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from Felipe Siles

Como me mantenho razoavelmente informado numa perspectiva (pelo menos tentando ser) slow web

Desde que saí do falecido Twitter e priorizei o Mastodon como minha rede social principal, me dei conta de que tinha pego nos últimos anos o péssimo hábito de me informar na rede (que era) do passarinho azul. Como já possuía familiaridade com o RSS principalmente por conta do agregador que uso de podcasts, o AntennaPod, acabei por concluir que seria mais interessante seguir notícias por esse método.

Acabei testando diversos programas, clientes, e principalmente: no começo (na empolgação) enchi a minha linha do tempo de assinaturas RSS. Assinei também várias newletter, e não consegui ler praticamente nenhuma. E a avalanche de postagens chegando por RSS me fazia mais ansioso, não estava ajudando muito. Fui fazendo ajustes, diminuindo, vendo o que era realmente fundamental eu estar informado.

Foi legal acontecer essa avalanche de postagens, porque acabei percebendo que a minha fila praticamente infinita de podcasts também estava me deixando cansado e ansioso. Todas essas coisas acabavam por parecer tarefas incompletas para mim, coisas a fazer que não eu não dava conta. E se você somar a isso as mensagens do whatsapp, emails, um inferno de ansiedade e que acaba gerando também cansaço mental.

Percebi que precisava controlar o tamanho da largura do duto onde passava a informação. Esse é um processo contínuo, sempre estou fazendo ajustes, portanto aí vai uma fotografia de como ele está neste momento.

Notícias, blogs, textos

No computador eu acabo utilizando uma extensão do Firefox chamada Feedbro. Acho mais prático consumir as notícias assim porque o navegador já está todo configurado com extensões que uso para ler essas notícias (leitura sem distração, adblock, removedor de paywall, tradutor, entre outras ferramentas). Ele também tem uma função bem interessante que é procurar feeds RSS em qualquer site que você abrir, bem prático!

Eu sigo no Feedbro feeds de quatro associações de pesquisadores que eu sou associado, para saber de eventos, congressos, chamadas para artigos, etc. O fluxo de postagens desse grupo é bem esporádico. Também assino duas feeds para ter informações sobre a minha cidade: a prefeitura e um portal de notícias. O fluxo aqui é um pouco mais intenso, mas não muito difícil de acompanhar, o site da prefeitura tem postagens meio esporádicas, o de notícias, de duas a quatro postagens por dia. Sigo também as feeds de dois portais que eu gosto e admiro bastante: Agência Pública e Manual do Usuário. Eu gosto e admiro o trabalho de muita gente, contudo o que foi decisivo para inclui-los na minha rotina no Feedbro foi o fluxo de notícias, costumam postar mais ou menos umas 3 por dia, coisa que dá pra acompanhar sem ficar maluco. E, por fim, acompanho o Cultura e Mercado para ficar antenado em aberturas de editais e leis de incentivo.

No iPad eu utilizo o NetNewsWire, o logo dele infelizmente é meio tosco, fica um verdadeiro patinho feio perto dos logos bonitos do IOS, mas o aplicativo é bem funcional, além de ser livre e código aberto. Gosto de colocar no iPad os feeds RSS de blogs, principalmente blog de amigos. Eu considero a leitura de textos longos mais agradável no iPad do que no computador, por isso faço dessa maneira.

E no meu celular, Android, utilizo o Feeder, instalado via F-Droid. Assinei 4 feeds de portais de notícias bem conhecidos (Carta Capital, Jornal da USP, Jornal GGN e Nexo Jornal). Como aqui o fluxo de notícias é bem alto, configurei o app para me mostrar no máximo 50 postagens e coloquei a visualização em formato supercompacto. Eu não costumo ler a maioria dessas notícias do celular, apenas fico ali rolando pela linha do tempo vendo os títulos para ficar mais ou menos por dentro do que está acontecendo. A ideia é ter essa feed mais ágil para consultar quando estou na rua, que já se mostrou muito útil para me informar sobre greves, paralisações e outros eventos que afetam o transporte público. Diferente dos outros dispositivos, aqui eu não tenho a preocupação de ler tudo.

Outra coisa importante é que se tem alguma postagem em qualquer um dos três dispositivos que eu tenho interesse mas quero ler com calma depois, salvo no Omnivore. O aplicativo funciona bem e roda nos três dispositivos.

As newsletter para mim simplesmente não funcionaram, pode ser que funcione para muita gente, mas para mim não deu certo. Eu acabava lendo no começo, mas com o passar do tempo comecei a ter relação com esses e-mails praticamente de spam.

Podcasts, rádios, música

Sou entusiasta de podcasts, consumo a mídia desde 2018, tenho meu podcast próprio, e também colaboro em outros projetos de amigos. Sou apaixonado por essa mídia, pela distribuição livre e também pela praticidade de ouvir no ônibus, no almoço, enquanto lava louça, sem a obrigação de ficar com os olhos ali grudados numa tela. Já tive o meu momento de seguir muitos podcasts e querer maratonar todos eles, o que com o tempo foi me deixando muito ansioso e cansado mentalmente.

Um belo dia perdi todo meu histórico no aplicativo que eu uso, o AntennaPod, e acabei aproveitando a tragédia para fazer uma mudança radical na forma como eu consumia a mídia. Elegi apenas alguns podcasts, que estão ainda em atividade, e, ao invés de ficar preocupado em maratonar, configurei o download automático de episódios novos. Dessa forma eu não fico preocupado em maratonar nada, apenas em dar conta da linha do tempo. Outra coisa que me ajudou foi esconder o contador de episódios não ouvidos, uma coisa que me deixava ansioso e soava como pendência.

Atualmente sigo doze podcasts, dentre eles: – dois são diários (segunda a sexta), mas são curtos, costumam durar entre 15 e 30 minutos; – dois possuem duas edições semanais, esses são mais longos, duram cerca de 60 minutos; – um deles é semanal e dura cerca de 30 minutos; – um deles (teoricamente) é quinzenal e dura cerca de 60 minutos; – um deles possui uma periodicidade meio caótica, mas costuma publicar uns dois ou três episódios por semana, com durações variadas; – os cinco demais são aperiódicos e vários deles são publicados por temporada, só têm episódios novos quando tem temporada nova. Costumam ser episódios mais longos de cerca de 60 minutos.

Dessa forma eu consigo facilmente terminar a fila de podcasts do dia nas refeições ou andando de ônibus. Quando acaba a fila, nada de maratonar podcast, eu costumo colocar em alguma rádio ou até mesmo vou fazer outra coisa, fico em silêncio, ouço uma música. Inclusive recomendo a ótima Rádio Aconchego, que eu ouço pelo bom e velho VLC no celular. Também gosto da Rádio USP, Rádio Unicamp e Rádio Yande.

E, por último, para ouvir música tenho gostado bastante do RiMusic para o Android, que pode ser instalado pela F-Droid. Ele é um cliente/front-end do Youtube Music, mas com aquela cara de aplicativos de streaming como Spotify, inclusive dando a opção de salvar as músicas para ouvir offline.

Também possuo ainda esse hábito jurássico de baixar alguns mp3, no celular e principalmente no computador, e costumo ouvi-los no VLC mesmo. Já fui entusiasta no computador do aplicativo Nuclear, mas ultimamente tenho achado que ele deixa a desejar, tem muito álbum que acaba vindo com música trocada, então tenho preferido baixar mesmo. Ou então ouvir um disco de vinil, já que possuo toca discos.

