Escrever não é só digitar

Bernard Schneuwly, importante pesquisador da linguística textual, em seus estudos defende que há uma imbricada relação entre escrita e fala, que deixa evidente a coordenação, não a subordinação, entre ambos os veículos de comunicação.

Segundo o autor suíço, escrevemos para falar ― quando, por exemplo, elaboramos um discurso de formatura ―, escrevemos para escrever ― quando, p. e., tomamos nota para a redação de um artigo ―, e mesmo falamos para falar ― quando, p. e., em uma reunião de grupo de seminário decidimos o que será falado na apresentação.


Uma relação entre escrita e fala, porém, passou batido por Schneuwly ― ao menos no texto que li ―, e esta é o falar para escrever.


Uma relação entre escrita e fala, porém, passou batido por Schneuwly ― ao menos no texto que li ―, que é o falar para escrever. Dois exemplos dessa relação é quando nos encontramos com outra pessoa para falar de textos nossos, como por exemplo um orientador de monografia para acertar o trabalho e receber orientações de escrita, ou quando redigimos um texto através da voz, seja transcrevendo-a automaticamente através de inteligência artificial, seja gravando-a para depois transcrevê-la manualmente ― a forma menos usual. Neste texto relatarei a minha experiência com este último modus operandi de escrita e indicarei alguns recursos necessários para que você também comece a fazê-lo.

Premissas

Nos últimos dias, em vez de rascunhar meus textos à mão, em silêncio, gravo-os pelo esmartefone, como se eu estivesse os ditando para um assessor ou para um escriba. Depois, ao computador, transcrevo a gravação, selecionando alguns trechos e alterando outros.

Aparentemente uma ideia de Chirico, gravar em voz rascunhos de textos foi uma solução eficaz contra um recorrente bloqueio criativo do qual eu vinha sofrendo, tanto pelo pouco tempo de que disponho para sentar e escrever, quanto pela ritualização por que passa minha escrita.


Gravar em voz rascunhos de textos foi uma solução eficaz contra um recorrente bloqueio criativo.


Quando só disponho de lápis e papel ou um computador para escrever, necessito de ter silêncio e de estar sentado, um contexto que em geral me causa tensão. Já com um gravador, a depender da ocasião e do tema, minhas palavras fluem mais.

A vantagem de se usar um gravador de voz em vez de um transcritor automático de áudio, é que dependo quase nada de internet, e posso ditar um texto a qualquer momento do meu dia e em qualquer posição, seja de pé durante uma caminhada, sentado durante uma viagem de ônibus, ou mesmo deitado numa madrugada preguiçosa, como aquela na qual comecei a elaborar este texto...

Outra vantagem de se redigir o texto por voz ― e essa bem específica ― é que dessa forma tenho-o já pronto na forma oral, e dispenso sua oralização após a redação. Como sempre prezo pela pronunciabilidade de meus escritos, sua vocalização é de suma importância.

Recursos

Os recursos de que necessito para a escrita vocal são basicamente um aplicativo gravador de voz e um serviço de nuvem logado entre dois dispositivos ― um para gravar os áudios em movimento (neste caso, um esmartefone) e outro para transcrevê-los “estacionado” (neste caso, um laptop).

O aplicativo que utilizo para gravar chama-se Audio Recorder, que encontrei pelo repositório principal da F-Droid. A nuvem que conecta meus dois dispositivos é o Nextcloud com servidor da Ayom Media ― uma de minhas comunidades no Fediverso ―, que, comparada às nuvens das plataformas comerciais, é muito mais flúida, menos burocrática e mais respeitosa quanto à privacidade.

O Audio Recorder me chamou a atenção pela primeira vez porque me permitia criar arquivos de áudio com destino e título definidos por mim. Logo depois percebi que fornece outros recursos, como a escolha da qualidade dos áudios, uma edição básica e simultânea às gravações, além de dar a possibilidade de não incluir momentos de silêncio contínuo durante a gravação ao se exportar seu arquivo.


Ter um arquivo menor de áudio facilita na hora do envio do arquivo através da nuvem.


A opção de escolher áudios com uma qualidade menor é relevante porque, uma vez que há um grande volume diário de gravações e que arquivos de áudios em geral são muito largos, é importante que se utilize um formato compacto. Além disso, ter um arquivo menor de áudio facilita na hora do envio do arquivo através da nuvem ― um arquivo de áudio com frequência de 8khz (minha frequência padrão) de alguns minutos leva o mesmo tempo para ser sincronizado que um arquivo pequeno de texto puro.

Há um trade-off, no entanto, de se utilizar uma frequência baixa de áudio, que é a de deixar o áudio menos compreensível, com um timbre de ligação de orelhão, que merece mais atenção. É impossível ouvir um áudio de baixa definição em público. Só se pode transcrevê-lo ao computador e em um lugar silencioso. No entanto, este contexto de escrita já não é o mesmo de quando se rascunha diretamente ao computador: agora se tem em mãos a base do que é preciso redigir.

Discussões

Sei... Muitos de vocês podem pensar “Mas não seria muito mais prático fazer uma transcrição automática de voz?” Esse método, no entanto, não é de todo satisfatório, uma vez que a transcrição é feita ipsis litteris, o. s., tudo o que é falado ― inclusive os cacuetes, onomatopeias, palavras repetidas ― é transcrito, dando ainda mais trabalho para a redação final. Sem contar que, numa boa parte do meu dia, estou em trânsito e sem internet, o que me impossibilita a utilizar um transcritor automático.

Além disso, em uma transcrição não automatizada posso selecionar quais palavras vão entrar no texto, e também posso reformular as frases da gravação que não me agradaram, além de que a transcrição manual torna-se mais uma oportunidade de reflexão a respeito do texto redigido.


A transcrição manual torna-se mais uma oportunidade de reflexão a respeito do texto redigido.


Outra vantagem da escrita por voz é que, enquanto expressamos as nossas ideias, desenvolvemos a própria ideia. Quando escrevemos, tendemos a seguir o roteiro inicial do texto, já que temos a possibilidade de fazer pausas e retomadas durante a escrita.

O mesmo não ocorre numa gravação ou numa conversa, pois nessas ocasiões não temos intervalo, somos engajados a expressar cada vez mais a respeito de um assunto, fazendo com que inclusive improvisemos opiniões.

Alinhado às ideias de Bernard Schneuwly, o método de redigir textos através de gravações de áudio, além de ser um modo eficaz de vencer bloqueios criativos, é uma prova de que não há uma preponderância da escrita sobre a fala, já é um meio possível de escrever através da fala.

Post-scriptum (5 de julho de 2024): Além de gravar textos que serão escritos, também tenho gravado tarefas a serem feitas e lembretes que devem ser mantidos. Fazê-lo tem melhorado a minha memória.

Além disso, a partir desse hábito de falar para escrever, tomei o áudio como veículo de arte e de memória, como o são a imagem e o vídeo; agora guardo episódios de podcast de que gostei, mensagens de áudio de amigos e de outras pessoas queridas, e também mantenho no computador uma pasta de áudios que gravei ― uma espécie de diário sonoro.

#tecnologia


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