Scherzo: sem “eu”

Há muito tempo, quando frequentei o Twitter, me incomodava a quantidade de vezes com que o tuiteiro médio recorria a si mesmo em suas postagens. Com essa consciência, fiz uma promessa para mim mesmo: nunca falaria de mim em redes sociais. Com o tempo, fui vendo que, ao contrário do que imaginava, é possível, sim, escrever um texto interessante tendo a si como ponto de partida.

Além disso, falar de outra pessoa, de certo modo, é também falar de nós mesmos, pois isso denuncia como essa figura nos influenciou ou por que ela nos é relevante. Há uma frase atribuída ao poeta francês Arthur Rimbaud que diz: “Mim é um outro” ― considerando a adaptação para este scherzo, claro.

Ultimamente tenho pensado em textos intitulados scherzo, que faria pelo prazer de escrever, trabalhando sobre algum aspecto estético. Já pensei em redigir um scherzo todo feito na dashboard do blogue, feito de uma sentada só; ou outro somente com palavras iniciadas com a letra “p” ou com a letra “a”; ou ainda outro no qual é vetado o uso do verbo “ser”. Mas me faltava o ímpeto. Enquanto lia na cama “On writing”, de Stephen King, aceitei o autodesafio de escrever sobre mim mesmo sem recorrer ao primeiro pronome pessoal no singular do caso reto ― vocês sabem qual.

Estou sendo café-com-leite neste mesmo scherzo porque me dei a permissão de escrever verbos em primeira pessoa, bem como a de utilizar pronomes possessivos da primeira pessoa ― o que forçosamente acusam o “mim”. Pode ser que em outro scherzo me dê a doida e exclua de todo o texto esses recursos gramaticais ― o que provavelmente daria uma bela tralha acadêmica, com o convencional abuso do pronome apassivador mesmo ao se falar de experiências pessoais, como em “Percebeu-se uma grande dor no cotovelo direito”.

Por que os scherzos? Porque precisava de algum estímulo de escrita enquanto alguma ideia séria de texto não surgia. Queria algum artifício análogo ao improviso para a música ou o croqui para o desenho, um exercício de linguagem que impulsionasse a expansão de seu campo de possibilidades e que pudesse ser feito despretensiosamente, em uma tarde de domingo, só pelo puro prazer. Em algum outro texto destas Ideias de Chirico devo ter escrito que a prosa é uma linguagem que não permite naturalmente que possamos escrever pelo mero prazer de escrever...

Scherzo significa “jogo” ou “brincadeira” em língua italiana; também é um movimento musical da música erudita, uma parte da peça musical desenrolada velozmente. Da mesma forma, tento escrever com a maior velocidade possível.

Este que vos escreve poderia muito bem também escrever um texto avulso sobre si mesmo, copicolá-lo em um Gepetto qualquer desses desta onda de IA e pedir-lhe para que retire todos os pronomes pessoais. Como parte do jogo, estou escrevendo a primeira versão deste texto na minha querida Remington 15, sem chance sequer de utilizar o backspace. O limite de páginas? Quem sabe. Bref. Tenho falado de tudo, menos de mim. Como este será o primeiro texto que publico no ano, falarei sobre o meu Réveillon.

Virei o ano de 2024 para o de 2025 na casa de minha cunhada, junto com meu irmão e alguns de seus amigos. Estive muito indeciso nesta opção porque aquele fora um espaço no qual passei uma parte não muito agradável da pandemia. Mas ou era isso, ou atravessar um mar de gente na festa pública na praia de Fortaleza, longe de casa e sob os perigos noturnos.

Outro motivo que me fez optar por reveillar indoors foi a própria presença do meu irmão, que atualmente mora nos Estados Unidos, trabalhando com pesquisa na área de produção animal. Só posso vê-lo uma vez ao ano, quando muito duas. Como estaremos longe um do outro em breve ― voltará lá para cima em meados de janeiro ―, preferi ficar com ele. Os amigos e familiares que moram próximo e que foram à praia poderiam esperar...

Nesta virada de ano fiz coisas comuns, mas que não costumo fazer. Imaginem o quê? Dançar e cantar. Depois da virada, me apareceu uma mulher, amiga de minha cunhada, que me puxou para dançar. Como se fala em “Promessa ao amanhecer”, “O que uma mulher quer, Deus também quer”. Mesmo sem ter dado um passo de forró na vida, aceitei o desafio de aprender a dirigir com o carro andando. Não me saí mal, mas, de qualquer modo, ainda bem que não houve registros da festa ― não que se saiba.

Ao pé da varanda da casa, os anfitriões montaram um pequeno espaço com projetores de tela, caixa de som e microfones. Ou seja, montaram um palco de karaokê! Como já dava meia noite e meia, como ninguém começara a cantar, e como a cerveja já esquentava na barriga, tive a iniciativa de cantar uma das poucas músicas que sei de cor: “Bella Ciao”. Não, não a aprendi por conta de La casa de papel. Sim, sei língua italiana e a cantei fora do tom. Mas como “Bella ciao” é cantada em estádios de futebol italianos por torcidas antifa, me senti confortável ao desafinar.

Desta vez tentei contrastar a experiência do Réveillon do ano passado, que passei involuntariamente sozinho por vários motivos, entre os quais a falta de férias no trabalho que eu tinha então. Como não foi uma boa, decidi fazer o oposto daquilo, e brincar enquanto boa parte das pessoas do mundo também brincavam.

Certas datas festivas, como Natal e Carnaval, consigo atravessar sozinho. Nunca gostei das alegrias planejadas desses dois dias. Não é o caso do Ano Novo. Desde criança me acostumei a sair com a família e com amigos para ir a algum lugar aberto, onde se possa ver fogos de artifício, rir e beber cerveja. Meu organismo já está programado para fazê-lo na primeira hora de todo ano.

Acho que já está bom por este scherzo. Na hora da revisão, espero não ter perdido o jogo mais vezes do que esperava enquanto escrevia. Obrigado pela leitura e feliz Ano Novo!

CC BY-NC 4.0Ideias de ChiricoComente isto via e-mailInscreva-se na newsletter