Videos, filmes, séries

Consumo o conteúdo do Youtube apenas em front-ends e clientes. No computador e iPad utilizo o Individious (pelo navegador) e no celular e tv stick o NewPipe. Gosto de consumir dessa forma porque esses clientes tiram as propagandas e também possuem mais opções de customização. Eu gosto de customizar esses aplicativos para valorizar a linha do tempo, já que a ideia é apenas seguir conteúdo de uns poucos canais e playlists. Nada de ficar vendo conteúdo sugerido, clicando em vídeos relacionados, ou olhar o que está “bombando”, de jeito nenhum. Consumo igual ao podcast, quando acaba a fila vou ver outra coisa... um anime ou até ler um livro. Atualmente sigo o conteúdo de apenas sete canais e quatro playlists.

Eu parei de consumir séries, porque elas acabavam tomando muito tempo e essa ideia de maratoná-las me deixava tão ansioso quanto ficava por maratonar os podcasts e sempre com a sensação de pendência e cansaço mental. Resolvi consumir então mais filmes e animes. Filmes duram ali duas, três horas... e pronto, acabou... começo, meio e fim... nada de um novo capítulo, no máximo uma continuação da franquia, excelente!!! E animes podem ser gigantescos (como o meu preferido, One Piece) mas os episódios costumam durar só uns 20 minutos, o que deixa leve e gostoso para acompanhar lentamente ali no dia-a-dia, vendo de um a quatro episódios seguidos, dependendo do tempo disponível.

Outra coisa importante é que eu evito ficar assistindo muito vídeo no celular, computador e iPad. Prefiro assistir na televisão mesmo, possuo uma tv stick e consegui instalar o aplicativo do NewPipe. Gosto de fazer isso principalmente quando já terminei as minhas tarefas do dia, eu gosto de fazer essa separação do computador como ambiente de trabalho e a televisão como fonte de lazer e entretenimento. Filmes eu prefiro assistir no final de semana, nos dias úteis eu vejo mais o conteúdo do Youtube e alguns animes.

Mensagens, emails, redes sociais

Gosto de usar aplicativos agregadores de mensagens, como o Ferdium para os mensageiros e o Thunderbird para emails. É uma forma de otimizar a tarefa de ver as mensagens e respondê-las, gosto de pegar uma hora todo dia apenas para isso. Na maioria das vezes essa uma hora é suficiente para ler e responder tudo. Faço esse trabalho no computador e depois evito ficar trocando muita mensagem no celular, dou umas olhadas de vez em quando, só para checar possíveis urgências e ir administrando para não deixar muita mensagem acumulada para a prática do dia seguinte no computador.

Gosto de manter a prática de arquivar mensagens e e-mails lidos, isso deixa a caixa de entrada vazia e me dá uma sensação excelente. Inclusive eu fico desesperado só de ver a caixa de email de outras pessoas, tenho vontade de morrer com a quantidade de emails não lidos, ignorados. Spams, propagandas, emails de notificação, costumo me descadastrar de todas as listas. É uma coisa bem rápida de se fazer e que evita que sua caixa se encha com esses emails. Emails e mensagens que vão demandar um trabalho um pouco maior eu só arquivo quando termino a tarefa. Ver o email ou mensagem pendente ali na caixa de entrada também é uma forma de não esquecer de cumprir a tarefa em questão.

Tenho várias contas de email, cada uma com uma função. Um mais público ou profissional, um universitário, um para logins e um só para situações que envolvam pagamentos. Parece exagero, mas essa segmentação me ajuda muito a não acumular muitas mensagens num e-mail só. E acaba que, a depender da função, não preciso olhar todos esses e-mails todo dia. O e-mail de logins, por exemplo, olho uma vez por semana, o de pagamentos só quando faço ou recebo alguma transação.

Os mensageiros uso três basicamente: Whatsapp (não tem o que fazer), Telegram e Element/Matrix. E o mais importante: desabilito as notificações de todos esses aplicativos e emails, a saúde mental agradece. Tendo uma hora todo dia dedicada para isso, não há a menor necessidade de notificação. Basta abrir o Ferdium e o Thunderbird e começar o trabalho.

Redes sociais eu tenho utilizado apenas o Mastodon e o Lemmy. No computador e iPad uso no navegador mesmo (não gostei de nenhum dos clientes para iOS). Já no celular uso o Tusky como cliente do Mastodon, gosto da pegada dele bem minimalista, customizável e com botões para clicar. Para o Lemmy utilizo o Jerboa, praticamente pelo mesmo motivo: simples, funcional e customizável. E nada de ficar vendo muita notícia nessas redes, inclusive evito perfis e comunidades que postam muita notícia. A ideia aqui é a interação social e a troca de ideias.

Conclusão

Essa é a maneira como eu controlo a metafórica largura o duto de informação, para ter um fluxo saudável e evitar ansiedade, sensação de pendência e cansaço mental. Olhando o texto parece até um paradoxo, um verdadeiro textão propondo uma relação mais minimalista com a informação. Mas tenho certeza de que se você colocar no papel toda informação que consome e por onde ela chega é provável que vá se assustar, inclusive se eu descrevesse minhas fontes de informação antes de sistematizar esse filtro mais rigoroso, acho que este texto seria um livro e não um post de um blog (rs).

Lógico que esse é meu uso pessoal, e cada pessoa possui demandas bem diferentes. Este texto não tem pretensão de ser um guia, um manual, apenas o registro, um relato de como eu faço. Levei muito tempo para organizar essa rotina em lidar com a informação e continuo fazendo ajustes, então achei que uma ou outra coisa pode servir de ideias para outras pessoas. Fiquem à vontade para testar, adaptar ou até ignorar a maneira como faço.

 
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from john

animaçãozinha que eu vi na netflix. ao contrário de outras obras para adultos, que apelam ao público alvo pela explicitude da violência ou das cenas sexuais, em Carol e o fim do mundo o apelo está na profunda melancolia de um cotidiano marcado pela certeza do fim. no desenho, o mundo vai acabar, todos vão morrer e as pessoas, tanto individualmente quanto em sociedade, precisam inventar formas de lidar com a iminência do fim.

é uma história muito bonita, que lida com temas pesados de uma forma bem delicada. as questões profundas que são levantas sobre vida, morte e realização pessoal são tratadas de forma cuidadosa, mas leve. É o tipo de série que você vê melancólico, mas sorrindo.

#animação #netflix

 
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from Felipe Siles

Meu último texto aqui no blog sobre não ter redes sociais comerciais teve uma repercussão bem interessante, e reverberou de uma maneira bem bacana, com várias pessoas dando um retorno positivo e até inspirando outros textos. Fico muito feliz de que o compartilhamento da minha vivência tenha sido útil e, dada a relevância do tema que essa repercussão revelou, resolvi criar uma série de textos sobre cada ferramenta específica da big tech que eu não uso (e também sobre as que eu uso né, afinal não só de negativa vive o homem rs). A ideia é mostrar na prática como essa falta de uso me afeta e minhas estratégias para contornar alguns problemas que isso possa acarretar.

Muita gente relatou dificuldade com a ideia de sair do Instagram, por isso resolvi começar com essa plataforma. Realmente, o Instagram infelizmente se tornou um monopólio em termos de redes sociais, por mais que existam concorrentes, como o TikTok. Aquela rede que já serviu para compartilhar fotos pessoais e imagens, acabou se tornando essa espécie de aplicativo faz-tudo: é mensageiro, entretenimento, notícias, vendas, entre outras coisas. Além disso, a rede se tornou o principal canal de comunicação de diversas instituições, como bares, restaurantes, lojas, marcas, e, infelizmente, também de órgãos públicos ou de utilidade pública (congressos acadêmicos, associações de pesquisadores, coletivos e movimentos, etc). Infelizmente é muito difícil sair dessa armadilha e não ter uma conta no Instagram implica em abrir mão de muita coisa. Como eu sempre digo, nunca julgo quem precisa estar na rede, considero essa pessoa uma vítima.

