem muita variação de temas. A maior parte delas são a respeito de romances acabados ou mal acabados, algumas com uma roupagem por vezes surreal ― como em “Faaca”, cujo refrão diz repetida e alegremente:

Eu quero ver você dançar

em cima duma faca

molhada de sangue

enfiada no meu coração.

Somado a esse surrealismo, junta-se um curioso uso de samples por vezes non-sense, como em “Estático” ― disparado a minha faixa preferida. Sua letra fala a respeito de um amante desiludido que acha que o relacionamento “Não vale mesmo a pena, não”. O que faz o contraponto com o vocal principal? As gravações de uma criança na primeira fase da linguagem, que balbucia coisas como “Vai ter de tomar tudo!”, “Eu vou inventar!” e “Vamo'fritar o boi!”

“Nadadenovo” com certeza é um dos discos mais originais de sua geração ― digo... da geração de grupos de rock alternativo. Por isso, guarda os males de um grupo de rock ― sobremaneira o de manter uma linguagem musical convencional.

As composições são em grande parte em compasso quaternário, típico da música mainstream, e não há modulações harmônicas de nenhuma espécie, que são comuns em outros gêneros musicais e que tornam as músicas mais dinâmicas. Isso faz com que algumas mudanças rítmicas soem familiares e gentis, sim, mas, por vezes, sem fundamento.

Apesar daquela mudança constante de gêneros e ritmos, ela não é feita sob costura sígnica alguma, isto é, parece arbitrária, não constrói significados. Isso mantém a parte instrumental e a parte “verbal” em planos distintos, como se um não se reconhecesse no outro.

À parte disso, “Nadadenovo” é um disco que vale a pena revisitar quando já o temos esquecido por anos no fundo de uma gaveta, logo depois da primeira escuta ― que deve ser feita de preferência sob o céu limpo de uma tarde de namoro.

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A esta altura do blogue, vocês já devem ter percebido que sou aficcionado pelo protocolo RSS. Gosto do prático do RSS, das possibilidades de curadoria que permite, do ritmo lento que impõe na rotina, da abertura para as mais diversas mídias, como podcasts... Tenho um ritual semanal de ler o feed de textos em todo lugar que vou no meu querido Kindle, para então chegar a sexta-feira e atualizá-lo de novo. Me agrada ver a caixa de textos aos poucos se enchendo inteiro outra vez. É um ciclo viciante!

Entre as listas de leituras que mantenho, está a de favoritos ― sítios web dos quais não perco uma atualização sequer. Nela mantenho o feed de “In the margins”, blogue de Mike Grindle, que, como seu nome denuncia, é um escritor anglófono. Quando o leio, consigo quase ouvir a sua voz... Há um vivaz frescor em sua escrita, é algo que flui. Isso não tem a ver em absoluto com o fato de ele utilizar palavras familiares ― com frequência consulto o dicionário. Essa consulta constante nem de longe estraga o prazer da leitura. Tomo este trecho aleatório de um de seus últimos textos:

This home of my mother’s parents has hosted our family for generations. My mother and her mother grew up there, and their mothers and fathers before that. Several in-laws, uncles, aunties, and even I have also lived there at some point or another. And like any good family home, so many of our memories are tied to the place, from Christmas mornings to after parties of family events, rainy days and happy moments.

But today, everyone is gone, having all moved on or passed away.

The only person left is my grandmother, who will soon be moving home herself. The place is far too big for her now and home to what I can only imagine are far too many ghosts. A new family would better put the place to use. And my nan would be much better off starting anew somewhere else.

(“Saying Goodbye to a Family Home”).

Por qual razão me agrada o ler? Graças à gramática simplificada, o inglês não tem grandes diferenças de estilo entre a fala e a escrita. Essa proximidade pode influenciar a recepção do texto. Ao falar de fluidez na leitura, lembro do escritor e blogueiro belga Lionel “Ploum” Dricot. Talvez alguns de vocês não possam compreender o idioma francês, mas basta que vejam a “mancha” na tela e notem o comprimento das frases deste recente texto seu:

Nous sommes désormais connectés partout, tout le temps. J’appelle cela “l’hyperconnexion” (et elle ne passe pas nécessairement par les écrans).

Parfois, je tente de me convaincre que mon addiction personnelle à cette hyperconnexion est surtout liée à mon côté geek, que je ne peux généraliser mon cas.

