A esta altura do blogue, vocês já devem ter percebido que sou aficcionado pelo protocolo RSS. Gosto do prático do RSS, das possibilidades de curadoria que permite, do ritmo lento que impõe na rotina, da abertura para as mais diversas mídias, como podcasts... Tenho um ritual semanal de ler o feed de textos em todo lugar que vou no meu querido Kindle, para então chegar a sexta-feira e atualizá-lo de novo. Me agrada ver a caixa de textos aos poucos se enchendo inteiro outra vez. É um ciclo viciante!
Entre as listas de leituras que mantenho, está a de favoritos ― sítios web dos quais não perco uma atualização sequer. Nela mantenho o feed de “In the margins”, blogue de Mike Grindle, que, como seu nome denuncia, é um escritor anglófono. Quando o leio, consigo quase ouvir a sua voz... Há um vivaz frescor em sua escrita, é algo que flui. Isso não tem a ver em absoluto com o fato de ele utilizar palavras familiares ― com frequência consulto o dicionário. Essa consulta constante nem de longe estraga o prazer da leitura. Tomo este trecho aleatório de um de seus últimos textos:
This home of my mother’s parents has hosted our family for generations. My mother and her mother grew up there, and their mothers and fathers before that. Several in-laws, uncles, aunties, and even I have also lived there at some point or another. And like any good family home, so many of our memories are tied to the place, from Christmas mornings to after parties of family events, rainy days and happy moments.
But today, everyone is gone, having all moved on or passed away.
The only person left is my grandmother, who will soon be moving home herself. The place is far too big for her now and home to what I can only imagine are far too many ghosts. A new family would better put the place to use. And my nan would be much better off starting anew somewhere else.
(“Saying Goodbye to a Family Home”).
Por qual razão me agrada o ler? Graças à gramática simplificada, o inglês não tem grandes diferenças de estilo entre a fala e a escrita. Essa proximidade pode influenciar a recepção do texto. Ao falar de fluidez na leitura, lembro do escritor e blogueiro belga Lionel “Ploum” Dricot. Talvez alguns de vocês não possam compreender o idioma francês, mas basta que vejam a “mancha” na tela e notem o comprimento das frases deste recente texto seu:
Nous sommes désormais connectés partout, tout le temps. J’appelle cela “l’hyperconnexion” (et elle ne passe pas nécessairement par les écrans).
Parfois, je tente de me convaincre que mon addiction personnelle à cette hyperconnexion est surtout liée à mon côté geek, que je ne peux généraliser mon cas.
Et puis, quand je roule à vélo, je me rends compte du nombre de piétons qui n’entendent pas ma sonnette, qui ne me voie pas arriver (même de face), qui ne s’écartent pas et qui, lorsqu’ils réalisent ma présence (qui va, dans certains cas, jusqu’à nécessiter une tape sur l’épaule), ont un air complètement abruti, comme si je venais de les extirper d’un univers parallèle.
Et puis je vois cette mère, dans une salle d’attente, dont la petite fille de deux ans tente vainement d’attirer l’attention « Regarde maman ! Regarde ! ».
(Hyperconnexion, addiction et obéissance).
Apesar de eu ainda estar aprendendo a língua francesa, não tenho grandes dificuldades para compreender Ploum. Seu vocabulário é ordinário ao lado do de Grindle, mas o francês, em termos gramaticais, é muito mais complexo do que o inglês. Redundante dizê-lo, mas um texto em inglês não é interessante só pelo fato de estar em inglês, assim como um texto em francês não é interessante só pelo fato de estar em francês. Porém, cada língua promove um timbre e uma linguagem diferentes. O que então os textos de Grindle e de Ploum têm em comum?
Ritmo.