Antes de mais nada, vamos aos principais motivos concretos de porque eu não tenho conta pessoal no Instagram:

  • Como já havia dito no meu texto anterior, nunca tive muito interesse por redes sociais de fotos, sempre preferi as de texto;
  • Considero uma rede danosa para a saúde mental, existem fortes indícios de que o uso massivo da plataforma possa estar indiretamente associado a problemas sérios principalmente entre adolescentes, como aumento do índice de suicídios femininos e cyber bullying;
  • É uma rede feita para viciar e te enclausurar dentro dela;
  • Não é uma rede segura, o fato de não ter o código aberto faz com que sabe-se lá o que eles fazem com seus dados e informações;
  • É uma ferramenta que ajuda a espalhar notícias falsas e divugar as ideias da extrema direita no mundo, e é omissa para conter esse conteúdo;
  • O Instagram gera uma grande quantidade de lixo virtual, que está hospedado em servidores consumindo recursos naturais.

Vamos então às soluções práticas que eu adoto para contornar a falta de um perfil pessoal.

Ter o contato das pessoas fora dali

Hoje em dia acho muito importante ter o contato das pessoas (telefone e email principalmente) justamente para não ficar dependente dessa rede para conversar com as pessoas que você conhece. Se você pensa em deletar sua conta pessoal do Instagram, uma sugestão que eu dou é olhar a sua caixa de entrada, ver as pessoas com quem você conversa normalmente, checar se tem o contato delas fora dali e, se não tiver, pedir o telefone e/ou email dessa pessoa.

Monitorar contas

Utilizo o Aximo Bot para monitorar algumas contas do meu interesse, de órgãos e instituições que, infelizmente, não possuem feed RSS. Ele às vezes dá um bug e você precisa forçar a atualização da feed, é um problema um pouco chato, mas contornável. Num passado não tão distante eu utilizava o Lemeno e achava excelente! Mas, não sei porque motivo, ele parou de atualizar a feed e acabei abandonando, não sei se esse problema já foi resolvido, acho que vale o teste.

Infelizmente, devido ao fato da API do Instagram ser fechada, essas soluções precisam constantemente ser atualizadas e algumas acabam até sendo descontinuadas, como foi o caso do excelente Bibliogram.

Por U$8,32 o RSS App transforma as feeds de qualquer conta no Instagram em uma feed RSS. Infelizmente esse valor, que talvez seja baixo para muita gente, é um pouco pesado para meu orçamento modesto, de alguém que vive de sua bolsa de pesquisa.

Outra coisa possível de se fazer também, é reclamar com as instituições e estabelecimentos, pedindo para que tenham outros canais de comunicação que não o Instagram.

Entretenimento

Sempre considerei o entretenimento oferecido por essas plataformas de videos curtos (Instagram, TikTok, Kwai) de péssima qualidade. Eu sei que esse é um ponto bem espinhoso, já que definir concreta e objetivamente o que seria um entretenimento de qualidade é algo bem complicado, e pode soar bastante classista. Mesmo sendo dificil, vou fazer uma tentativa, possivelmente com problemas.

Eu gosto de comparar a indústria do entretenimento com a alimentícia. Ambas têm um ponto em comum muito nítido: o objetivo final em lucrar e enriquecer seus donos, proprietários e acionistas. Em relação à indústria alimentícia é um pouco mais fácil de você definir concretamente o que é um alimento de qualidade, já que existem parâmetros para isso, como os nutrientes, propriedades, efeitos daquele alimento na saúde, por mais que, assim como na indústria do entretenimento, existam fatores culturais.

Então dizer que um entrenimento é bom porque é popular, porque tem bons números, no meu entendimento é uma falácia, na medida que o consumo é mediado e direcionado por processos que dizem respeito ao lucro de grandes empresas, como a publicidade. Um video do TikTok não é necessariamente bom porque tem bilhões de visualizações, assim como Coca-Cola não é um alimento bom para saúde, por mais que seja consumida por bilhões de pessoas.

Então uma dica para largar do Instagram enquanto vício é consumir outras fontes de arte e entretenimento: filmes, séries, livros, HQs, mangás, peças de teatro, shows, passeios, etc.

Investir tempo em redes sociais não comerciais

Ainda quero fazer um texto mais detalhado sobre o Fediverse, e dar boas dicas de instâncias nele. Mas hoje em dia tenho gostado cada vez mais de interagir com as pessoas por redes sociais não comerciais, sem algoritmo e sem propaganda, tenho conseguido formar “minha galera” e manter contato com essas pessoas.

Não adianta, a nossa subjetividade hoje em dia é muito moldada pelas redes sociais, estou nelas desde 2004, no Orkut... Não acho que é algo que nós vamos nos livrar totalmente e nem sei se precisa.

Eu tenho encontrado nas redes sociais não comerciais um ambiente muito mais agradável e saudável do que na Big Tech, já que não há ali a preocupação de te prender ou vender algo.

Minha rede social principal hoje em dia é o Mastodon, uma rede de microblog, ou seja, pequenos textos. Tenho gostado muito do Lemmy também, que é uma rede de fóruns de discussão.

Se você gosta de redes sociais de fotos, em primeiro lugar eu lamento por você (rs), mas falando sério eu sugiro que conheça o Pixelfed, que é livre, de código aberto e faz parte do Fediverse, sendo possível não só acessá-lo sem login, mas também por outras plataformas como Mastodon e futuramente até a famigerada Threads.

Ter vida social fora da internet

Um ponto que eu percebo que pega para muita gente é a comodidade de ter a vida social totalmente online. Conheço pessoas inclusive que namoram online e praticamente nunca se encontram presencialmente. Não sou psicanalista, portanto não sou a melhor pessoa para avaliar os impactos na saúde mental dessa abordagem. Entendo também que quando a pessoa passa dos 30 anos ela, em geral, vai perdendo o pique de sair, ir em festas, fazer esse tipo de socialização.

Minha dica é fazer parte de coletivos com quem você se identifica. Pode ser ONG, religião, grupo de teatro, partido político, movimento social, clube de leitura, escola de samba, não importa. Mas faça parte de grupos, integre-se, participe ativamente deles. Infelizmente a urbanidade nos tornou pessoas solitárias na multidão, e essa é uma forma de emular levemente uma vida “em vila”. Ter o nosso clã, as pessoas que confiamos, nos identificamos, e vemos presencialmente com alguma regularidade.

Aprender a lidar com o tédio

O (mau) hábito de rolar a feed do Instagram está muito associado com driblar uma vida tediosa, que a urbe nos coloca. Acredito que uma forma de lidar com isso é procurar uma vida menos tediosa, e com atividades interessantes. Mas o ócio, o vazio e o tédio fazem parte da vida também. Então aprenda a lidar com ele, se não conseguir sozinho ou sozinha, peça ajuda de profissionais. É importante lidar com situações entediantes ou ruins sem ficar entupindo seu cérebro de dopamina. Esse é o princípio da maioria dos vícios, inclusive o vício no Instagram.