Et puis, quand je roule à vélo, je me rends compte du nombre de piétons qui n’entendent pas ma sonnette, qui ne me voie pas arriver (même de face), qui ne s’écartent pas et qui, lorsqu’ils réalisent ma présence (qui va, dans certains cas, jusqu’à nécessiter une tape sur l’épaule), ont un air complètement abruti, comme si je venais de les extirper d’un univers parallèle.

Et puis je vois cette mère, dans une salle d’attente, dont la petite fille de deux ans tente vainement d’attirer l’attention « Regarde maman ! Regarde ! ».

(Hyperconnexion, addiction et obéissance).

Apesar de eu ainda estar aprendendo a língua francesa, não tenho grandes dificuldades para compreender Ploum. Seu vocabulário é ordinário ao lado do de Grindle, mas o francês, em termos gramaticais, é muito mais complexo do que o inglês. Redundante dizê-lo, mas um texto em inglês não é interessante só pelo fato de estar em inglês, assim como um texto em francês não é interessante só pelo fato de estar em francês. Porém, cada língua promove um timbre e uma linguagem diferentes. O que então os textos de Grindle e de Ploum têm em comum?

Ritmo.

Tenho dedicado este ano de 2024 ao estudo da escrita em prosa. Alguns dos livros que mais me fizeram refletir e aprender sobre a prosa, esse “signo do demônio” (segundo o poeta Décio Pignatari), não foram livros de literatura ou de filosofia, mas dois manuais de instrução: “100 ways to improve your writing” e “Make every word count”. Ambos os títulos são do autor estadunidense Gary Provost, e pretendem deliberadamente mostrar como escrever um bom texto em prosa de ficção ou de não ficção.

Pode ser que você tenha franzido o cenho quando falei que esses são livros instrucionais. A diferença deles para outros manuais é que, além de serem excepcionalmente bem escritos, ensinam algo que está sendo feito no ato da leitura. Um raro fenômeno de um texto que ensina a sua própria concepção...

Provost nos dois livros recomenda escrever com base na oralidade e na musicalidade da fala, pensando em uma eventual leitura em voz alta. Creio que essa seja a diferença entre os autores citados daqueles de textos ordinários, como os da publicidade e da burocracia. Tanto Grindle quanto Ploum me possibilitam a leitura oral de suas publicações, independente de vocabulário ou de gramática que utilizem.

Mas bem, o que difere então o ritmo da fala do ritmo da escrita? Quando falamos, paramos para pensar melhor... damos tons de hesitação... deixamos que nosso ouvinte tenha um silêncio de nós mesmos; enfatizamos certas palavras ― variamos o comprimento de nossos enunciados e os alongamos quando temos plena certeza do que falamos. Descontinuamos.

Já a escrita nos permite um não mais cessar de frases e de ideias extremamente elaboradas pelas quais temos a possibilidade de construir frases ad infinitum até chegar ao paroxismo de um enunciado de Marcel Proust que foi capaz de construir uma frase que se alinhada poderia alcançar dois metros de comprimento ― talvez a contrução mais longa da história...

A escrita marcha. A fala samba.

Aproximar a fala da escrita, porém num tem nadavê cõ escrevê assim ou mesmo utilizar gíria rocheda ou uma gramática familiar, 'tá ligado? Escreve Provost em “Make every word count”:

Notice, I said good writing mimics speech. I didn’t say it duplicates it. It hums the music but it doesn’t sing the words. The ear and the brain are tuned in to the patterns of language. It is those patterns, the music of spoken language, that you want to duplicate in your writing.

O olho, assim como o ouvido, requer um descanso. O silêncio é o descanso para a fala; o ponto final é o descanso para a escrita. O que está entre esses dois silêncios é o que constitui a música textual. Me parece correta a tese de Provost de que padrões que funcionam em uma fala atraente são os mesmos que comandam uma escrita atraente.

A menção de dois autores anglófonos neste texto não é fortuita. Tenho a impressão de que os autores de língua inglesa, por conta da proximidade gramatical entre sua fala e sua escrita, rapidamente compreendem que as formas da língua falada também são interessantes em estado de escrita. Ou pode ser que haja uma formação comum entre toda a comunidade de língua inglesa, quem sabe?

