Ideias de Chirico


Em lembrança do pintor surrealista greco-italiano Giorgio de Chirico (1888 - 1978), o maior ilustrador de ideias de jerico ― e de Chirico! Um blogue fediversal sobre cultura, cotidiano e tecnologia gerenciado por Arlon de Serra Grande e mantido em servidor coletivo da Ayom Media.

Salvador, Cidade Baixa. Foto de Bárbara.

Salvador, Cidade Baixa. Foto de Bárbara.

Em plena era do avião e do veículo leve sobre trilhos, viajar longas distâncias por terra para alguns pode parecer uma bela de uma ideia de Chirico. Em minha condição de estudante e trabalhador em terra estrangeira, no entanto, viajar por esse meio era o que me estava à mão, já que sou contemplado pelo programa ID Jovem.

Por meio dele, pude viajar de Fortaleza para Salvador gratuitamente, tendo de pagar somente a taxa de embarque. Permaneci na capital baiana por duas semanas ― a última de janeiro e a primeira de fevereiro. Devi minha estadia ao querido casal de amigos soteropolitanos Bárbara, a “Bá”, e André, o “Dé”. Por ela ter uma redação de projeto de doutorado por fazer, ele é quem me acompanhou a maior parte dos dias.

Compartilho com vocês algumas impressões “a quente”, feitas no momento da viagem, que vêm de notas de um pequeno diário que levei na mochila. Depois, algumas impressões mais “a frio” de Salvador, percepções que escaparam durante a viagem, as quais não tive tempo de registrar ou que vieram com a distância do meu retorno. Intercalando-as, fotos que tirei pelo meu celular ou que Bárbara tirou em sua câmera digital, além de estáticos de vídeos que fiz pela cidade.

Notas a quente

24 de janeiro (quarta-feira): Em um ônibus Guanabara de dois andares, passo por Rio Grande do Norte, Paraíba, Sergipe. Nas três paradas consecutivas, sinto que a natureza e as gentes suas não são diferentes das do Ceará. Mesmo o sotaque da gente paraibana, da parte de onde parei, lembra um pouco o sotaque da Costa Norte, do oeste e norte cearenses. O Nordeste é tão diverso... Por que manter esse mito de unidade, de cactos e sóis imóveis?

25 de janeiro (quinta-feira): Em Salvador, no Parque da Cidade com Dé. Bárbara “Suei” ficou em casa enquanto passeamos. O tempo está nublado, e há na cidade um quê paulista.

26 de janeiro (sexta-feira): Em SESC Nazaré, ainda em Salvador. Dormi em casa de Alex Simões, um poeta local que eu conhecera em 2021, pelo curso de Poesia Expandida. Ontem fomos ao Pelourinho com Clarisse Lyra, outra poeta de Salvador, e apareceram também Augusto, um pesquisador de Jorge Amado ― gaúcho ―, Camila ― paulista ―, e Mateus ― carioca ―, também escritor. Tive de sair da casa de Alex, pois não poderia ficar comigo. Mato o tempo até as duas da tarde, quando Dé poderá me pegar.

27 de janeiro (sábado): Pelo Pelourinho com Carol. Era noite. Luzes quentes e baixas das tradicionais arandelas de rua. (...) Sobre as escadarias da Fundação Jorge Amado, falou de seu contínuo resgate a antepassados indígenas. Sua fala cantada ― brilhante. Falou a certa volta: “Não tenho medo de morrer (...), mas tenho medo de esquecer o que vivi” (...).

Post scriptum: Carol foi quem me recebeu na primeira vez em que fui a Salvador, em 2019. Nesta volta, levei-lhe alguns mimos cearenses, entre os quais Sequilhos ― biscoitos de leite em pó ―, pedaços de rapadura de amendoim, uma lata do refrigerante de caju São Geraldo, e um cartão-postal da Praia de Iracema, de Fortaleza.

28 de janeiro (domingo): Fui almoçar com Dé e Bá na UFBA. Lugar incrível. É inconcebível como são capazes de fornecer almoço aos domingos. (...)

29 de janeiro (segunda-feira): No Passeio Público com Dé. (...) À noite, saímos eu, Dé, Bá, Luísa e Pedro Sol para um restaurante indiano-árabe-oriental.

Post scriptum: Este restaurante chama-se Pasárgada e fica no bairro Rio Vermelho, próximo (ma non troppo) da Casa de Iemanjá, onde ocorre o famoso cortejo anual à Iemanjá, a todo 2 de fevereiro.

30 de janeiro (terça-feira): No Museu de Arte Contemporânea fui violentamente censurado por um turista (...) por eu ter tocado numa peça que era sonora. Isso, por habilidade de Dé, não acabou nosso passeio. Comemos uma empadinha de doce de leite numa padaria onde tivemos o melhor atendimento possível; conversamos em inglês com dois londrinos num bar de beco; descemos a Ladeira da Barra vendo a Baía de Todos-os-Santos bem na hora dourada, chegando às proximidades do Farol ao pôr-do-sol.

31 de janeiro (quarta-feira): Eu, Bá e Dé saímos em disparada para um cinema às 12:00, onde haveria a projeção de “Il sol dell'avvenire” às 13:00. Iríamos lhe assistir com Vinícius e Gabriel. Almoçamos de improviso algumas marmitas no Shopping Paseo. Dé quebrava as talheres [de plástico] de minuto a minuto. Comi à parmegiana ― saudades de meu pai. Mais tarde nós meninos fomos ao Lago dos Patos, em Pituba ― Bá ficara em casa para escrever. Logo depois, a pegamos e saímos a um restaurante chinês. Nos empanturramos de yakissoba!

1 de fevereiro (quinta-feira): Andei sozinho por um tempo durante a manhã. Pela tarde eu e Dé fomos ao Mercado Modelo ― lembra-me muito das feiras artesanais de Fortaleza. Lá comprei uma camiseta do Olodum e um ímã com uma gravura do Elevador Lacerda, por onde subimos até a Cidade Alta. Era já hora de pôr-do-sol. A Baía de Todos-os-Santos resplandescia. O céu partia-se em laranjas, amarelos e gris. Logo depois, o brilho das cidades ao horizonte. Por fim, tomamos uns copos de cerveja num Bar do Pelô. Dé é um grande amigo!