Acessando conteúdo do Instagram sem logar

Existem diversos clientes interessantes de Instagram, como o Imginn e o Picuki, que permitem visualizar contas sem precisar logar. Eu configuro dois aplicativos para redirecionar links que me enviam do Instagram para o Imginn. No computador utilizo a extensão de navegador LibRedirect e substituo a instância do Bibliogram pelo link do Imginn. E no celular eu utilizo o aplicativo da F-Droid UnTrack Me, e faço a mesma configuração.

Pra Android existem aplicativos clientes de Instagram, como o próprio Picuki e o Barinsta, mas não me adaptei muito bem a eles, mas de repente vale o teste pra ver se serve para você.

Conta institucional

É fato, não ter nenhum Instagram limita demais as possibilidades, infelizmente. Como ele virou um monopólio em termos de redes sociais, não ter acesso a ele faz com que seja muito difícil ou até impossível obter algumas informações que só estão nele. Às vezes é preciso fazer aquele contato profissional que você não consegue o telefone e email da pessoa de jeito nenhum ou comprar algo específico que só é vendido e anunciado por ali.

A solução que eu dei para esses casos, é ter uma conta institucional e não pessoal. No meu caso, é a conta do meu podcast, o Estação Música. Obviamente, não tenho o aplicativo do Instagram no meu celular, assim como evito qualquer aplicativo que vá me distrair e passar muito tempo nele. Mas configurei a DM dessa conta para outros dois aplicativos que utilizo, que são agregadores de mensageiros: Ferdium e Beeper, e funciona muito bem.

Essa conta atualmente (14/01/24) não possui nenhuma postagem, mas em breve quero transformá-la num portifólio do meu podcast para estar ali naquela prateleira. A ideia não é criar conteúdo, produzir stories, nada disso. Apenas criar alguns cards fixos mostrando para a pessoa onde encontrar o podcast e os seus episódios, só isso.

Outra coisa é importante é isolar seu uso em um container no navegador, para que ao usar essa conta ela não compartilhe dados sensíveis com outros sites utilizados no ambiente do navegador. Para isso, eu utilizo o ótimo Multi-Account Containers da Mozilla.

Se você não possui nenhum projeto desse tipo, use a criatividade. De repente utilize a conta de algum projeto que você faz parte ou crie uma conta mais discreta, que não posta nenhum conteúdo. Importante não ter acesso a essa conta pelo celular, justamente para evitar o vício e a perda de tempo, sempre utilizar o navegador do computador ou algum cliente.

Conclusão

Não vou dizer que a vida sem Instagram é confortável. Minha opção por não ter um perfil pessoal na plataforma é política, diz respeito à militância contra a Big Tech. E militância implica em sacrifícios, eu até me sinto comôdo em saber que existem pessoas que morrem por conta de suas militâncias e eu só preciso às vezes fazer uma atualização manual em um bot do Telegram que não está funcionando direito, acho que está tudo bem.

Seria muito bom se os estabelecimentos e instituições sempre tivessem pelo menos um blog, com uma feed RSS, para que a informação circulasse também fora do ambiente da Meta. Inclusive existem plugins que integram o Wordpress ao Instagram, mas essa informação é pouco conhecida e difundida, infelizmente. Isso por culpa do próprio Instagram, que não permite integração com muitas ferramentas, obrigando o usuário que faça as coisas dentro dele ou dentro do ambiente Meta.

Por último, eu digo que me organizo dessa forma, sem o Instagram, principalmente em nome do autocuidade e da saúde mental. Mas eu sou muito pessimista em relação a um horizonte em que as pessoas diminuam ou até deixem de usá-lo. Sempre acho que se as pessoas pararem de usar, será para substituir por algo mais apelativo e ainda pior para a saúde mental, como um TikTok, por exemplo. Fiquei animado ao assistir uma reportagem sobre uma juventude low profile (discreta), que se orgulhava por usar muito pouco as redes. Fui pesquisar sobre o assunto e fui bombardeado de textos de como ser low profile dentro do Instagram. A falta de imaginação chegou a um nível que é necessário estar no Instagram até para ser low profile, complicado...

 
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from Lento, pero escrevo

6 meses de vida e a urgência da Licença Parental

Você sabe quantas horas por dia se gasta para amamentar um bebê? E arrotar, cochilar, dormir? Um pouco das razões de ser absurdo uma licença paternidade de 5 dias

Coruja buraqueira em seu ninho feito por genteCoruja buraqueira na pracinha. Na época da foto, brava e gritando com as pessoas por que tinha dado cria recentemente

Semana passada nossa filha fez 6 meses de vida. E sem a licença parentalidade de 6 meses que conquistamos no Programa de Pós-Graduação de Ciência Política da UnB, teria sido absurdamente mais exaustivo para nós, para minha companheira, para nossa família e para nossa filha. Esse é o período recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para que a alimentação do bebê seja exclusivamente de leite materno. Além do contato pele a pele, que estimula e acalma a criança, o aleitamento garante mais saúde pois passa os anticorpos – até mesmo de vacinas – e é um alimento supernutritivo para a criança.

Mas sabe quantas horas por dia se gasta com um bebê para que isso seja possível? E todas as outras necessidades, quanto tempo duram? Odeio essa exposição, mas vou contar um relato pessoal por que muitas pessoas que não convivem ou conviveram com bebês e crianças, em especial homens como eu, não tem a mínima ideia do quão trabalhoso é manter um recém nascido vivo.

NAS PRIMEIRAS SEMANAS DE VIDA:

O bebê ainda está aprendendo a mamar, por isso passa muito tempo mamando. Várias vezes, foram 40 minutos para nossa filha estar satisfeita. Depois disso, ela ainda não sabe arrotar ou mesmo tossir para se desengasgar. Então são mais 20 minutos para que a criança arrote, no ombro ou na vertical com nosso apoio. Por dia são, em média 10 a 12 mamadas. Se apenas a mulher ou a pessoa que amamenta também for a responsável por colocar a criança para arrotar, são 12 horas por dia apenas mamando.

NOS PRIMEIROS TRÊS MESES:

Depois melhora um pouco, piora um pouco. Sendo otimista, são em torno de 7 a 10 mamadas por dia e elas duram 20 minutos, mais os 20 minutos arrotando. Só aqui, quando tudo vai bem são mais 4 horas e meia do seu dia . Mas além disso, a criança precisa cochilar durante o dia para dormir bem a noite, evitando uma noite estressante em que precisemos acordar de uma em uma hora e em que tranquilize apenas mamando. E descansar é essencial para a pessoa que amamenta conseguir produzir leite. A criança precisa cochilar em torno de 3 a 5 horas POR DIA e algumas só cochilam mamando ou no colo depois de balançar por em média 20 minutos. São pelo menos mais 3 horas. São quase sete horas ao todo que o bebê pode acabar passando só no braço.

ENTRE OS 3 E 6 MESES

As mamadas melhoram, são mais rápidas. Mas a partir dos três meses a criança passa a perceber tudo ao seu redor. Então os cochilos dela são mais difíceis, por que ela distrai com tudo. E novamente, para produzir leite a pessoa que amamenta precisa também conseguir descansar. Se o bebê não cochila? Bom, a noite ele provavelmente não dorme direito, logo quem amamenta também não dorme e pode ter mais dificuldade ainda para amamentar. O bebê passa intervalos de tempo maiores sem mamar. A cada duas ou três horas durante 10 a 20 minutos. Só isso, já dá em torno de 2h30min por dia apenas no peito. E, como dito, cochilar também é essencial: nessa idade precisam de 3 a 5 horas de cochilos diurnos. São pelo menos cinco horas por dia com a criança no colo. Casa de João de Barro em um poste. Um ninho de um pássaro mais tranquilo, mas que perdeu a tranquilidade no diabo do poste

O dia tem 24 horas?