Autores lusófonos e italófonos, por sua vez, estão infectados de um ranço academicista que os impede de ouvir o que escrevem e de perceber as formas orais de expressão. Um exemplo disso pode ser este trecho de um texto recente do ótimo blogue de cinema e política, o Cinegnose, tocado pelo acadêmico de comunicação Wilson Roberto Vieira Ferreira:

De toda a complexidade política e econômica da engenharia de um golpe de Estado, ficou no imaginário coletivo para a posteridade as fotos de tanques cercando o Congresso Nacional, soldados armados perseguindo civis nas ruas, mas, principalmente, o trauma histórico do AI-5, prisões, sequestros, desaparecimentos de cidadãos e torturas nos porões de delegacias contra opositores da ditadura militar.

(”'Plano Punhal Verde e Amarelo', não-acontecimento e paralisia estratégica”).

Cinco linhas de uma mesma frase, das quais duas são enumerações mais ou menos prescindíveis. Leia o trecho com a voz; em seguida o leia em silêncio. No primeiro caso a voz cansa; no segundo a mente cansa.

Você pode até indagar que há assuntos ou argumentos que requerem uma frase longa, um parágrafo longo, ou que a prolixidade pode ser utilizada estilisticamente. E eu não tenho opção a não ser concordar com isso. A chave de tudo é o balanço. A mente, os olhos e os ouvidos requerem variações, e requerem novidade.

Mas não ficarei aqui apenas regurgitando as lições provostianas (leiam Gary Provost!), insisto que um texto interessante, mais do que ter argumentos interessantes, tem uma forma interessante. Tenho muita mais facilidade de aceitar uma ideia quando ela é bem escrita. Também por isso rapidamente me alinhei às ideias sobre tecnologia de Marshall McLuhan por exemplo. É por esta razão também que tenho resistência a ler textos filosóficos e tanta tolerância a ler textos de ensaios e de blogues: nesses últimos as ideias são escritas não apenas para serem entendidas, mas também dissecadas e apreciadas. São ideias com corpo.

Outro aspecto pouco discutido sobre estilo é a influência do instrumento utilizado no processo do texto. Com a ubiquidade do computador, as pessoas esqueceram-se de que é possível escrever por outras vias, inclusive com a voz, como já escrevi neste blogue. Sabendo mesmo dessa grande oferta de instrumentos, até construí uma caixa de ferramentas de escrita.

Da mesma forma que a tinta e o pincel dão um resultado diverso em relação à espátula ou ao carvão na mão de um artista plástico, ou como cada instrumento musical proporciona um humor diferente para a mesma melodia, cada ferramenta de escrita desenvolve um texto de natureza distinta...

Quando escrevo no computador e apago, perco o registro do que fiz (malgrado a existência do Ctrl + Z). Já quando escrevo em papel, percebo dois efeitos: a consciência das decisões tomadas em cada parte do texto e a expansão que acontece a cada revisão.

Quando edito um rascunho no computador, tendo a reescrevê-lo somente uma vez, ao passo que, quando estou trabalhando em papel, reescrevo, expando e reviso o texto mais vezes. O texto em tela permite a visualização integral. o texto em papel permite sua fermentação. Além disso, se quero a leitura comentada de uma pessoa, é muito mais provável que ela o faça com papel em mãos do que se eu lhe enviar um .pdf...

Cada instrumento de escrita parece impor um ritmo distinto ao texto. O bloco de notas, que não comporta mais do que quatro palavras por linha, leva a uma escrita curta e compacta, a golpes, em cápsulas que procuram comprimir ideias ― é o meio perfeito para a construção de aforismos; a escrita em um caderno é flúida, mas muito concentrada ― é a escrita-tricô, ideal para textos meditativos, intrapessoais; o gravador de voz não suporta um texto acabado, oscila entre projeto e “arte final”, é a escrita-montanha-russa dos brainstorms; já o computador, com o seu magnânimo backspace, faz com que a escrita sofra de um constante coito interrompido, que seja descontinuada e retomada diversas vezes; e, por fim, a máquina de escrever é um híbrido entre a concentração de um caderno e a velocidade de um computador ― sem backspace, não dá espaço para a correção, só se pode seguir escrevendo.

O tom deste último parágrafo é de completo proselitismo pela escrita analógica, eu sei. Nos primeiros momentos mesmo em que escrevo este texto, estou em uma máquina de escrever. Para mim, ela ainda é uma ferramenta nova, ainda por ser dominada e por ter suas potencialidades descobertas.