Crepúsculo a partir da Cidade Alta. Estático de um vídeo.

Crepúsculo a partir da Cidade Alta. Estático de um vídeo.

2 de fevereiro (sexta-feira): Festa de Iemanjá. Dé, Bá e eu acordamos cedinho. Não pudemos ver a partida do cortejo. (...) Pudemos fazer oferendas. Comemos. Almocei fora bem baratinho. Caminho um pouco sozinho. Voltei para casa ensopado e trombei com Vinícius e Gabriel, que saíam para a Barra, onde tomamos sorvete e coco! Pela noite nos encontramos no Rio Vermelho para comer acarajé. Por conta das festas profanas, lá estava um caos.

3 de fevereiro (sábado): Passo o dia sozinho. Bárbara e André ficam em suas casas a fim de finalizar os trabalhos dela. Decido ir à Avenida 7 de setembro para comprar sandálias (as minhas anteriores quebraram durante a Festa de Iemanjá), e “Capitães de Areia”. Compro as sandálias, mas não encontro um sebo aberto sequer. Como estava próximo ao Elevador Lacerda, decido descer à Cidade Baixa. Acabo comprando um chapeuzinho chinês.

Post scriptum: Este chapéu estava em moda naquele momento. Comprei-o porque tinha certeza de que não o encontraria outra vez com facilidade.

4 de fevereiro (domingo): Eu, Dé e Bá almoçamos no Shopping Salvador. (...) Lá haveria um encontro extraordinário do Clube Poliglota local. Falei em inglês com Suzy, em espanhol com Leandro, e em italiano com Gerlon. (...) Mais tarde, eu e Bá fomos ao Museu de Arte Moderna da Bahia. Visitamos a exposição de Walter Firmo e fotografamos o edifício.

Post scriptum: “extraordinário” aqui no sentido de “fora do programado”. Os encontros do CP de Salvador ordinariamente ocorrem aos sábados. No entanto, no primeiro sábado em que estive na cidade, caiu um toró, e no segundo, começavam os preparativos para o carnaval, o que inviabilizava qualquer outra coisa que não a folia.

Foto de Bárbara tiradas por mim na Praia da Gamboa, próxima ao Museu de Arte Moderna da Bahia.

Foto de Bárbara tiradas por mim na Praia da Gamboa, próxima ao Museu de Arte Moderna da Bahia.

5 de fevereiro (segunda-feira): Quando o carnaval está prestes, Salvador prepara tapumes defronte a suas fachadas e muros ― qual estivesse se preparando para uma batalha prevista. Tudo aqui é belo, e tudo aqui é interessante ― mesmo as favelas e mesmo os bairros nobres mais exclusivos ―, mas, (...) tudo é caro, (...) e não há o menor espaço para o ciclista. Não retornarei a Salvador enquanto eu for um estudante pobre.

6 de fevereiro (terça-feira): (...) O ônibus partiria às 8:30. Carol prometera estar lá às 8:00, mas seu metrô atrasou. Carol pisou na plataforma assim que o ônibus manobrava para partir. Sequer pude vê-la. (...) chorei (...). Carol prometeu viajar a Fortaleza em junho.

Notas a frio

Travessia

Brilhar pra sempre,/ brilhar como um farol,/ brilhar com brilho eterno,/ gente é pra brilhar

“Brilhar pra sempre,/ brilhar como um farol,/ brilhar com brilho eterno,/ gente é pra brilhar”, Vladímir Maiakóvski. Foto minha do Farol da Barra.

Lembro-me de uma certa anedota que ouvi do meu amigo serragrandense Nelson. Ele me falava de uma caravana de monges orientais que levavam sete dias na travessia entre uma montanha e outra. Ao fim dessa peregrinação, realizavam uma habitual missão espiritual.

Um engenheiro inglês que viajava pela região, vendo a situação de aparente dificuldade, ofereceu-se-lhes para construir uma ponte da última tecnologia europeia.

Com esse suporte, a peregrinação, que durava sete dias, agora poderia durar apenas dois. Os monges contestaram-no: “Mas de que outra forma poderemos conversar e meditar durante os cinco dias que nos restariam?” Para esses peregrinos, o que interessava não era o destino, mas a travessia.

A vantagem de se viajar por terra é que o atrito com o espaço faz com que se conheça mais do espaço pelo qual se viaja. Parece óbvio, mas em um trajeto por terra de uma hora partindo de um ponto A a um ponto B, um viajante conhece muito mais de A-B do que outro viajante que viaja pelo mesmo trajeto em um mágico tempo de ― digamos ― vinte minutos. Assim, a viagem é cômoda e conveniente, mas, por consequência, previsível.

Já por terra, há mais fricção. Diz algum teórico da comunicação (ou algum marxista): só há informação nas diferenças. Pela fricção, a dialética. Pela fricção, o outro. Pela fricção, o novo.

Na trajetória entre Fortaleza e Salvador, cruzei os estados do Rio Grande do Norte, Paraíba, Sergipe e, claro, Bahia. A cada parada dessa longa viagem de pouco mais de um dia de duração, eu ouvia um sotaque diferente, comia uma comida diversa, via uma paisagem distinta da anterior.

Cruzar o Brasil nordestino por terra é ver desabar o folclore forjado aqui e alhures de um Nordeste homogêneo. Claro, como foi registrado na nota “quente” do dia 24 de janeiro, vez ou outra eu (ou)via o meu povo em outro povo ― o que me surpreendia, pois eram semelhanças que eu não esperava encontrar. Mas mesmo essas semelhanças reforçam a diversidade nordestina, pois fogem das caricaturas de Nordeste.

Terra

Interior baiano. Estático de um vídeo meu.

