O sedutor mistério de “Dias Perfeitos”

Hirayama e Niko, personagens de “Dias Perfeitos”, respectivamente interpretadas por Koji Yakusho e Arisa Nakano.

Quando criança, durante um longo carnaval em casa, assisti diversas vezes ao “Garfield” (2004). Sentado no chão da sala, me encantava com seu brilho, sua cor, seu movimento (a história era um detalhe). Meus parentes, cansados de ver e ouvir a animação em lupe, imploravam para que eu largasse a televisão. Mas, apenas subiam os créditos finais, lá estava eu outra vezes tocando o “play”. Rodei aquele disco no aparelho de DVD como um pião na mão.

Raras foram as vezes que, depois da infância, voltei mais de uma vez a um filme. Um longa-metragem, entretanto, tem recuperado aquele encanto que eu tinha diante da tela, me fazendo retornar a ele diversas vezes. Falo de “Dias Perfeitos” (2023), um drama dirigido pelo alemão Wim Wenders.

“Dias perfeitos” mostra a rotina de um zelador de banheiros de Tóquio chamado Hirayama. Hirayama é um profissional dedicado: cumpre suas horas com natural pontualidade (não usa sequer despertador), tem seu próprio material de limpeza, e, em horário comercial, não se comunica com ninguém sobre outra coisa que não envolva o trabalho.

Duas coisas marcam Hirayama: ele é um introvertido homem de terceira idade, solteiro, e mora sozinho; e seu grande afeto pelas tecnologias analógicas ― ouve música em fita cassete enquanto vai ao trabalho, fotografa com sua câmera analógica durante o horário de almoço e religiosamente lê romances antes de dormir.

No entanto, Hirayama não toma seu ofício como sua vida: nas horas livres, encontra-se com amigos em bares, pedala por diversão, vai à livraria com frequência (é até tido por “intelectual” pela garçonete do seu bar favorito) e mostra gosto por jardinagem.

Hirayama mostra-se satisfeito com seus dias equilibrados, até que um dia tem de receber sua sobrinha Niko (filha de uma irmã com a qual há muito não fala), que inesperadamente aparece em sua casa (precisa de abrigo ― fugiu da mãe).

Temos aí o mais belo culto à simplicidade e à rotina dos últimos tempos, com uma personagem que leva uma invejável vida idílica e minimalista ― parafraseando as palavras do blogue sol2070 em resenha sobre o filme ―, personagem que toma corpo através de um ator que torna fresco cada gesto ordinário, capaz de nos mostrar a ação diária como o movimento de uma dança silenciosa e sem fim.

Mas, para além disso, “Dias Perfeitos” me encanta por seu mistério. Claro, não possui as cores e os movimentos de “Garfield” (é um filme, na maior parte do tempo, escuro), mas tem bastantes e deliciosas lacunas; mesmo tendo duas horas de duração, sabemos muito pouco sobre o protagonista¹.

Não temos reminiscências de Hirayama, e não sabemos sequer quais são seus pensamentos ― apenas seus sonhos, que envolvem sombras (um signo chave para o longa). As poucas informações que temos são pequenos detalhes, mostrados a conta-gotas através de outras personagens ― nem tão próximas do protagonista, ainda por cima.

“Dias Perfeitos” nos convida a uma profunda e constante participação. Já que o longa-metragem não nos vem como um objeto completo, somos impelidos a montá-lo, como se fosse um mosaico de pequenas e brilhantes pedrinhas. Cada gesto, cada figurante e cada objeto de “Dias Perfeitos”, paulatinamente percebidos a cada visita, interferem no enredo, o que o torna um filme novo a cada nova visita.

Sua natureza de baixa definição lembra-me outro longa-metragem, também japonês, chamado “Mind Game” (2004) ― um misto de “Pinóquio” e “Yellow Submarine”. Em filmes assim, só podemos especular, estipular alguma protointerpretação. Hirayama viria de uma família abastada?, tornou-se zelador por vontade própria ou passou por algum momento de necessidade?, desejou um romance impossível com a garçonete, o que o fez voltar a experimentar cigarros e bebidas?

Só nos resta revisitar o longa-metragem teuto-japonês mais uma vez logo após lhe assistimos ― como fazíamos quando éramos crianças ―, quem sabe dessa vez nos apareça algum dado que “ilumine” suas belas sombras?


¹: (post scriptum, 17 de setembro de 2024) recentemente descobri que o longametragem tem um websítio próprio onde nos são apresentados “353 dias da vida de Hirayama não mostradas no filme”. Não o visitei por completo, mas, além de fornecer informações que podem preencher esses vazios dos quais comentei, tem também dados sobre os atores e outras curiosidades. Vale a visita: https://www.perfectdays-movie.jp/en/

Esta publicação foi mencionada nos textos “A sedução pelas sombras” e “O futuro do futuro é o presente” destas Ideias de Chirico.

#cultura


CC BY-NC 4.0Ideias de ChiricoComente isto via e-mailInscreva-se na newsletter