Entretanto, para a guerra, toda arma é boa. Para a escrita, toda ferramenta é boa. Para cada necessidade há um meio ideal. No entanto, é preciso estar consciente do efeito que cada um deles promove, e me parece que os escritores e outros trabalhadores de texto não o estão, talvez por conta da natureza midiática do veículo com que trabalham, demasiado simbólica e de alta definição...

Língua, ritmo e instrumento, creio, são o estilete que escupem o estilo!

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Estava pensando no final de “Manhattan” (1979), de Woody Allen.

Sempre que penso em cinema clássico, é a cena final de “Manhattan” que me vem à cabeça. Posso não ter visto suficientes filmes, mas sinto que é como se Woody Allen tivesse criado com essa sequência o paradigma de final de filme romântico.

É magistral a montagem inteira do filme; a sincronia entre música e fotografia; sem falar dos diálogos, que têm um taime e um ritmo maravilhosos.

Infelizmente Allen nunca conseguiu repetir o que fez em “Manhattan”. “Manhattan” é o paroxismo alleniano. Não há outro filme como “Manhattan”.

#notas #cultura


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Um dos grandes diferenciais da música em relação a outras linguagens é de ela ser um “signo puro” ― ou algo perto disso. Com isso quero dizer: a música, algumas vezes, não faz referência outra que não a ela mesma. Daí que temos essa vastidão de canções e peças musicais que são verdadeiras paisagens, que não são outra coisa senão elas mesmas. Não é como a arte da palavra que, mesmo em estado de poesia, necessita de um referencial no mundo para se legitimar.

Pensando nessa ausência de referencial, eis então a sensação que eu tinha ao ouvir o disco “Ao som dos planetas” (2015), o primeiro de Alberto Continentino: a de estar em uma sala clara, ou algum outro ambiente limpo, que se movimenta.

Esta, porém, não era uma sensação aleatória. Explico.

Na capa do disco, vemos Alberto Continentino, que faz os baixos elétrico e erudito e as composições; à sua direita, Vivian Muller, sua esposa, que faz os vocais, acompanhando ou acompanhada de Alberto; abaixo deles, uma curva de pele arrepiada; e, ao fundo de tudo, o breu do espaço sideral.

Em um primeiro momento, poderíamos pensar neste “planeta” arrepiado como a representação de êxtase causado pelo disco. Mas não. Alberto e Vivian, que durante o processo de gravação esperavam o nascimento de um filha, decidiram estampar a barriga de grávida na capa.

Sabendo desse fato, podemos agora pensar que os “planetas” do disco não são só as do espaço sideral, mas também as do espaço uterino... Antes eu falara que esse álbum me causa a sensação de estar em um espaço limpo que se move. Qual o único espaço esterilizado no mundo que está naturalmente em movimento? O útero!

Um dos motivos pelos quais o disco debutante de Continentino nos dá a sensação de se estar em um espaço sideruterino é a constante alternância de gêneros musicais, que ocorre de uma faixa à outra. Alberto fez sua carreira como baixista, e já colaborou com nomes como Marcos Valle, João Donato, Adriana Calcanhotto, Edu Lobo e Milton Nascimento.

Podemos ver toda essa versatilidade da carreira de Continentino enquanto somos levados por um jazz brincante como o de “Tic Tac”, pela bossa nova de “Tudo” e “Náufrago” e pelo soft rock de “Sessão da Tarde” e “Summer's Day” ― tudo isso involucrado em extrovertidos instrumentos musicais que giram e giram, como naves espaçomusicais.

Ouvimos em “Tic Tac” os vibrafones que, junto aos metais de sopro e essa espécie de “dueto” de guitarras (que, graças ao excelente trabalho de ambientação binaural do disco, rodam em nossos ouvidos), e dão um teor, mais do que bem humorado, humorístico a uma canção que fala de amor.

A mesma impressão de ambiguidade e ironia é deixada por “Double Dip”, que inicia como um tenso quarteto de guitarra, baixo, vibrafone e bateria vassourada que, a princípio, daria uma ótima trilha sonora de um filme policial, quando, apenas o trompete é chegado ao coro, o passo astuto do detetive torna-se um caminhar de pato. Nesta faixa, ainda vale notar o brilhante protagonismo do contrabaixo, mesmo quando em posição de cama harmônica ou contraponto.