Interior baiano. Estático de um vídeo.

Atravesso as matas baianas que, imagino, encontram-se próximas do litoral. Daí a algumas horas, chego a Salvador. Essa paisagem rural evoca aquela de “Grande Sertão: Veredas”, romance do mineiro João Guimarães Rosa. Não por acaso: se não falseio, aquela era a região ao sul de Bahia, fronteiriça com Minas Gerais, onde também acontece o romance rosiano.

De minha janela avultam buritizais, mata miúda e verde, eventualmente carnaubais, tortas veredas, cancelas branquinhas, pequenas casas de largos beirais. Emoldurando essa paisagem, um tempo extraordinariamente nublado, que durou os três primeiros dias em que estive em Salvador.

Cidade

Elevador Lacerda. Foto de Bárbara.

Elevador Lacerda. Foto de Bárbara.

Como relatado na nota “quente” do dia 25 de janeiro, havia àquele dia nessa cidade uma atmosfera paulista. Salvador é, contrariando desde 2019 minhas espectativas, uma cidade cosmopolita. Salvador é, como São Paulo, uma antena do mundo ― e também um porto do mundo. Não à toa, há um grande intercâmbio entre a gente paulistana e a gente baiana.

Nas duas cidades predomina o carro, a geografia acidentada e imprevisível desenha as ruas, viadutos e linhas de metrô arranham os arranha-céus. No entanto, em São Paulo é possível lobrigar, aos poucos, uma cidade feita para o pedestre, há uma presença considerável e a contrapelo da bicicleta, e uma reivindicação pelo transporte não motorizado e público.

Por outro lado, nada disso é visível em Salvador. Aqui, o carro engoliu por completo as ruas que, apesar de curvas e feitas inicialmente à medida do pé, acomodaram-se totalmente ao corpo do automóvel.

Em todos os meus trajetos por Salvador, percebo uma “costura” entre os edifícios e entre os bairros, que falta a maioria das grandes cidades que visitei ou morei, como Fortaleza. Nesta, há uma quebra brusca entre o que é, digamos, Messejana e Bairro de Fátima, ou Mucuripe e Meireles; entre todas há portais, sinais claros do término e do início de tudo. Por vezes, até a sensação de clima muda, as gentes mudam, e, ato contínuo, a cultura muda. Há Fortalezas em Fortaleza. E há, em Fortaleza, fortalezas ― semióticas.

Já não o é em Salvador. Há entre todas as regiões soteropolitanas uma firme coesão; uma mal anuncia a outra; sabe-se, quase que por mágica, quando o bairro Graça passa a ser o bairro Canela, ou quando o Pelourinho passa a ser Santo Antônio Além do Carmo ― uma sensibilidade que custa ao viajante assimilar. O fato de que, para cada bairro nobre, há uma periferia “pendurada” ― como me fez perceber André ―, auxilia nessa “costura” urbana.

Gente

Foliões próximo ao Museu de Arte Moderna da Bahia. Foto de Bárbara.

Foliões próximo ao Museu de Arte Moderna da Bahia. Foto de Bárbara.

Uma característica que me chamou muitíssima atenção na gente de Bahia nessa volta foi sua grande afeição ao eavesdrop, i.e., “ouvir de perto alguma conversa privada sem que os falantes notem” (dicionário Cambridge).

Fazê-lo, nesse caso, não é propriamente fofocar, mas estar atento ao entorno acústico, seja para se entreter, seja para se informar do espaço imediato. Os baianos, me parece, têm ouvidos apurados e facilidade de pegar as coisas no ar.

Dessa cultura, creio, é que nasce o melhor da literatura da Bahia. Gary Provost mesmo, autor do best-seller100 ways to improve your writing”, dedica uma bela seção só para falar dos benefícios do eavesdropping ao escritor.

Com frequência, enquanto eu conversava com alguns amigos soteropolitanos em um local fechado, eles acompanhavam mais de uma conversa que rolavam no mesmo recinto, sem entretanto perder o fio do que conversávamos ― e eu, que sou mais visual do que acústico, mal conseguia compreender o que acontecia em nossa mesa, tamanha a azáfama.

Por consequência, são gente de uma refinada educação oral. Interessam-se genuinamente pelo que alguém está falando, sem interrompê-lo. No Ceará, por outro lado, é comum a interrupção da fala do outro ou que mais de uma pessoa fale ao mesmo tempo. Isso é um traço cultural cearense e não tem nada a ver com educação. Mesmo em ambientes formais, é o que acontece.

Retorno

Detalhe de grade do Museu de Arte Moderna da Bahia. Foto de Bárbara.

Detalhe de grade do Museu de Arte Moderna da Bahia. Foto de Bárbara.

Fui a Salvador quase de improviso. Como viajar pelo ID Jovem não depende de minha vontade, mas sim da disponibilidade de vagas, tomei o primeiro ônibus que surgiu em novembro ― ingenuamente sem consultar Bárbara e André sobre suas disponibilidades.

O casal ― natural de Salvador, mas nessa cidade também de férias, como eu ― ocupava-se de outros afazeres, e tinha de muito heroicamente dividir a atenção a familiares, a mim e a outros amigos.

Seus sacrifícios eram notáveis e paulatinamente fizeram-se notar ainda mais. E como eu não estava a par de tudo, muitos desencontros e mal-entendidos surgiram. Pudemos, entretanto, sentar para conversar e acertar tudo. A partir dessa viagem tão longa, sinto que, só agora ― depois de adulto ―, aprendi o valor do diálogo, do amor, e da amizade.

Aprendi também a valorizar o andar sozinho em terra estrangeira. Não era toda a hora que eu poderia contar com a companhia de André. E havia lugares em que eu próprio gostaria de ir sozinho. O jeito, então, era tomar a minha própria mão e passear comigo mesmo.

O fato de se estar temporariamente em terra estrangeira, onde não tenho raízes e onde não sou conhecido, me deu uma sensação desafiadora de liberdade antes inconcebível.