Narro tudo isso a partir de uma dedicação bem objetiva, que é a quantidade de horas. Foram 180 dias em que a nossa filha precisava entre 5 horas de colo por dia, nos melhores momentos, a 12 horas por dia, nos momentos mais difíceis .

Nessa conta não considerei outras tantas horas que a mãe ou pessoa que amamenta pode precisar passar ordenhando leite para ter um estoque de leite, caso precise ter qualquer outra obrigação normal de uma pessoa adulta que lhe impeça de estar longe da filha por algumas poucas horas. Não considerei que a mãe ou pessoa que amamenta precisa se alimentar bem, beber uma quantidade enorme de água, urinar, defecar, tomar banho e viver em um lugar minimamente organizado e limpo para passar por esse momento caótico que é o puerpério.

Aliás, não considerei uma coisa básica do trabalho de cuidar de um bebê pequeno: tem toda a parte subjetiva de como está nossa cabeça, o zelo, os medos, o morrer de amores, as oscilações de humor, as pressões e o julgamento constante de tudo ao seu redor. São muitas outras horas do seu dia que você passará tentando entender quem é você no meio de tudo isso – e se você é um pai que cuida igual, também passará por isso.

Aqui em casa somos muito fechados com Silvia Federici. Mas desde que soubemos da gravidez, o tanto que a gente já chorou de exaustão é o mesmo tanto que a gente ama nossa filha. Viver na contradição tem dessas coisas

A licença parental radical ou licença de cuidado

Como o dia tem apenas 24 horas por dia, obviamente é completamente insustentável amamentar e cuidar sozinha. Eu honestamente não sei como trabalhadoras informais sem direito à licença-maternidade, mães solo e sem rede de apoio dão conta. Provavelmente não dão, mas o sofrimento nesse período da vida é tão naturalizado e normalizado que ninguém se importa. Mesmo que se opte por dar fórmula por falta de tempo, exaustão ou isolamento, há todas as outras coisas que precisam ser feitas.

Hoje em dia a licença paternidade não existe, a não ser que você considere que em 5 dias você pode cuidar plenamente do seu bebê que acabou de vir ao mundo, acompanhar seu desenvolvimento, ser pai e aliviar sua companheira que amamenta.

Mesmo algumas instituições do Estado já reconhecem a necessidade de criar um licença real, como sinalizou decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) obrigando que em até 18 meses o congresso estenda e decida sobre a licença paternidade. Até alguns capitalistas e seus gestores progressistas já reconheceram essa urgência e aderiram à Coalizão Licença Paternidade (COPAI). Nesse sentido também é que vai o Projeto de Lei 1974/2021 das deputadas Sâmia Bonfim e Glauber Braga, que criam a licença parentalidade remunerada por 180 dias para duas pessoas responsáveis pela criança.

Mesmo que a Licença seja estendida, devíamos ir até além. Por que é a coisa mais comum do mundo que quando nasce um bebê, as avós e as tias se desdobrem para cuidar também. Ou seja, dois adultos sozinhos não são suficientes para cuidar de um bebê de uma forma digna e não exaustiva. Todas as pessoas que se desdobram pra tocar o trabalho de cuidar de um bebê em suas famílias estendidas, não tradicionais, LGBTs e que fogem à família monogâmica nuclear – papai, mamãe, criança e cachorro – deveriam ter direito a 180 dias de licença remunerada – sejam elas empregadas formalmente ou não.

Esse é um passo essencial para que as mulheres não precisem se sobrecarregar com 12 horas ou mais do seu dia para o trabalho de cuidar. E nós, homens, temos feito muito pouco nessa briga coletiva para cuidar que deveria nos mobilizar tanto quanto todas as outras lutas coletivas. Que a briga por uma licença parentalidade digna seja um primeiro passo para isso.

Vários cavalos-marinho, grávidos próximo a um coralAo contrário do que dizem os capitalistas e os conservadores, que “macho” já é biologicamente predisposto a não cuidar, na natureza o cavalo-marinho “macho” “engravida”. Como será que os conservadores vão reagir quando souberem que homens podem amamentar?

 
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from daltux

Reedição de publicação de 2006 em blog/site pessoal mantido de 1998 a 2012.

“Num futuro muito próximo”, no imenso sertão da Austrália, há uma espécie de patrulha rodoviária para tentar controlar gangues motorizadas que pilham as estradas. Dessa pequena corporação, faz parte o jovem protagonista Max Rockatansky (Mel Gibson), tido como o mais eficiente de seus integrantes.

Knight Rider (adaptado como o “Cavaleiro da Estrada”), um dos principais integrantes de uma gangue de motociclistas, fica entorpecido (“pedrado, pipado e doidão”), mata um policial e rouba uma das melhores e raras viaturas, modelo Pursuit Special V8:

— É um tarado das motos. Ficou doidão de repente, há umas horas! Conseguiu fugir, matou e roubou um dos especiais [...].

— Qual é o carro dele?

— Isso é que dói… é um dos nossos V8. Um dos especiais a metano, que anda pra cacete!

Um carro tipo cupê totalmente preto, modelo Ford XB Falcon personalizado, com chamativas molduras dos farois diranteiros, retangulares em cor cinza, e o enorme capô com abertura por onde saem partes mecânicas, um supercharger blower.A estória se inicia quando Knight Rider começa a ser perseguido pela patrulha e dá muito trabalho à corporação, tirando de ação dois carros e uma motocicleta. Max vai então ao seu encalço, com a viatura Interceptor. O efeito da droga do bandido começa a passar e ele chora ao perceber que sua fuga não terminaria bem. E acaba se acidentando e morrendo. Isso atiça a fúria do líder da gangue, Toecutter, que leva sua corja atrás de Max para vingança.

O filme é muito bom. Não convém contar o restante. Assista.

É curioso notar que, por muito tempo, “Mad Max” foi o filme que teve a maior taxa de lucro em comparação com seu custo da história. Isso durou até o sucesso de “A bruxa de Blair” (2000). Seu custo de produção foi de apenas 350 mil dólares (estimativa), contudo gerou uma receita de mais de 100 milhões de dólares. Seriam 28500%.

Ainda segundo a Wikipedia, George Miller, diretor e roteirista, é médico e trabalhou na ala de emergência de um hospital, onde teria presenciado muitos ferimentos e mortes de pessoas cujas histórias o inspiraram. Contudo, Miller achou que o público não acreditaria que esse tipo de roteiro ocorresse na atualidade. Daí teria vindo a idéia de fazer com que a aventura se passasse no futuro.

Em “Mad Max 2” (1981), há um prólogo adicionando que teria havido uma guerra nuclear mundial motivada pela falta de recursos energéticos. Depois disso, teria havido uma tentativa de se preservar o Estado, quando se passam os acontecimentos do primeiro filme. Na sequência, porém, não há mais resquícios de governo: paz e justiça deram lugar à sobrevivência a qualquer custo. Max, outrora policial rodoviário e depois justiceiro, tornara-se apenas um nômade das estradas.

Quando se assume que deveria haver uma harmonia na trilogia, o que intriga é algo que atinge o âmago ficcional da primeira produção, baseada em perseguições de automóveis em rodovias: em uma terra de ninguém, praticamente em ausência de Estado, como seria possível a manutenção de tão perfeitos pavimentos como vistos no primeiro filme, sem um buraquinho sequer? Pode-se imaginar um motivo para que os produtores tenham se esquecido desse detalhe e para que a audiência e a crítica sequer tenham notado: em nações mais desenvolvidas, talvez seja impensável que haja buracos em asfalto.