Quando não há o famoso “papapá” a fim de fazer a vontade de cantar cobrir a falta de letra, como dito pelo próprio compositor em entrevista à Globo, as letras são de uma delicadeza irreconhecível ao lado da fanfarra de outras músicas. A introdução de “Sistema de Som”, por exemplo, tem uma cadência de fazer inveja ao maior dos trovadores:

Mesmo sem ter uma direção,

Não podemos parar...

Agora, não.

O disco debutante de Alberto Continentino foi capaz de unir opostos e contradições, em uma postura que, além de versátil, é contemporânea, conseguindo pôr lado a lado o amor e o humor, a seriedade e a ironia, o velho e o novo, a dança e a quietude, podendo causar no ouvinte efeitos de hipnose, introspecção ou extrema atenção. Um disco que vale a escuta e uma homenagem em 2025, quando o seu lançamento completará 10 anos.

#cultura


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Dispositivo Kindle sendo manuseado por uma mão feminina.

Imagem: Pinterest.

O Amazon Kindle, ao lado das invenções dos últimos trinta anos, é uma estranha tecnologia. Com tela sem emissão de luz, bateria durável, um corpo leve e portátil, esse é um dos raros aparelhos modernos que são feitos para durar, e possui uma única função: a leitura. As versões mais recentes desse leitor digital dispõem de conectividade wi-fi, o que permite a compra e a recepção de livros digitais, a tornar o processo de aquisição mais conveniente e mais prático para quem tem zero traquejo com tecnologia.

Na minha experiência, isso é “conveniente” até a página três... Há um tempo eu penava com a quantidade de passos necessários para o envio de livros .epub para o meu Kindle. Era necessário antes de tudo ter internet; depois era necessário abrir o navegador; depois logar no cliente de e-mail; depois enviar os arquivos para e-mail Amazon; para só então ter a rasa esperança de todos os livros que anexei serem reconhecidos pelo dispositivo; e, enfim... ler!

Pensando em um texto do blogue do Felipe Siles ― aqui também da casa ― falando sobre seus hábitos de leitura, passei a utilizar o calibre como veículo de transmissão de livros para o leitor digital. Calibre é um programa que permite a manutenção, edição e organização de livros digitais para dispositivos que aceitem esses arquivos com muita praticidade.

O envio de livros digitais, que através do e-mail levava cinco passos para ser realizado, pelo calibre resume-se a três: espetar o Kindle no computador; clicar em “Enviar livro para dispositivo”; ler. Utilizá-lo era também uma forma de prescindir do serviço de sincronização de livros e de progresso de leitura, muito útil para quem lê por mais de um dispositivo. No meu caso, eu só lia pelo Kindle.

E eis que fuçando o programa acabo por descobrir um recurso muito útil: o de importar e carregar feeds RSS. Eventualmente descobri também que é possível, ainda através do calibre, converter páginas web em arquivos .epub.

Tudo isso fez com que eu acabasse usando menos telas LCD para leitura, tendo, pois, mais conforto visual, e também matando mais rápido minha lista de leituras pendentes de artigos em páginas web que eu salvara. Neste texto mostrarei como é possível ler mais pelo Kindle, seja linques soltos da internet, seja artigos organizados em feed RSS, ou seja ainda através do download de livros.

Importando feed RSS

Após ler um artigo publicado no Manual do Usuário sobre um desenvolvedor que produziu um programa que “imprimisse” um “jornal” a partir de linques de sítios curados, fiquei pensando: e se fosse possível fazer o mesmo, só que em uma tecnologia de tela e-ink ― como o Kindle?

E, juntando os pontinhos, vi que há uma forma de fazê-lo: importando feeds RSS através do programa calibre! Caso não saiba o que é um feed RSS, sugiro a leitura deste artigo também do Manual do Usuário: “Esta tecnologia permite acompanhar seus sites e blogs favoritos de graça e sem filtragem de posts”. Posso ir já adiantando que, em linhas gerais, o RSS é um protocolo que permite agregar atualizações de vários sítios e blogues em um leitor, onde é possível a leitura offline dos textos, como ocorre com os podcasts ― que também utilizam o protocolo RSS.

Este é o método mais difícil de ler mais através de um leitor digital. Entretanto garanto que é o que mais ocupará o dispositivo. De qualquer modo, seu processo não é nada cronófago, pois o calibre é um programa extremamente intuitivo, desenhado com atenção especial para o Kindle.