O retorno me deu ganas de buscar explorar minha própria cidade, e me fez perceber que perdi o encanto que eu tinha por ela quando me mudei para cá em 2016, encanto que era ainda mais forte do que tive por Salvador durante esta viagem.

Durante a viagem de retorno decidi que, ao pôr os pés de volta na capital cearense, procuraria turistar como quando cheguei há oito anos. É inegável a dificuldade de ver novidade naquilo que nos é familiar. Como adverte o romancista francês Marcel Proust, “A imobilidade das coisas que nos cercam talvez lhes seja imposta (...) pela imobilidade de nosso pensamento perante elas”. Tudo em um átimo pode ser novo quando nos fazemos novos.

#cotidiano


CC BY-NC 4.0Ideias de ChiricoComente isto via e-mailInscreva-se na newsletter


Desde a infância me fascino pelo vário que é as línguas dos povos. Sempre me faltaram, no entanto, ferramentas para entendê-las. Por muito tempo tive por mim que aprender um idioma estrangeiro era para uma dada elite da qual nunca participei. Mas, depois de muita pesquisa, desde 2020 tenho aprendido inglês, espanhol e italiano. Em fins de 2023 comecei a estudar francês. Aprendi-os por conta própria, sem visitar aulas, nem receber tutoria particular.

Antes de relatar a minha experiência, quero explicar o título deste texto. Alguns de vocês devem ter torcido o nariz quando leram “poliglota” no topo. E com razão! “Poliglota” é um termo desses como “erudito”, “polímata”, “artista” ou alguma outra dessas palavras relativas e relativizadas, proibidas à autorreferenciação, já que só podem ser expressas por uma autoridade, mais “poliglota” ou mais “artista” do que aquele de quem se fala.

Ninguém é capaz de se olhar no espelho e falar seriamente de si para consigo, p. e., “sou um artista” sem que esboce um médio sorriso de autocomicidade ou cinismo contido (se você é capaz de fazê-lo sem rir, tenho uma má notícia, e, não, não tenho o contato de um bom psiquiatra). Segundo o nosso silencioso senso comum, ninguém pode ser por si um poliglota, alguém só pode aspirar a ser um poliglota.

Normas psicossociais à parte, “poliglota” não possui consenso de definição. Usemos um parâmetro quantitativo para o definir. Uma pessoa pode ser chamada de “poliglota” a partir do momento em que domina quantas línguas? Nos três dicionários que tenho em casa tem-se “pessoa que sabe várias línguas” e “pessoa que sabe ou fala muitas línguas”. O sítio do dicionário online Dicio, mais corajoso, diz que a partir do domínio de duas línguas estrangeiras é que alguém pode ser considerado um poliglota.

Evanildo Bechara, o famoso linguista brasileiro, costuma dizer que “devemos ser poliglotas em nossa própria língua”, isto é, termos consciência de nossa língua materna em toda a sua variedade por classe, por gênero, por idade etc. Essa é a definição de “poliglota” que endosso.

Para mim, há poliglotas que só falam uma língua estrangeira, porque a assumem em sua complexidade, em todas as suas variações, que percebem o peso que leva um sotaque ou uma palavra em um dado contexto.

A partir desse pressuposto, defendo que não é propriamente um poliglota aquele que vê as línguas como corpos estanques, entidade etérea de um povo, numa só variante, ou mesmo aquele que vê nelas uma mera utilidade: a língua para trabalhar no exterior, a língua para ler os papers para a pós-graduação, a língua para falar com parentes distantes etc. Para o poliglota a língua nunca é “para algo”, mas sim uma língua é sempre uma língua ― e basta.

O poliglota não tem uma competência, mas uma atitude. Ele é um curioso irremediável a respeito do estrangeiro, a ponto de querer apreender a fala deste em primeira mão ― e não o julga de modo algum. Um não poliglota separa as línguas entre “relevantes” ou “irrelevantes” por um parâmetro arbitrário, como o número de falantes ou a quantidade de artigos científicos numa plataforma acadêmica tal ou qual.

Para o meu irmão Anderson, é uma ideia de Chirico aprender o francês, pois esta tem poucos falantes, se a compararmos com o espanhol, p. e. Escapa-lhe, no entanto, a longeva história da língua francesa, sua influência sobre outros idiomas (inclusive sobre o português), ou mesmo a produção intelectual de seus falantes, sejam ex-colonizadores ou ex-colonizados, que faz com que ela seja não só uma língua de milhões no presente, mas de trilhões na história.

Encerrado este preâmbulo do qual eu não poderia correr, neste texto relatarei o meu percurso para aprender línguas, i. e., o método de aprendizado que adotei, os canais e os grupos que me auxiliaram, e a minha relação com elas antes, durante e depois da aquisição linguística. Espero que isto ajude àqueles que pretendem se aventurar no aprendizado de línguas ou àqueles que precisam de mais meios pelos quais estudá-las.

Inglês

Minha jornada com inglês inicia em 2019. Eu pelejava para aprendê-lo nesse período durante as horas vagas da minha graduação em Língua Portuguesa, com conversações entre colegas do curso de inglês. No entanto, a frequente correção de pronúncia (e sempre, sempre de pronúncia) me desanimava. Além disso, eu tinha uma implacável resistência ao inglês por não ter, naquele momento, o menor interesse pelos Estados Unidos (como se este fosse o único país anglófono!). Iria aprendê-la como passatempo e não tinha então um motivação razoável para seu estudo.

Vem 2020, o ano um da pandemia de Covid-19, e, consigo, vêm a reclusão doméstica, o isolamento social e, também, muito tempo livre. Precisava ocupar a cabeça. Se não me deprimi durante a pandemia, foi graças ao estudo de inglês.

