Caixa de ferramentas de escrita
Estas Ideias de Chirico agora são escritas nesta Remington 15 (juro para vocês como isso não tem nada a ver com a fonte monoespaçada deste blogue).
Este texto está sendo escrito em uma máquina de escrever. Embora isso não faça uma notável diferença na sua leitura, faz uma cabal diferença na minha escrita.
Em um mundo ansioso pela novidade tecnológica, lançar mão de ferramentas obsoletas, antes predominantes, parece um ato de inadequação, e até mesmo de insanidade. Acontece que não é pela máquina de escrever ser conveniente na maior parte das minhas tarefas que eu a utilizo, mas sim por ela me fornecer um outro tato com o texto que outras não fornecem, e até por me oferecer um outro meio pelo qual pensar.
Costumo dizer que sou um entusiasta de tecnologias. Quando o digo, não me refiro somente aos dispositivos e aos veículos de ponta ― seja a inteligência artificial, o Fediverso, ou assistentes de voz. Quando o digo, também me refiro às tecnologias tradicionais, como o rádio, a televisão e a máquina de escrever.
Neste texto falarei das razões pelas quais decidi adotar este instrumento, como tem sido minha experiência com ele, bem como o modo com o qual tenho o conjugado com outros intrumentos de escrita.
Como adquiri
A máquina de escrever, por ser um artigo de colecionador, é muito difícil de ser encontrado no mercado comum ― e difícil de ser encontrado por um preço acessível. Antes então de conseguir uma, pensava em primeiro experimentá-la.
Porém, na última viagem que fiz, a São Paulo, me encontrava frequentemente com um amigo poeta, Diego Dias, que por acaso também é colecionador de máquinas de escrever.
Diego, que vira que eu tinha um genuíno interesse em adquirir uma, certa noite dispôs uma parte de sua coleção sobre a mesa de seu escritório, que fica no Largo do Paissandu. Entre vários modelos, estavam uma Baby Hermes vermelha (seu xodó), algumas Remingtons, e até mesmo um modelo com alfabeto russo.
Experimentei duas delas e gamei com uma Remington 15 de cor creme ― esta em que bato agora. Foi amor à primeira batida. Ela respondia bem ao toque, não era tão pesada e tinha todos os caracteres da língua portuguesa. Diego, que fumava seu habitual cigarro de tabaco, disse um direto e gentil “Pode ficar com ela!”. Depois de resistir um pouco ― já que eu pensava que iria subtrair sua coleção ―, aceitei o presente.
Vocês não imaginam o trabalho que deu de transportá-la para o Ceará... Um estojo de 20 centímetros por 25 não cabia em nenhuma mala de uma viagem curta como aquela ― eu passei somente algumas semanas em terras oswaldianas. Eu teria, então, de levá-la como uma bagagem à parte! No entanto, valeu a viagem.
Porque adquiri
Já havia um tempo que eu escrevia todos os meus textos em um bloco de notas ridiculamente simples do computador, sem recursos de formatação ― papel o qual eu deixava para o LibreOffice Writer. Me interessava sobretudo desenvolver o escrito. Queria tirar todo o atrito e toda a burocracia que existia entre mim e o computador.
Para isso, fiz de tudo, desde inicializar o sistema operacional sem senha, até configurar o bloco de notas como programa de inicialização. Ainda assim, existiam o boot necessário e as atualizações eventuais, que demandavam alguns minutos de atenção.
Cheguei a pesquisar programas que emulassem a experiência da máquina de escrever (que era o meu ideal de instrumento sem distrações), como o Cold Turkey Writer¹, e até mesmo cheguei a pesquisar projetos que fossem um híbrido de notebook e máquina de escrever, como os dispositivos da marca Freewrite e o Zerowriter. No entanto, ainda assim existiria o atrito da eventual necessidade de eletricidade e ocasionalmente internet.
Além disso tudo, fiquei com ainda mais vontade de conseguir uma máquina de escrever após a leitura de um texto de Lionel “Ploum” Dricot, “A complexidade da simplicidade” ― que ainda pretendo traduzir algum dia para o português. Neste texto Dricot comenta, entre outras coisas, o efeito desse instrumento em seus escritos.
Não tinha jeito: a única ferramenta dedicada à escrita, que me permitiria sentar e já começar a digitar sem parar e sem me preocupar com questões laterais, seria a máquina de escrever.
Claro, tenho enfrentado algumas questões com o instrumento, como o seu barulho, que dificulta a escrita durante alta noite, e a necessidade de constante força física na digitação². Essa força é em parte remediada por conta do touchtyping que desenvolvi, isto é, a memória muscular com o teclado de computador, que me permite que eu digite sem olhar para o teclado e que eu não tecle somente com dois dedos.
Tudo isso, porém, é compensado pelo seu conforto visual (já que não emite luz), pelo foco ininterrupto que o texto recebe e pela possibilidade de ser guardada de modo que esteja preparada para o próximo uso, uma vez que posso pô-la no estojo com um papel posto no seu carro.
E o computador?
Blocos de notas, máquinas de escrever, gravadores de voz e computadores são ferramentas, e, ferramentas que são, atendem a propósitos bem determinados e distintos. Nenhum elimina o papel do outro; antes complementam-se.
Com pequenas notas de bolso, redijo os principais tópicos de um texto vindouro; através de um gravador ― recurso sobre o qual já escrevi ―, registro meus primeiros insaites; com a máquina de escrever, desenrolo o fio do pensamento a partir dos recursos anteriores; e com o computador, faço o acabamento textual e a formatação, e incluo linques, imagens e o mais que a publicação final precisar.
Além disso, ter mais de um recurso para a mesma tarefa permite que um esteja no lugar de outro quando necessário. Caso a tinta da caneta ou o papel acabe na hora em que eu mais precisar fora de casa, ainda terei o gravador de voz para tomar notas urgentes e rápidas; caso eu não tenha bateria suficiente no telefone, mas esteja em casa, ainda terei o computador para redigir notas; e caso o computador dê pane, ou minha vista estiver cansada demais para olhar para telas, ainda terei a máquina de escrever para desenvolver textos “grossos”.
A este conjunto de recursos de escrita conjugado chamo de “caixa de ferramentas de escrever”!
¹: Ainda a respeito de programas emulando máquinas de escrever e dispositivos zero-distração, sugiro a leitura de um fio da Nina Kalinina no Mastodon falando a respeito de sua jornada para construir um “ambiente de trabalho feliz”, isto é, sem distrações. Conheci o Cold Turkey Writer através desse fio. Este foi outro texto também valioso para eu tomar a decisão de conseguir um equipamento dedicado à escrita.
²: No período em que escrevi este texto, ainda estava, digamos, fazendo “academia digital”, exercitando os dedos para o teclado mecânico. Hoje em dia já não sinto que ele necessita de tanta força, mas sim de precisão.
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