O arquivo importado do feed RSS a partir do calibre vem com um leiaute dedicado para esse dispositivo e sua diagramação não deixa a desejar. Nele vemos os domínios organizados em listas de um lado, e em outra os textos publicados pelos mesmos domínios a partir da configuração que deixamos no calibre. Durante a leitura dos artigos, temos uma barra informando o progresso do texto no lado inferior, abaixo disso, o título do próximo artigo, e no lado superior o nome do artigo que está sendo lido.

Pelo programa podemos selecionar a quantidade de notícias dos sítios do feed, e qual será a publicação mais antiga da importação. Infelizmente, alguns artigos vêm sem a data de publicação, o que pode tornar a leitura confusa, já que os textos mais recentes são mostrados primeiro, e não há maneira de organizar uma sequência personalizada de leitura sem ter de retornar ao índice.

Para essa importação, basta você seguir as seguintes etapas:

  1. abra o calibre;

  2. clique na seta lateral à “Obter notícias”;

  3. clique em “Adicionar ou editar uma fonte de notícias personalizada”;

  4. clique em “Importar OPML”, que é o formato de arquivo exportado a partir de um leitor de feed RSS;

  5. escolha o arquivo emitido a partir do seu leitor;

  6. então o programa vai baixar todos os artigos dos links que estão no arquivo;

  7. alguns podem não ser reconhecidos ou podem estar com servidores offline, então vale a conferida antes de passar o arquivo .epub para o Kindle via cabo USB ou e-mail.

Este último método seria o menos cômodo e que se aproximaria mais à experiência de receber uma “revista eletrônica”. No meu caso, porém, como para isso é necessário ter o e-mail Amazon ativo, abortei essa opção. Mas fica a indicação.

Transformando sítios web em arquivo .epub

A segunda forma neste texto de ler mais através do Kindle é mais fácil do que a anterior. Sabe quando você está numa página e instintivamente aperta Ctrl mais “S”, para salvá-la, pensando estar editando um texto? Em lugar de apertar “Esc”, aperte “Enter”. Isso gerará um arquivo .html. Para um melhor resultado, sugiro desabilitar o Javascript. Com o arquivo .html na pasta de “downloads”, agora abra o nosso glorioso calibre e siga os seguintes passos:

  1. clique em “Adicionar livros”;

  2. selecione o arquivo .html gerado a partir da página web desejada;

  3. clique em “Converter livros”;

  4. mantenha o formato “.zip” na parte de “Formato de entrada” e “.epub” em “Formato de saída”;

  5. clique em “OK”;

  6. agora espete o seu dispositivo Kindle no computador;

  7. selecione o arquivo convertido;

  8. dentre as opções que abrirem, escolha “Enviar arquivo para Kindle”.

Baixando livros em .epub

A terceira forma de ler mais pelo Kindle é a mais fácil de todas e só depende de alguns linques. Caso você não saiba, há sítios que disponibilizam livros digitais gratuitamente! Uau! Quem diria que uma coisa assim poderia ser encontrada na atual internet tomada de bostificação e streaminguização, hein?

Dentre os sítios web que conheço e que disponibilizam um material assim, estão: 1. Library Genesis ― espelho um e espelho dois ―; 2. Trantor; e 3. Internet Archive; e 4. Anna's Archive. Caso alguns desses espelhos estejam fora do ar, instale o navegador Tor Browser e experimente as versões “cebolas”, ou “dark web”, desses domínios.

A partir dessas dicas, posso apostar que você estará mais ocupado com o seu Kindle do que com o seu telefone celular cheio de notificações, informações sem curadoria e distrações!

#tecnologia


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Imagem de vários pixels soltos formando duas mãos escrevendo sobre uma máquina de escrever

Imagem: Serenity Strull/BBC/Getty Images.

Reportagens dos últimos dois anos:

Os “telefones burros” voltaram? (vídeo da CNBC, março de 2023).

Porque as câmeras digitais estão retornando (vídeo da TODAY, fevereiro de 2023).

As fitas cassete voltaram, o dilema é encontrar um toca-fitas. (matéria da New York Times, outubro de 2024)

Por que as máquinas de escrever estão tendo um renascimento na era digital (vídeo da PBS NewsHour, outubro de 2024).