Com o passar dos meses, conheço outras referências de países anglófonos. Senti vontades de ler, p. e., o Understanding Media, do teórico em comunicação canadense Marshall McLuhan, um best-seller a respeito do efeito dos meios de comunicação sobre a sociedade. Senti vontades de ler Dubliners, livro de contos do irlandês James Joyce. Além desses, durante esse período eu quis reler ABC of Reading, um longo ensaio do poeta estadunidense Ezra Pound a respeito da literatura anglófona, que eu lera traduzido anos antes, e que, no entanto, apresentava a maioria dos poemas em inglês. Decidi aprender a língua para tentar lê-los em texto original.

Agora eu tinha um “porquê” de aprendê-la, faltava o “como”. E esse “como”, que era o “estímulo compreensível” (Comprehensible Input), me foi apresentado por um vídeo que conheci em um fórum de discussão. Em lugar de explicá-lo, prefiro que vocês assistam ao vídeo por si mesmos (possui legendas em português):

Focado mais na aquisição de vocabulário contextualizado do que na de vocabulário “em estado de dicionário”, mais no prazer do que na disciplina, Comprehensible Input é o método de aprendizado ideal para estudantes autodidatas. Como é mostrado no vídeo acima, ela parte de uma hípotese de aquisição de linguagem apontada pelo linguista estadunidense Stephen Krashen, e foi muito divulgada pelo poliglota e youtubeiro canadense Steven Kaufmann, quem viria a ser a minha maior referência para o aprendizado de inglês.

Com Steve aprendi que uma das coisas mais importantes para desenvolver bem a escuta de um idioma é ouvi-lo por um voz agradável. Enquanto ele ensinava como aprender línguas, eu aprendia inglês ouvindo sua dicção impecável ― aprendizagem com meta-aprendizagem. Também com ele aprendi que é possível aprender no que ele chama de lazy mode (ou como se diz no Brasil, “por osmose”), com atividades que não exigem tanto foco e que me agradem, como assistir a vídeos na internet ou ouvir podcasts, o que me foi importante, porque eu detestava estudos à moda escolar, como fazer exercícios de fixação e revisar conteúdo.

Além dos livros que li, e de muita escuta de Steve Kaufmann, para aprender inglês revi alguns filmes de que gostava, assisti bastante a séries, sempre com legendas em inglês, como manda a cartilha Comprehensible Input. Às vezes lhes assistia até a contragosto, porque não sou muito de série, mas ao fim acabava gostando. Twilight Zone, The Office estadunidense e The Office britânico são algumas delas (e vamos combinar aqui que The Office britânico é bem mais consistente e criativo do que o estadunidense). Cofcof... Sigamos.

Espanhol

Em 2022, quando vi que era capaz de ler um livro em língua inglesa sem engasgar, decidi que já era hora de estudar espanhol ― parada obrigatória para estudantes falantes de línguas neolatinas.

Ignorante que era da cultura hispânica ou latino-americana, esperava muito pouco do estudo de espanhol ― y entonces me mordí la lengua. O carro-chefe desse estudo foi novamente a literatura: queria ler os escritores do el boom latinoamericano ― García Marquez, Jorge Luiz Borges, Julio Cortázar etc.

No entanto, eu precisava de outra mídia fonte de estudo que não fosse o livro ou o vídeo online, uma vez que, pouco antes, eu começara a trabalhar, tendo de usar transporte público por duas horas diárias. Ler em movimento dentro de uma topique debaixo de sol a pino, vocês sabem, ninguém merece! Além disso, na maior parte do tempo eu estava sem internet móvel, impossibilitado de assistir a vídeos.

A solução: podcasts. Logo de cara, numa pesquisa sobre programas de áudio da América Latina, conheci dois dos meus favoritos até hoje: El Hilo e Radio Ambulante. Ambos são iniciativas da rádio estatal estadunidense NPR, cuja maior parte da equipe é argentina. O primeiro faz reportagens semanais aprofundadíssimas sobre temas quentes do continente, e o segundo conta crônicas latino-americanas. O trabalho de sonoplastia dos dois é impecável. Só de ouvir a introdução do episódio semanal de El Hilo já me arrepio da cabeça aos pés!

A famigerada abertura aparece em 1:15.

Pelos dois programas gargalhei, chorei, me informei, até participei das enquetes de balanço de público, e só não contribuí com a iniciativa, porque, vocês sabem... estudante universitário etc. e tal. Mas acima de tudo me senti mais sintonizado com a minha “quebrada latino-americana” (como dizem os meninos do Xadrez Verbal, outro podcast de que gosto).

E o melhor desses programas é que oferecem as transcrições nos seus sites, que inclusive podem ser recebidos via RSS. No início, quando eu ainda não tinha me acostumado com a velocidade da fala hispânica e nem com o sotaque portenho, na maior parte do tempo estava lendo as transcrições enquando ouvia os episódios ― o que também faz parte da cartilha Comprehensible Input.

Dentre os youtubeiros que me auxiliaram no estudo de espanhol está o Spanish After Hours, canal da simpaticíssima, engraçadíssima, didática, carismática e (ai...) apaixonante Laura (seu nome fictício), que também segue o método Comprehensible Input, e cujos vídeos têm edições impecáveis. Infelizmente Laura tem publicado pouco desde o último ano. Mas o seu acervo já ajuda bastante estudantes iniciantes e intermediários.

Das séries em espanhol, assisti à Casa de Papel, a qual parei na segunda temporada (a sequência me pareceu indigerível), e também à Nada, série argentina de 2023 com participação de Robert De Niro.

A língua espanhola é hoje a língua estrangeira que mais utilizo, seja para me entreter ou me informar, seja para conversar com os imigrantes ou turistas hispanohablantes com que me esbarro nas ruas de Fortaleza.

Italiano

A língua italiana me foi um problema porque, apesar de ela me agradar muito, todas as minhas referências desse país eram não verbais: me agradava a sua arquitetura moderna e antiga, a sua pintura moderna e antiga e a sua música de concerto (instrumental). Seu cinema até poderia me auxiliar, mas ele é desde sempre muito sofisticado, e não o entender poderia me frustrar. Tentar ler livros sobre esses assuntos já no início do estudo seria precoce demais. E para completar, eu não conhecia de antemão nem um nome sequer da literatura italiana.