#MadMax #cinema #resenha #blog

 
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from Felipe Siles

A experiência de existir sem Instagram, Facebook, TikTok e Twitter

Faz muito tempo que gostaria de descrever essa vivência, mas achei que o intervalo de um ano seria o mais ideal e simbólico para materializar em palavras uma experiência que parece distante para muitas pessoas, talvez para a maioria. Importante ressaltar que não estou cagando regra, me colocando em superioridade moral ou coisa parecida, meu objetivo aqui é apenas descrever uma experiência, com seus prazeres e dores.

Saturação

O ano de 2022 foi difícil para mim. Por conta do isolamento social imposto pela pandemia de corona vírus, optei por deixar de morar em São Paulo, e voltar a residir, no interior do estado, onde passei a morar com meu irmão, na casa de herança de nossa mãe. As atividades presenciais estavam retornando aos poucos, mas eu não tinha o menor desejo de voltar a morar na capital, com seu custo de vida alto, financeiro e mental. A saída foi investir pesado no trabalho online. Tinha acabado de terminar o mestrado, o qual cursei inteiro sem bolsa, e não tinha pretensão naquele momento de já emendar num doutorado, precisava de um tempo para respirar e amadurecer as ideias. Vivia quebrando a cabeça de noite e de dia como ganharia dinheiro naquele contexto sendo músico e professor de música. Aos poucos, meus alunos iam abandonando as aulas online, e migrando de volta para cursos presenciais e a maioria dos grupos com quem eu trabalhava como músico já não me chamavam mais, por não estar mais na capital. Vivia basicamente do dinheiro de alguns poucos alunos com quem desenvolvi fortes laços afetivos, e que mantiveram as aulas online comigo, mesmo nesse contexto de volta às atividades presenciais. Mas era um dinheiro muito curto, fui me endividando cada vez mais.

Nessa altura do campeonato, eu era muito resistente à ideia de ter um Instagram. Comecei minha jornada nas redes sociais pelo Orkut, e sempre gostei e usei bastante redes sociais de texto, como o Facebook e Twitter. Redes sociais de imanges nunca me atraíram, passei direto pelo Snapchat, cheguei a criar uma conta para mim no Instagram, mas deletei porque simplesmente não a usava. Mas naquela situação profissional delicada, vivendo exclusivamente como profissional autônomo, acabei comprando um curso de produção de conteúdo, de um influenciador do campo político da esquerda. Sempre tive um pouco de preguiça dessa história de produção de conteúdo, mas a necessidade, e a oportunidade de aprender com alguém de viés político mais próximo ao meu fez com que eu acabasse me jogando na produção de conteúdo. Fiz conta no Instagram, no TikTok, dei uma repaginada no Facebook e no Twitter. Passei a produzir conteúdo praticamente diário, para divulgar meu trabalho como professor de música.

Os problemas nesse processo são vários. Um deles, é que notei um aumento na ansiedade. Eu consigo compreender porque influenciadores e youtubers relatam em algum momento problemas de depressão e ansiedade. Lidar diariamente com números e estatísticas de engajamento, pelo menos para mim, era um poço infinito de ansiedade, tenho certeza que se eu continuasse nesse caminho teria uma crise em algum momento. Pessoas lidam com isso de forma diferente, mas sei lá... minhas finanças dependiam desse plano ser bem sucedido, acho difícil não ter ansiedade em tal contexto, embora eu também sei que existem pessoas que lidam de maneira mais leve do que eu com a própria situação financeira. E, acreditem vocês nessa parte ou não, sou filho de santo iniciado em Obatalá, um orixá que representa a paz, a tranquilidade, o trabalho lento, de longo prazo. Toda essa ansiedade me fazia sentir mais distante do meu orixá de cabeça, não me sentia digno de representá-lo na terra, se não conseguisse acalmar meu coração e minha mente.

Outro problema é que nessa de procurar o que o público gostava, o que dava certo, o que gerava engajamento, eu começava a me perder de quem eu era. Olhar as estatísicas de retenção de atenção em um video de Youtube é uma experiência muito frustrante. O começo da produção de conteúdo é bem estimulante, principalmente para alguém com uma forte pulsão criativa, como é o meu caso. Mas com o tempo, a coisa não tem mais a ver com criação, com criatividade, e sim se manter na prateleira chamando a atenção das pessoas, concorrendo por essa atenção com Beyoncé, Bolsonaro e Luva de Pedreiro, loucura! Além disso, eu gostava tanto de usar Linux e aplicativos e softwares livres e de código aberto, estava passando tempo distante desse mundo que eu tanto amo, não pesquisava sobre o assunto como antes, tinha saudades até dos problemas que eu encontrei no Linux quando era um usuário muito novato e de como eu sempre conseguia resolvê-los com ajuda dos fóruns e da comunidade de usuários.

E, por último, mesmo com a minha dedicação na criação de conteúdo, não sentia que tinha um retorno financeiro à altura da minha dedicação e trabalho naquelas plataformas. Criei um plano de ensino de teoria musical por assinatura, e a adesão foi baixíssima. E a esmagadora maioria dos alunos se matriculou no curso depois de eu enviar divulgação em grupos privados (Whatsapp, Telegram e Matrix) e não pela propaganda no Instagram, TikTok e cia.

Quebra

Esse fluxo automático foi interrompido por alguns fatores. Um deles foi o fato de ter passado no doutorado. Inclusive o tempo que eu me dediquei a passar no processo seletivo do doutorado, elaborando projeto, lendo, era o único momento onde eu sentia que estava fazendo algo que eu gostava de verdade, algo para mim, que teria frutos no médio e longo prazo. Dessa vez eu tinha boas perspectivas de conseguir uma bolsa, um governo progressista venceu as eleições de 2022 e já nos primeiros dias anunciou aumento para os bolsistas. Além disso, eu tinha fé na minha comunidade espiritual, de que seria capaz de conseguir tudo que sonhava com o apoio dela.

Outra questão bem importante, ao contrário do estereótipo do militante de esquerda, eu gosto muito de ler livros sobre organização e produtividade. Já li vários: Bullet Journal (Ryder Carrol), O Poder do Hábito (Charles Duhigg), entre outros. Graças à indicação do ótimo podcast Tecnocracia (Guilherme Felitti), eu descobri o livro Deep Work de Cal Newport. Eu não gosto da maneira como traduziram o título desse livro para o português, para Trabalho focado, embora consiga compreender o apelo desse título no público brasileiro que consome esse tipo de literatura. Enfim, esse livro me ajudou muito a repensar várias coisas na minha vida, e me trouxe a ideia de que o trabalho profundo não só é mais produtivo, mas como uma vida vivida em profundidade é melhor. E o autor ensina como se livrar das distrações superficiais, que te tiram o tempo todo desse contato com uma dimensão mais profunda do trabalho e da vida.

Por último, mas não menos importante, eu tive um reencantamento pelo mundo do código aberto e do software livre. Encontrei um amigo em Belo Horizonte, quando fui assistir ao show do Milton Nascimento, e a empolgação dele com o mundo Linux e FOSS incendiaram novamente a minha paixão pela ideia de democracia digital.