Uma tiktoker de 23 anos faz vídeos sobre como e porquê voltou à mídia impressa (artigo da Slate, setembro de 2023).

Graças a entusiastas do minidisc, é possível adicionar músicas do seu smartphone em um tocador de minidisc (matéria da The Verge, outubro de 2024).

Por que tem se falado tão pouco desse súbito renascimento de várias tecnologias de comunicação antigas? De um lado uma indústria gastando rios de dinheiro na promoção das realidades virtual e aumentada, na streaminguização e na bluetoothização das coisas, e, é claro, na inteligência artificial; de outro, a nova geração reciclando aqui e ali várias tecnologias analógicas, como a máquina de escrever, ou tecnologias eletrônicas “ultrapassadas”, como a câmera digital ou mesmo como os blogues, que participam do movimento da chamada Web Revival, da qual estas Ideias de Chirico fazem parte. Tolice pensar que isso é moda de gente saudosista e ludista...

Essa não parece ser simplesmente uma onda sazonal e gratuita, concentrada em estética. Não é também como a moda hipster dos anos 2010, entusiasta sobretudo do vinil e da máquina de escrever ― eventualmente da fita cassete, como em 2016. Essa nova onda revivalista investe em muito mais tecnologias. Não é organizada em um movimento, mas dela pode se apontar um recorte geracional, nacional e de classe ― gente do norte global, de classe média, com idades em torno de 25 a 35 anos.

Há uma ímpar, crescente e geral insatisfação pelas tecnologias digitais ― seja por conta da bostificação, seja por conta do lock in, seja por conta da economia de atenção. O que esse pequeno movimento (mesmo que nichado) diz a respeito do Vale do Silício? O que posso dizer é que, definitivamente, o analógico é o novo hi-tech. E o offline é o novo online. Não é por outra razão que o filme “Dias Perfeitos” fez sucesso com o público abaixo de 30 anos... Eis aí todo um mundo ocultado pela digitalização compulsiva da vida. “O futuro do futuro é o presente”, já dizia o midiólogo Marshall McLuhan ― o que implica em dizer que o futuro do presente é o passado. Enquanto uma nova tecnologia for ofertada, não como ferramenta, mas imposta como meio de exclusão social (tal como o carro), o analógico seguirá como vanguarda.

#cultura #tecnologia #notas


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Três desenhos feitos por crianças, que estão sobrepostas sobre uma mesa de madeira gasta.

Sempre foi um sonho meu ser desenhado. Por outra pessoa. Sim, porque no período mesmo em que aprendia a desenhar, eu próprio fiz autorretratos. Mas, para mim, ter a própria imagem feita por outros era um grande sinal de admiração. Não é (tanto) este o caso quando o desenhado e o desenhista são a mesma pessoa...

Claro, autorretratar é um ótimo exercício de autoanálise. Mil autorretratos, no entanto, podem não elevar a autoestima de quem desenha. Talvez fosse essa pequena ponta de carinho que eu gostaria de ter!

Mas aí o destino me fez professor escolar de Língua Portuguesa e agora com frequência sou modelo de meus alunos, que volta e meia me presenteiam com um desenho. Nos últimos seis meses de aula, recebi pelo menos três desenhozinhos ― além de recadinhos. Como forma de agradecimento a eles, nesta publicação analisarei suas artes. Para preservar suas identidades, os nomes abaixo são fictícios.

Toca o Vivaldi, DJ!

“Arlon, 04.04.24”, arte de Paula Benevides.

Desenho feito por uma criança. É o retrato de um homem jovem de barba e cabelos curtos. Está feito em estilo mangá.

Nem todos os autorretratos de Rembrandt juntos atingiriam a profundeza que esta obra de Paula Benevides, estudante de 14 anos, atinge. Em papel pólen 70 g/m², com a gramatura alta o suficiente para suportar uma boa camada de grafite, “Arlon, 04.04.24” é uma obra prima da arte discente. O modelo, autodeclarado branco, foi retratado com traços indígenas ― olhos puxados, cabelos lisos, lábios finos ―, um fenótipo muito presente na população do Ceará. Isso implicaria em uma dívida geracional aos povos originários ― “todos somos descendentes de indígenas”?

A figura retratada mostra uma aparente apatia frente ao que está diante de si (sua presença demarcada pela penumbra sobre os olhos); isso, no entanto, só disfarçaria sua segurança, similar ao de um atleta olímpico diante de uma prova decisiva ― o modelo é posto de frente ao observador provavelmente para provocar este efeito.