Ainda havia o agravante da Itália não ter uma grande cultura de compartilhamento na internet. Só para se ter ideia, encontrei o ensaio Saper vedere l'architettura, de Bruno Zevi, traduzido em todas as línguas por mim conhecidas: português, inglês e espanhol ― mas não em italiano.

Por muito tempo esse vácuo linguístico me atormentou. Até que um dia meu amigo Nelson me doou alguns gibis italianos traduzidos, como Tex Willer, Mágico Vento e Julia Kendall. Aí a ficha caiu: vi o quanto o trabalho quadrinista italiano era criativo! Olhei algumas reproduções dos quadrinhos originais. Seu texto era coloquial, mas não difícil de ser compreendido. Decidi então me concentrar nessa mídia para aprender italiano.

Pesquisei quadrinhos por alguns meses em portais de torrent. Como havia poucas sementes, encontrá-los exigiu um trabalho análogo ao da arqueologia e ao da agricultura (que vocês me perdoem o trocadilho). Dentre os disponíveis estavam Dylan Dog, Corto Maltese, além do já mencionado Tex. Além desses, em sebos encontrei uma edição caprichada de L'Uomo Ragno, versão italiana do Homem-Aranha.

Para fazer o “meio de campo” linguístico, segui o canal Learn Italian With Lucrezia, que não segue propriamente o Comprehensible Input, pois se concentra muito em gramática (Lucrezia é professora de formação), mas que publica vídeos em formato de vlog, em que mostra as cidades que ela visita, o que ajuda muitíssimo a agregar vocabulário.

Mais recentemente comecei também a acompanhar o canal do Youtube Daily Cogito e, pelo TikTok, o perfil @whitewhalecafe, dois canais em que se fala sobre filosofia ― aparentemente um dos temas preferidos da gente italiana. Dentre os filmes italinas dos quais gostei estão La Vitta è Bella e Cinema Paradiso.

Francês

Sinto que o aprendizado de francês será duro, mas fluido, uma vez que, desde muito cedo ouço falar da língua. Já no primeiro mês de estudo, eu era capaz de ler textos didáticos em francês sem engasgar. Além disso, conheço de antemão três outras muito influenciadas por ela: inglês, italiano e português. Quero ler Arthur Rimbaud, assistir ao Godard, folhear as Aventuras de Tintin, cantar as peças de Clément Janequin. Por enquanto, estou mais preocupado em adquirir vocabulário. Dois dos principais meios para tanto tem sido os vídeos de ensino de língua francesa, focados em vocabulário, com que me esbarro pelos reels do Instagram, e um canal do Youtube chamado French Comprehensible Input, do suiço Lucas.

O Clube Poliglota

O meu esforço contínuo durante meus estudos era de manter uma boa variedade de mídias de estudos, buscando meios de ler, ouvir e assistir em um idioma estrangeiro sobre os mais diversos temas. Falar em outra língua nunca foi uma prioridade para mim, até porque, como defende Steve Kaufmann, não é sequer necessário falar em outros idiomas para ser um poliglota ― basta compreendê-los. Mas assim era também porque, como estudante autodidata, eu não tinha incentivo externo para praticá-los.

Essa foi a situação até meados de 2023. Enquanto estava de férias na Serra Grande em julho daquele ano, pelo grupo de Whatsapp da minha graduação, recebo um print de uma notícia do jornal O Povo a respeito do Clube Poliglota, um encontro gratuito e não institucional para conversação em idiomas estrangeiros. Decido que, ao retornar a Fortaleza, faria uma visita a um de encontros que ocorriam semanalmente nas noites de sábado, numa praça de um bairro nobre fortalezense.

Desde então, os encontros semanais se tornaram um programa obrigatório para mim. Por conta da socialização com pessoas de todas as idades e nacionalidades, além de aprender organicamente durante os encontros, tenho recebido mais referências das línguas que estudo, e me sentido cada vez mais motivado a estudá-las.

Mais recentemente soube com coordenadores do Clube Poliglota que este é um projeto voluntário e internacional. A maioria das metrópoles brasileiras são contempladas com uma célula do CP, entre as quais estão São Luís, Salvador, Natal, São Paulo, Belo Horizonte, além de Fortaleza, cidade pioneira do projeto no Brasil, se não a primeira no país. Caso queira saber se a sua cidade possui uma célula ou pretende iniciar uma, entre em contato com alguns desses perfis de Instagram acima linkados.

So what? ¿Y ahora? Che cosa fare?

Ainda penso em aprender outras, as mais diferentonas que há: uma língua artificial, como esperanto; uma língua morta ou antiga, como o latim ou o grego antigo; e uma língua sem alfabeto romano, como o russo ou o chinês-mandarim. No entanto, pelo método que adotei, me esbarro na limitação de só poder estudar línguas verbais e com registro midiático. Pelo Comprehensible Input, eu enfrentaria sérios obstáculos se partisse para o estudo de uma língua não verbal, como LIBRAS, ou uma língua minoritária, como o tupi-guarani. Espero que com a experiência dos anos esta dúvida se sane, e os caminhos de novas línguas se abram para mim.

Decidi escrever este texto tanto como uma forma de introduzir aos interessados em aprendizado em línguas ou de auxiliar aqueles que necessitam de mais recursos de estudo. Mas também o escrevi para fazer uma homenagem a esta que tem sido minha atividade favorita dos últimos anos.

Por conta do estudo de línguas, me aprimorei como pessoa: eu que era tão introvertido, passei a me comunicar mais; criei novos hábitos, como assistir a séries, ler quadrinhos e ouvir podcasts; passei a valorizar mais as tecnologias de comunicação, que tem incentivado cada vez mais pessoas a aprender as coisas em geral, e os idiomas estrangeiros em especial; aprendi mais sobre a minha própria língua materna; ampliei minha perspectiva sobre o mundo por conta dos contatos que tive com estrangeiros etc., etc., etc.