Tenho dedicado este ano de 2024 ao estudo da escrita em prosa. Alguns dos livros que mais me fizeram refletir e aprender sobre a prosa, esse “signo do demônio” (segundo o poeta Décio Pignatari), não foram livros de literatura ou de filosofia, mas dois manuais de instrução: “100 ways to improve your writing” e “Make every word count”. Ambos os títulos são do autor estadunidense Gary Provost, e pretendem deliberadamente mostrar como escrever um bom texto em prosa de ficção ou de não ficção.
Pode ser que você tenha franzido o cenho quando falei que esses são livros instrucionais. A diferença deles para outros manuais é que, além de serem excepcionalmente bem escritos, ensinam algo que está sendo feito no ato da leitura. Um raro fenômeno de um texto que ensina a sua própria concepção...
Provost nos dois livros recomenda escrever com base na oralidade e na musicalidade da fala, pensando em uma eventual leitura em voz alta. Creio que essa seja a diferença entre os autores citados daqueles de textos ordinários, como os da publicidade e da burocracia. Tanto Grindle quanto Ploum me possibilitam a leitura oral de suas publicações, independente de vocabulário ou de gramática que utilizem.
Mas bem, o que difere então o ritmo da fala do ritmo da escrita? Quando falamos, paramos para pensar melhor... damos tons de hesitação... deixamos que nosso ouvinte tenha um silêncio de nós mesmos; enfatizamos certas palavras ― variamos o comprimento de nossos enunciados e os alongamos quando temos plena certeza do que falamos. Descontinuamos.
Já a escrita nos permite um não mais cessar de frases e de ideias extremamente elaboradas pelas quais temos a possibilidade de construir frases ad infinitum até chegar ao paroxismo de um enunciado de Marcel Proust que foi capaz de construir uma frase que se alinhada poderia alcançar dois metros de comprimento ― talvez a contrução mais longa da história...
A escrita marcha. A fala samba.
Aproximar a fala da escrita, porém num tem nadavê cõ escrevê assim ou mesmo utilizar gíria rocheda ou uma gramática familiar, 'tá ligado? Escreve Provost em “Make every word count”:
Notice, I said good writing mimics speech. I didn’t say it duplicates it. It hums the music but it doesn’t sing the words. The ear and the brain are tuned in to the patterns of language. It is those patterns, the music of spoken language, that you want to duplicate in your writing.
O olho, assim como o ouvido, requer um descanso. O silêncio é o descanso para a fala; o ponto final é o descanso para a escrita. O que está entre esses dois silêncios é o que constitui a música textual. Me parece correta a tese de Provost de que padrões que funcionam em uma fala atraente são os mesmos que comandam uma escrita atraente.
A menção de dois autores anglófonos neste texto não é fortuita. Tenho a impressão de que os autores de língua inglesa, por conta da proximidade gramatical entre sua fala e sua escrita, rapidamente compreendem que as formas da língua falada também são interessantes em estado de escrita. Ou pode ser que haja uma formação comum entre toda a comunidade de língua inglesa, quem sabe?
Autores lusófonos e italófonos, por sua vez, estão infectados de um ranço academicista que os impede de ouvir o que escrevem e de perceber as formas orais de expressão. Um exemplo disso pode ser este trecho de um texto recente do ótimo blogue de cinema e política, o Cinegnose, tocado pelo acadêmico de comunicação Wilson Roberto Vieira Ferreira:
De toda a complexidade política e econômica da engenharia de um golpe de Estado, ficou no imaginário coletivo para a posteridade as fotos de tanques cercando o Congresso Nacional, soldados armados perseguindo civis nas ruas, mas, principalmente, o trauma histórico do AI-5, prisões, sequestros, desaparecimentos de cidadãos e torturas nos porões de delegacias contra opositores da ditadura militar.
(”'Plano Punhal Verde e Amarelo', não-acontecimento e paralisia estratégica”).
Cinco linhas de uma mesma frase, das quais duas são enumerações mais ou menos prescindíveis. Leia o trecho com a voz; em seguida o leia em silêncio. No primeiro caso a voz cansa; no segundo a mente cansa.