Nesta obra enfatizaram-se os ombros, denotando estabilidade. Para a artista, o modelo é uma figura de autoridade, mas que flutua ― não se vê seus pés. Apenas um Velásquez pintando a família real espanhola seria capaz de tamanho feito.

É possível notar a influência das iluminuras japonesas, bem como a arte contemporânea do mangá, o que torna a obra de Paula Benevides um ícone da arte pop brasileira...

“04/06/24 Arlon”, de Eddy Leite.

Desenho feito por uma criança. É o retrato de uma figura masculina de óculos, camiseta e calças. Está em estilo de cartum.

Traço näif, humor, simplicidade e objetividade: essas são características da primorosa arte de Eddy Leite, estudante de 11 anos, que acaba de despontar em sua promissora carreira através de “04/04/24 Arlon”.

Se por um lado Paula (acima) e Patty (abaixo) preferiram expor closes do modelo, Eddy, detalhista desenhista, preferiu “montar todo o mosaico”, e trabalhou com astúcia movido por seu cubista instinto de mostrar o objeto observado em sua plenitude, buscando não esconder um traço sequer do expectador.

Todas as partes do corpo da figura têm a mesma medida, vejam vocês! Em vez de um corpo de proporção de oito cabeças ― como manda a Academia de Belas-Artes ―, Eddy, conscientemente disruptivo e em um claro protesto contra essa instituição, preferiu desenhá-lo na proporção de três cabeças. Ainda assim, sua obra é muito mais precisa do que o mais acurado afresco de Leonardo da Vinci. Neste momento ― tenho certeza ―, as mais aclamadas salas de aula de desenho acadêmico em Paris devem estar confusas, necessitando de rever toda a sua teoria de anatomia...

Ao contrário das demais artes expostas nesta publicação, Eddy fez o modelo não como alguém que pretende algum confronto, mas como alguém que, diante das intempéries da vida, não se mostra abalado. Notem que, enquanto todo o corpo do modelo possui rugas e marcas de movimento, seu rosto segue liso como bumbum de bebê.

“Prof. Arlon. 'Eu sei que não ficou nada a ver, mas to tentando'”, arte de Patty Ferreira.

Desenho feito por uma criança de uma cabeça de cabelos curtos e óculos. A orelha esquerda tem um pequeno buraco no lóbulo.

Esta obra foi realizada por Patty, uma estudante de 11 anos, e é um grafite sobre papel ofício 65 g/m², entregue em um caprichado envelope artesanal de material igual ao da obra.

Patty, na incrível altura de seus 11 anos, já demonstra um excepcional domínio de sua ferramenta artística: o lápis hexagonal de ponta de grafite, da fabricante Bic. A figura central desta obra foi retratada com a dor honesta de um combatente da Segunda Guerra Mundial ou da Guerra do Vietnã ― é possível até mesmo notar pequenas gotas de lágrima em volta dos olhos (ou seriam talvez reflexos de luz ao fim do túnel desta vida que é ser professor?).

A boca de dentes plenamente cerrados denotam um momento de aflição (algo que o deixa como “um goleiro na hora do gol”, como dizia Belchior) ― alguma incompreensão por parte da turma, alguma desobediência, falta de cooperação por parte do estafe escolar? Patty nos convida a terminar de compor este quadro que, com toda a certeza, já ocupa o rol dos cânones ocidentais...

Seu traço é frenético, mas mostra domínio das proporções do rosto humano. Sua direta menção à arte grega do escorço é por demais notável, máxime por sua multidirecionalidade. Além disso, Patty é claramente uma adepta da escola de expressionismo alemão, pois que carrega o frenesi de um Wols, o desespero de um Egon Schiele e a melancolia de uma Käthe Kollwitz.

Os signos que Patty nos fornece são feitos aos mínimos traços: duas linhas formam a orelha, outras duas delineiam o nariz, dois círculos fazem os óculos etc., uma atitude típica de quem entendeu as maiores lições da Escola Bauhaus de design ― “Menos é mais”.

Claramente uma obra que fará demasiado burburinho nos principais museus de arte europeus, como o Centro Pompidou, e que, por conta de sua irreverência deveras singular, circulará bastante pelas principais colunas de arte dos Estados Unidos, como o da New Yorker.


#cotidiano

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