Ao som dos planetas de Alberto Continentino e Vivian Muller

Um dos grandes diferenciais da música em relação a outras linguagens é de ela ser um “signo puro” ― ou algo perto disso. Com isso quero dizer: a música, algumas vezes, não faz referência outra que não a ela mesma. Daí que temos essa vastidão de canções e peças musicais que são verdadeiras paisagens, que não são outra coisa senão elas mesmas. Não é como a arte da palavra que, mesmo em estado de poesia, necessita de um referencial no mundo para se legitimar.

Pensando nessa ausência de referencial, eis então a sensação que eu tinha ao ouvir o disco “Ao som dos planetas” (2015), o primeiro de Alberto Continentino: a de estar em uma sala clara, ou algum outro ambiente limpo, que se movimenta.

Esta, porém, não era uma sensação aleatória. Explico.

Na capa do disco, vemos Alberto Continentino, que faz os baixos elétrico e erudito e as composições; à sua direita, Vivian Muller, sua esposa, que faz os vocais, acompanhando ou acompanhada de Alberto; abaixo deles, uma curva de pele arrepiada; e, ao fundo de tudo, o breu do espaço sideral.

Em um primeiro momento, poderíamos pensar neste “planeta” arrepiado como a representação de êxtase causado pelo disco. Mas não. Alberto e Vivian, que durante o processo de gravação esperavam o nascimento de um filha, decidiram estampar a barriga de grávida na capa.

Sabendo desse fato, podemos agora pensar que os “planetas” do disco não são só as do espaço sideral, mas também as do espaço uterino... Antes eu falara que esse álbum me causa a sensação de estar em um espaço limpo que se move. Qual o único espaço esterilizado no mundo que está naturalmente em movimento? O útero!

Um dos motivos pelos quais o disco debutante de Continentino nos dá a sensação de se estar em um espaço sideruterino é a constante alternância de gêneros musicais, que ocorre de uma faixa à outra. Alberto fez sua carreira como baixista, e já colaborou com nomes como Marcos Valle, João Donato, Adriana Calcanhotto, Edu Lobo e Milton Nascimento.

Podemos ver toda essa versatilidade da carreira de Continentino enquanto somos levados por um jazz brincante como o de “Tic Tac”, pela bossa nova de “Tudo” e “Náufrago” e pelo soft rock de “Sessão da Tarde” e “Summer's Day” ― tudo isso involucrado em extrovertidos instrumentos musicais que giram e giram, como naves espaçomusicais.

Ouvimos em “Tic Tac” os vibrafones que, junto aos metais de sopro e essa espécie de “dueto” de guitarras (que, graças ao excelente trabalho de ambientação binaural do disco, rodam em nossos ouvidos), e dão um teor, mais do que bem humorado, humorístico a uma canção que fala de amor.

A mesma impressão de ambiguidade e ironia é deixada por “Double Dip”, que inicia como um tenso quarteto de guitarra, baixo, vibrafone e bateria vassourada que, a princípio, daria uma ótima trilha sonora de um filme policial, quando, apenas o trompete é chegado ao coro, o passo astuto do detetive torna-se um caminhar de pato. Nesta faixa, ainda vale notar o brilhante protagonismo do contrabaixo, mesmo quando em posição de cama harmônica ou contraponto.

Quando não há o famoso “papapá” a fim de fazer a vontade de cantar cobrir a falta de letra, como dito pelo próprio compositor em entrevista à Globo, as letras são de uma delicadeza irreconhecível ao lado da fanfarra de outras músicas. A introdução de “Sistema de Som”, por exemplo, tem uma cadência de fazer inveja ao maior dos trovadores:

Mesmo sem ter uma direção,

Não podemos parar...

Agora, não.

O disco debutante de Alberto Continentino foi capaz de unir opostos e contradições, em uma postura que, além de versátil, é contemporânea, conseguindo pôr lado a lado o amor e o humor, a seriedade e a ironia, o velho e o novo, a dança e a quietude, podendo causar no ouvinte efeitos de hipnose, introspecção ou extrema atenção. Um disco que vale a escuta e uma homenagem em 2025, quando o seu lançamento completará 10 anos.

#cultura


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