Além disso gostaria ainda de fazer loas àqueles que, de longe, sem me conhecer e sem pedir nada em troca, mais me incentivaram a estudar idiomas estrangeiros. Thanks, Steve! Gracias, Laura! Ti ringrazio, Lucrezia! Merci, Lucas!

Colagem em grade 2x2 com quatro imagens. Na primeira, está o canadense Steve, um homem idoso branco e sem barba, de cabelo branco, vestindo casaco azul de zíper. Na segunda está a espanhola Laura, uma mulher jovem e branca, de cabelos castanhos curtos, vestindo uma regata cinza de alças. Na terceira, está a italiana Lucrezia, uma mulher jovem e branca, de cabelos longos e pretos, vestindo óculos de grau e uma camisa longa e branca com colarinho em detalhe preto. Na quarta está o suiço Lucas, um homem jovem branco e com barba rala, vestindo touca cinza e camiseta preta, e está segurando com as duas mãos uma página de folha onde está manuscrito “Lucas”. Todas as imagens são reproduções de vídeos de seus canais no Youtube.

#cotidiano


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Fotografia do livro “Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond: Fotobiografias”. O livro está sobre um tapete vermelho, e em sua capa há o título do livro em letras garrafais interpolado por três pinturas dos três autores.

Leio “Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond: Fotobiografias” (Edições Alumbramento, 2000). Um belo calhamaço. Esse é um compêndio de cartas e escritos literários dos três autores, ilustrado com fotografias, manuscritos e desenhos autorais seus ― tudo em papel couché, caprichosamente diagramado, só vocês vendo. Foi um presente de um grande amigo meu da Serra Grande, o Nelson Cunha, que queria então se desfazer de sua biblioteca particular acumulada por mais de 30 anos ― e que, segundo ele, já não tinha razão de ser.

Enquanto leio o catatau, penso em como antigamente, até através das cartas e bilhetes, as pessoas faziam literatura. Alguns desses escritos não eram simples comunicação utilitária de boas novas, mas uma íntima, privada e ― por que não? ― egoísta literatura, pois de um para um. E aí vêm os biógrafos, vêm o Domínio Público, e é pura sorte nossa de leitores sabermos da beleza que esses autores cochichavam entre si por detrás das cortinas do mundo.

Não quero e nem posso me esticar neste comentário frente ao belo que são os escritos que irei compartilhar aqui. A seguir, duas cartas de Mário de Andrade para Carlos Drummond de Andrade. Na primeira delas, de 1925, Mário lamenta não poder ajudar a elevar a baixo autoestima de Carlos. Na segunda, de 1924, Mário fala sobre a importância de se pensar a cultura como um trabalho coletivo e a longo prazo.

“Não sou capaz de aconselhar você, Carlos. Tudo isso você já se disse. Estou convencido que é o grande desejo de ver você feliz que me deixa assim incapaz de fazer considerações sobre o assunto, de fazer literatura. Penso, repenso e não sai nada. Meu pensamento se resolve todo em afeição. O que vale talvez um pouco nisto tudo é o que eu disse atrás e repito: é certo que uma pessoa da sua sensibilidade e da sua volúpia de consciência não pode ter a felicidade comum que é feita de insensibilidade e de inconsciência. A felicidade de você tem de ser espiritual e a melhor maneira de alcançar isso é ter não a vaidade mas a coragem de si mesmo. O dia em que você sem se amolar com o que disse fulano e sem pensar no que fulano dirá, realizar você pra você o que quer dizer pros outros também, pois que o homem é social, virá a calma grande. Aliás, pois que consciente, sempre rajada de temores e inquietações. (...) É possível que estas filosostrias não adiantem nada pra você... Me perdoe. Já disse que me senti numa cruel incapacidade de responder à carta e pedido de você. Mas acredite? Carlos, alguém de S. Paulo está vivendo a tortura de você, as suas inquietações com profundo carinho e uma fraternidade que não pode ser maior. Talvez seja a vagueza de assunto tão vasto e particular que me deixa assim e não perco a esperança de pra outra vez ser mais útil para você. Se quiser que pensemos juntos me escrea contando tudo à medida que os problemas e os casos forem aparecendo na sua vida. Diante da vida eu jamais tenho o prazer dum espetáculo, eu vivo. Eu não contemplarei você, não tirarei de você motivos de literatura, eu viverei você.

― Carta de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, 1925 (grifos meus)

Eu não amo o Brasil espiritualmente mais que a França ou a Cochichina. Mas é no Brasil que me acontece viver e agora só no Brasil eu penso e por ele tudo sacrifiquei. A língua que escrevo, as ilusões que prezo, os modernismos que faço são pro Brasil. E isso nem sei se tem mérito porque me dá felicidade, que é a minha razão de ser da vida. Foi preciso coragem, confesso, porque as vaidades são muitas. Mas a gente tem a propriedade de substituir uma vaidade por outra. Foi o que fiz. A minha vaidade hoje é de ser transitório. Estraçalho a minha obra. Escrevo língua imbecil, penso ingênuo, só pra chamar atenção dos mais fortes do que eu pra este monstro mole e indeciso que é o Brasil. Os gênios nacionais não são de geração esportânea. Eles nascem porque um amontoado de sacrifícios humanos anteriores lhes preparou a altitude necessária de onde podem descortinar e revelar uma nação. Que me importa que a minha obra não fique? É uma vaidade idiota pensar em ficar, principalmente quando não se sente dentro do corpo aquela fatalidade inelutável que move a mão dos gênios*. O importante não é ficar, é viver. Eu vivo.

― Carta de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, 1924 (grifos meus).

#cultura


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Capa do disco “São Mateus não é um lugar assim tão longe”. Nela está, em primeiro plano, a nuca de Rodrigo Campos, que observa um jogo de futebol de várzea ao fundo, em um campo de areia alaranjada.