Você pode até indagar que há assuntos ou argumentos que requerem uma frase longa, um parágrafo longo, ou que a prolixidade pode ser utilizada estilisticamente. E eu não tenho opção a não ser concordar com isso. A chave de tudo é o balanço. A mente, os olhos e os ouvidos requerem variações, e requerem novidade.
Mas não ficarei aqui apenas regurgitando as lições provostianas (leiam Gary Provost!), insisto que um texto interessante, mais do que ter argumentos interessantes, tem uma forma interessante. Tenho muita mais facilidade de aceitar uma ideia quando ela é bem escrita. Também por isso rapidamente me alinhei às ideias sobre tecnologia de Marshall McLuhan por exemplo. É por esta razão também que tenho resistência a ler textos filosóficos e tanta tolerância a ler textos de ensaios e de blogues: nesses últimos as ideias são escritas não apenas para serem entendidas, mas também dissecadas e apreciadas. São ideias com corpo.
Outro aspecto pouco discutido sobre estilo é a influência do instrumento utilizado no processo do texto. Com a ubiquidade do computador, as pessoas esqueceram-se de que é possível escrever por outras vias, inclusive com a voz, como já escrevi neste blogue. Sabendo mesmo dessa grande oferta de instrumentos, até construí uma caixa de ferramentas de escrita.
Da mesma forma que a tinta e o pincel dão um resultado diverso em relação à espátula ou ao carvão na mão de um artista plástico, ou como cada instrumento musical proporciona um humor diferente para a mesma melodia, cada ferramenta de escrita desenvolve um texto de natureza distinta...
Quando escrevo no computador e apago, perco o registro do que fiz (malgrado a existência do Ctrl + Z). Já quando escrevo em papel, percebo dois efeitos: a consciência das decisões tomadas em cada parte do texto e a expansão que acontece a cada revisão.
Quando edito um rascunho no computador, tendo a reescrevê-lo somente uma vez, ao passo que, quando estou trabalhando em papel, reescrevo, expando e reviso o texto mais vezes. O texto em tela permite a visualização integral. o texto em papel permite sua fermentação. Além disso, se quero a leitura comentada de uma pessoa, é muito mais provável que ela o faça com papel em mãos do que se eu lhe enviar um .pdf...
Cada instrumento de escrita parece impor um ritmo distinto ao texto. O bloco de notas, que não comporta mais do que quatro palavras por linha, leva a uma escrita curta e compacta, a golpes, em cápsulas que procuram comprimir ideias ― é o meio perfeito para a construção de aforismos; a escrita em um caderno é flúida, mas muito concentrada ― é a escrita-tricô, ideal para textos meditativos, intrapessoais; o gravador de voz não suporta um texto acabado, oscila entre projeto e “arte final”, é a escrita-montanha-russa dos brainstorms; já o computador, com o seu magnânimo backspace, faz com que a escrita sofra de um constante coito interrompido, que seja descontinuada e retomada diversas vezes; e, por fim, a máquina de escrever é um híbrido entre a concentração de um caderno e a velocidade de um computador ― sem backspace, não dá espaço para a correção, só se pode seguir escrevendo.
O tom deste último parágrafo é de completo proselitismo pela escrita analógica, eu sei. Nos primeiros momentos mesmo em que escrevo este texto, estou em uma máquina de escrever. Para mim, ela ainda é uma ferramenta nova, ainda por ser dominada e por ter suas potencialidades descobertas.
Entretanto, para a guerra, toda arma é boa. Para a escrita, toda ferramenta é boa. Para cada necessidade há um meio ideal. No entanto, é preciso estar consciente do efeito que cada um deles promove, e me parece que os escritores e outros trabalhadores de texto não o estão, talvez por conta da natureza midiática do veículo com que trabalham, demasiado simbólica e de alta definição...
Língua, ritmo e instrumento, creio, são o estilete que escupem o estilo!
CC BY-NC 4.0 • Ideias de Chirico • Comente isto via e-mail • Inscreva-se na newsletter