Ventos da mudança

Com a aquisição do Twitter pelo Elon Musk acabei aderindo ao movimento coletivo de deletar a conta lá e migrar para outra plataforma. Tinha gente migrando para o Koo, BlueSky, entre outras plataformas. Mas a minha proximidade com a comunidade do software livre me fazia olhar com bons olhos para o Mastodon. Inclusive eu já tinha tentado a plataforma anteriormente, mas a falta de uma comunidade ativa em língua portuguesa na época me fizeram abandonar a plataforma. Porém, agora com essa grande diáspora do Twitter, pude conhecer uma galera brasileira e lusófona bem ativa e engajada no Mastodon. Essa experiência com o Mastodon me levou a conhecer o Fediverse e me encantar com ele. Isso tudo me levava a um dilema, se apaguei o Twitter, que era a rede social que eu mais gostava de usar, me via obrigado a ceifar também as redes que eu odiava, que era obrigado a manter só para divulgar meu trabalho autônomo, e mesmo assim sem sucesso. Sem muito planejamento, sem muita preparação ou aviso, simplesmente deletei Facebook, Instagram e TikTok, em janeiro de 2023, não me recordo precisamente o(s) dia(s).

Janeiro é um mês parado profissionalmente para mim. Alunos estão de férias, normalmente viajando. Tenho poucos trabalhos nessa época, não sou um músico que toca muito em Carnaval (músicos de percussão e sopros tocam mais nessa época, emprego para pianista e sanfoneiro não tem muito), portanto não dedico esse mês para o ensaio do mesmo. Então faz tempo que faço do meu janeiro um laboratório do que eu quero para o meu ano inteiro. Eu sabia que o ideal era esperar conseguir uma bolsa de doutorado primeiro, para depois sair das redes sociais comerciais, já que talvez precisasse ainda divulgar meu trabalho autônomo por lá. Mas, por outro lado, a experiência prática me mostrou que a divulgação em grupos privados era mais eficiente para mim que a criação de conteúdo. Além disso, não podia desperdiçar o meu mês laboratório de janeiro para fazer ajustes, se fizesse esse tipo de mudança drástica no decorrer do ano me sentiria alguém consertando o carro andando.

A perspectiva era boa, doutorado, voltaria a frequentar São Paulo ao menos uma vez por semana para assistir as aulas na faculdade. Dava para organizar algumas aulas presenciais em São Paulo, alguns trabalhos como músico, as coisas iam se ajeitando novamente e ainda havia a perspectiva da bolsa de doutorado, que acabou vindo! Fiquei, orgulhosamente, em primeiro lugar no processo seletivo interno do meu programa de pós graduação. Tenho certeza que o fato de eu ter trabalhado de maneira dedicada sem as distrações das redes sociais ajudaram a alcançar tal feito. Esse primeiro lugar foi muito importante para minha auto-estima, que andava abalada e por premiar como correto o caminho e a estratégia que empreguei, já que tive muitas incertezas e medos ao longo do processo.

Como fiquei em primeiro lugar no processo seletivo, passei a receber a bolsa rapidamente, ainda no primeiro semestre do doutorado. Já tinha planejado que, com a bolsa, daria um tempo na minha vida de trabalhador autônomo. Pararia com as aulas particulares, que me tomava tempo, concentração e energia mental, e faria como músico instrumentistas apenas trabalhos que faziam sentido para mim. Também pude me concentrar melhor na elaboração de projetos visando leis públicas de incentivo, e foi dessa forma que lancei meu primeiro livro. Além disso, o fato de eu não precisar vender nem convencer ninguém a nada trouxe uma leveza para a minha vida que eu não consigo nem descrever. A vida não poderia estar melhor. Mas voltemos às redes sociais...

Twitter x Mastodon

Como eu disse antes, gostava muito do Twitter. Era uma rede onde eu me mantinha razoavelmente informado, principalmente sobre a política. E era onde eu tinha uma esperança de conseguir alguma visibilidade ao longos dos anos. Passei três anos me dedicando a essa rede, postando nela esperando algum engajamento, para a maioria dos tweets ficar abandonada aos sons de grilos. Cheguei a “hitar” algumas vezes, mas isso nunca fez com que eu ganhasse sequer um único seguidor. Me sentia falando com ninguém ali, e só tinha interação quando comentava no tweet dos outros. Nesses três anos acumulei um pouco mais de 500 seguidores, ridículo em relação aos 3000 que eu tinha no Instagram, uma rede social que eu odiava e que tive por menos de um ano.

A primeira grande diferença que senti no Mastodon é a quantidade e qualidade das interações. Raramente fiquei aos sons de grilos lá, mesmo o post (lá eles se chamam toot) com a piada mais tiozão do pavê acabava ganhando pelo menos um mísero like. E a comunidade do Mastodon é muito menor que a do Twitter, então tenho aquela sensação boa de vida em comunidade, de que conheço ou pelo menos vi a cara de todo mundo ali em algum momento. Foi uma experiência parecida com a de mudar da capital para o interior.

Desde então, o Mastodon passou a ser minha rede social principal. Passei a olhar com carinho também para outras plataformas dentro do Fediverse. Subi alguns videos no PeerTube, mas não dá pra dizer que é uma plataforma que eu consumo atualmente. Fiz um Pixelfed, mas acabei abandonando igual ao meu primeiro Instagram, já que esse tipo de rede não tem apelo pra mim. Uso também o Funkwhale, mas parecido com o PeerTube, mais alimento de conteúdo do que consumo. E, no momento, estou bem animado com o Lemmy, tenho gostado e usado bastante. Foi outra rede que cresceu depois da diáspora do Reddit, numa história bem parecida com a do Twitter com Mastodon, e acabou ganhando uma comunidade brasileira bem ativa. E gosto bastante também do Writefreely, onde você está lendo este texto no exato momento.

Instagram

Como eu disse antes, rede social de imagem nunca teve apelo comigo. Nem mesmo no meu auge da produção de conteúdo eu não consumia a timeline do Instagram e muito menos a do TikTok. Eu tinha até uma brincadeira de que eu era um traficante e não um usuário de drogas. Nem mesmo o TikTok com seu poderoso algoritmo me ganhou. Eu acho que em algum momento eu tive muita clareza de que essas redes não eram mais sociais e sim redes de entretenimento. E um entretenimento de gosto bem duvidoso... Sei lá, ao invés de ver um video tosco feito por um amigo, eu acho que eu prefiro ver um filme do Tarantino ou do Spike Lee (nada contra quem prefere o video tosco). Não julgo o escapismo de ninguém, eu também tenho o meu, mas procuro preenchê-lo com entretenimento pelo menos bem produzido. Enfim... gosto...

Outra coisa interessante que aprendi nesse processo é que o Instagram, dessas redes comerciais que eu citei é a única relevante de verdade para a maioria das pessoas. Quando digo que não tenho Twitter, ninguém liga, porque o brasileiro não tem Twitter. A última vez que vi uma notícia sobre isso dizia que até o Pinterest tem mais usuários ativos no Brasil que o Twitter. Ele ganha esse status de importância por conta do número de jornalistas e políticos que estão lá, dão à plataforma essa sensação de credibilidade, mas um país com grande índice de analfabetismo digital não dá muita bola para uma rede social baseada em textos.

TikTok, apesar de ser uma rede de muito sucesso, eu tenho impressão que ninguém questiona quando digo que não tenho. Apesar de ser uma rede com públicos de todas as idades, inclusive sucesso entre pessoas idosas, é inegável que ficou marcada na plataforma chinesa uma imagem de rede social dos jovens. Então quando alguém nascido em 1985 diz que não tem TikTok isso não causa muita surpresa nas pessoas.