Talvez porque a linguagem musical seja para nós mais um recurso de sublimação do que um recurso de imanência, o fato é que é raro encontrar no meio urbano uma música autóctone, “da terra”, que soe como a trilha sonora de sua paisagem, e que dê a ver e ouviver a “cor” de seu lugar de origem — sem, no entanto, mitificá-lo ou folclorizá-lo.

Difícil ouvir por aí peças como Las Cuatro Estaciones Porteñas de Astor Piazzola, que fazem imaginar as ruas vazias de Buenos Aires, ou como as Gymnopédies de Erik Satie que nos projeta a modorra de um boulevard parisiense ao crepúsculo, ou mesmo ouvir alguma das Bachianas de Villa-Lobos, que é capaz de recordar a lida dos trens cargueiros de café do período da Era Vargas. Esse caráter autóctone-musical possui “São Mateus não é um lugar assim tão longe”, um disco que ecoa o subúrbio de São Paulo.

“São Mateus...”, álbum de estreia do cantautor paulista Rodrigo Campos, neste ano completará 15 anos desde seu lançamento em CD, em 2009. Sem grande alcance do público mainstream no seu período de lançamento, mas um sucesso entre o público interessado, rendendo ao músico o prêmio Cata-Vento de “Melhor disco” do ano de 2009, “São Mateus...” é, com certeza, um dos discos mais criativos de sua geração, portador de uma consistência conceitual e sonora rara na música brasileira do século XXI.

Rodrigo Campos tem obras com Juçara Marçal e Romulo Fróes, e já tocou junto de Arnaldo Antunes, Vanessa da Mata e Céu ― através de quem Rodrigo conheceu Beto Villares, aquele que seria um dos futuros produtores de “São Mateus...”. É de Rodrigo Campos os versos que compõem o refrão de “Duas de cinco” (2013), do Criolo:

Compro uma pistola do vapor,
Visto o jaco califórnia azul.
Faço uma mandinga pro terror
— E vou.

Esses versos, sampleadas de “Califórnia Azul”, são ― creio ― a melhor introdução possível à obra de Rodrigo Campos. Está tudo aí: a temática cotidiana, o trabalho profundamente musical sobre a palavra, o suave dedilhado sobre a corda vocal, o canto minimalista nunca sozinho, sempre em diálogo com os demais instrumentos — uma herança da Bossa Nova que poucos artistas da atualidade praticam.

Nesse disco, 12 de das 14 faixas narram, com humanidade e sem o menor traço de estereótipos, a vida nas periferias da Grande São Paulo, a fim de montar um mosaico de retratos de uma classe trabalhadora em ascensão, que convive com a pobreza ao tempo que paulatinamente se intelectualiza e prospera.

Dentre esses retratos estão a carismática e focada professora de “Lúcia”; a doce infância de brincadeiras e de música de “Cavaquinho” em contraste com a amarga infância explorada e abusada de “Mangue e Fogo”; os afetos clandestinos de “Os olhos dela”, “Califórnia Azul” e “Amor na Vila Sônia” ― retratos ambientados na calçada de uma cena de crime, no campo de futebol, no bar da estação de trem, em uma construção, no funeral do antigo vizinho de portão...

Fotografia de Rodrigo Campos no período da gravação de “São Mateus...”. Rodrigo Campos é um homem branco de rosto barbeado e de cabelos pretos, vestindo um casaco de cor creme e de gola alta, e uma boina europeia também de cor creme.

Mas não é só por isso que esse disco pode ser visto como uma música autóctone, mas também por sua natureza sonora. A música de “São Mateus...” é ao mesmo tempo interessada nas lições do Samba, do Pagode e da Bossa Nova, mas também na pesquisa acústico-eletrônica do Rap e no sincopado do Jazz contemporâneo, sempre com aquele ímpeto de invenção propondo novas sensibilidades, própria de uma São Paulo antropofágica, em termos de Oswald de Andrade. “São Mateus...” desvela uma São Paulo ao mesmo tempo alicerçada no concreto das tradições, mas sintonizada na frequência do que há no presente do mundo.

Somada à sua riqueza melódica, harmônica e textual, “São Mateus...” carrega um grande arsenal de timbres, verdadeiros comentadores não verbais das personagens sobre as quais as canções falam. Entre aqueles instrumentos que se destacam está a flutuante guitarra elétrica de “Fim da Cidade”, a prosa entre os sopros, o cavaco e o sintetizador em “Os olhos dela”, os gentis pitacos do acordeão e do cavaco em “Cavaquinho”, os golpes staccatti das cordas friccionadas em “Salve, Fabrício”, o malandro sete cordas de “Isac”. E nem se fale da maravilhosa voz de Luísa Maita em “Os olhos dela”, “Amor na Vila Sônia” e “Mangue e fogo”, talvez o instrumento musical melhor aplicado em todo o disco...

Tudo isso embalado na produção de som que funciona, não como um mero serviço técnico, mas como um instrumento musical per se, que participa ativamente na formulação do signo musical final, seja revestindo os sons acústicos com um belo tratamento eletrônico, seja acrescentando delays imensos às percussões ou fazendo uma boa distribuição binaural.

Conheci “São Mateus...” por ocasião do aniversário da cidade de São Paulo em 2022, quando o poeta e tradutor Arthur Lungov compartilhou em seu Instagram várias canções que, para ele, seriam cartões postais da capital. Entre elas estavam “Amor na Vila Sônia”, que recomendo como introdução ao disco. Recomendo ouvi-la durante uma viagem de ônibus metropolitano ao fim de uma tarde simples, talvez o cenário ideal para ouvir a música de Rodrigo Campos.

Como música autóctone que é, quando ouço o debut de Rodrigo Campos, ainda que eu esteja sendo sacolejado dentro de um micro-ônibus em Fortaleza, sinto que passeio por Perus, Pinheiros, São Mateus, Aricanduva, Vila Sônia e tantas outras cidades paulistanas e tantos outros bairros paulistas, aí vejo que São Paulo não é um lugar assim tão longe!

#cultura


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