Facebook é uma rede ainda muito relevante no Brasil, principalmente no Brasil profundo, conforme pudemos acompanhar no podcast Rádio Escafandro, na série O pastor. Porém, também é relativamente comum, mesmo entre pessoas ditas normais gente que cansou do chernobyl ali do Facebook, principalmente no pós-eleições e saiu da plataforma, ou abandonou o perfil, ou olha lá muito de vez em quando. Então dizer que não tem Facebook também não causa surpresa em ninguém.

Já o Instagram... Dizer que não tem Instagram é quase dizer que não tem RG. Tanto que atualmente nem digo mais para as pessoas que não tenho redes sociais comerciais, prefiro ir direto ao ponto e dizer que não tenho Instagram. As reações, basicamente, são:

  1. A pessoa demonstra admiração e curiosidade, mas ao longo da conversa vai tentando me convencer a voltar a usar a plataforma. A pessoa gosta do meu ponto, mas me diz que não preciso ser tão radical, que dá pra fazer um uso mais saudável da rede, etc. Eu percebo que esse é o menor grupo;

  2. A pessoa demonstra admiração, e meio que se justifica, diz que não gosta muito das redes, que se pudesse também deletaria, mas que precisa por motivo x ou y, normalmente trabalho, família e/ou amigos. Eu percebo que esse grupo é relativamente grande, rivaliza com o próximo;

  3. A pessoa não faz muito rodeio, diz que é um erro, que todo mundo precisa ter o Instagram hoje em dia, que consegue bons resultados por ali, e aquele papo todo que vocês já conhecem. Quando isso acontece eu fico até apreensivo de que essa pessoa vai se tornar o Agente Smith e começar a me perseguir atirando pela Matrix. Esse grupo é tão grande quanto o anterior.

O que eu costumo responder para as pessoas é que pesando os prós e contras, aquilo que as redes nos proporcionam e aquilo que elas tiram de nós, eu não acho que compense estar ali.

Conclusão

Hoje em dia tenho plena certeza de que as redes sociais comerciais, que eu tenho preferido chamar de redes de entretenimento servem justamente para isso, nos entreter. O quanto deixamos de olhar para nós mesmos, o quanto deixamos de sentir tédio, para ficarmos nos alimentando de dopamina como zumbis viciados. Outro livro bem importante nesse processo foi Nação dopamina (Anna Lembke), recomendo que vocês leiam. Essa exposição constante a esse entretenimento fácil tem prejudicado nossa capacidade de atenção, concentração, disciplina, além da capacidade de enfrentar situações desagradáveis e que nos contrariam. É o Narciso achando feio o que não é espelho... Quando vimos algo que não gostamos, silenciamos, bloqueamos... isso antigamente, já que o algoritmo nem tem deixado mais a gente em contato com o contraditório, a não ser quando a gente precise engajar algum conteúdo pelo ódio, ou seja, somos marionetes nas mãos da Big Tech, políticos de esquerda e direita são marionetes também nas mãos deles.

A minha vida sem redes da Big Tech é mais saudável. Tenho rotina, tenho bons hábitos, me alimento melhor, sou mais disciplinado, menos ansioso, lido relativamente bem com o tédio e com processos mais lentos e demorados. Até comecei agora a fazer academia. Em geral, consigo me propor ao que planejo, afinal todo o tempo livre que essas redes consumiriam eu acabo utilizando para fazer coisas saudáveis, sejam produtivas (como marcar uma reunião, escrever um relatório, revisar um artigo, etc) ou coisas para o meu bem estar, como ler um livro, ver um filme, passear com cachorro. O fato de não ter as redes, meio que me obriga também a fortalecer o contato com pessoas reais. Faço parte de dois grupos da minha cidade, um religioso e um de teatro. Acabei me engajando nesses grupos e as pessoas que fazem parte deles atualmente são meus grandes amigos, são irmãos para mim.

Eu tenho a impressão de que eu só voltaria a ter as redes de entretenimento se fosse uma necessidade muito específica. Por exemplo, reativei uma conta no Instagram do meu podcast Estação Música, que uso quando preciso mandar uma mensagem para alguém que eu não tenho o telefone. Uso só pelo computador e não tenho o Instagram instalado no meu celular. Achei que usaria mais, mas usei apenas uma vez, quando queria comprar um tambor específico com alguém que só vende por lá. Mas voltar a criar ou consumir conteúdo, eu acho muito difícil... Não vou dizer impossível, nunca diga nunca, mas não vejo qualquer possibilidade no horizonte atual.

Ainda quero escrever um texto sobre divulgação artística e musical, muito provavelmente no Zumbido de Bamba, blogue no qual sou colaborador. Se você precisa usar as redes sociais para divulgar seu trabalho eu não te julgo, já que eu não tenho costume de julgar a vítima. Nosso inimigo é a Big Tech, é a Google, a Meta, eles são nossos colonizadores e capturaram coisas preciosas como a nossa atenção, o nosso tempo livre e nos deram o Instagram, ou seja, espelhinhos em troca do nosso ouro e do nosso pau-brasil.

Eu também estou num momento profissional muito específico, já construi minha rede de contatos, e através dela sempre tenho trabalhos. Além disso, a bolsa de doutorado segura minhas finanças, conforme expliquei lá atrás. Eu também acabei percebendo que a divulgação é um trabalho e deve ser feito por profissionais competentes, especializados e remunerados. No meu atual estágio eu tenho preferido aumentar a minha rede de contato com jornalistas que vão repercutir o meu trabalho do que investir esse tempo em redes sociais. Quando se digita “Esmeraldino Salles” em qualquer buscador, pelo menos atualmente, a primeira página estará repleta de trabalhos meus, e não consegui isso através de redes sociais, e sim investindo tempo na minha própria pesquisa de mestrado, postando em blogues, escrevendo verbetes para a wikipedia e, por último mas não menos importante, dando entrevistas para jornalistas. E, para a minha surpresa, a maioria dos jornalistas adora quando levamos pauta para eles.

Sei que meu caso é específico e muito provavelmente a minha experiência não se encaixa na sua vida. Mas encare este texto como um convite. Se você também não tem redes sociais comerciais este texto pode servir como identificação e reforço de suas convicções pessoais, o que é ótimo. Mas se você possui as redes sociais e é ativo nelas, eu te convido a refletir um pouco sobre essa relação. Quanto tempo passa nelas? Consegue ficar quanto tempo sem olhá-las? Consegue ficar entediado ou passar por uma situação desconfortável sem dar uma olhada nelas? Ainda consegue manter uma leitura de mais fôlego? E ver um filme mais longo sem pegar no celular ou dar muitos intervalos? Consegue sequer assistir um jogo de futebol ou do seu esporte favorito sem o celular na mão? Considera que sua concentração continua igual a antes dessas redes? E sua disciplina e capacidade de realizar as coisas, como está? A partir dessa reflexão, faça aquilo que você julgar melhor para você e para as pessoas ao seu redor.

Além do nosso tempo, nossos dados, nossa concentração e nossa saúde mental, as redes sugam nossa pulsão criativa. Imagina o que estaríamos produzindo sem ela, livros, filmes, fotografias, novas invenções, ideias, conceitos. Se a gente não tivesse essa sensação de que estamos participando da política através dela talvez nos engajaríamos mais em movimentos, partidos e projetos sociais.

Não estar nas redes de entretenimento é um pequeno gesto de rebeldia e desobediência civil, dentro desse feudo que se tornou a internet plataformizada. Estar fora e mostrando para as pessoas que dá para viver sem elas, para mim é um compromisso ético e civilizatório.

 
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from daltux

🇬🇧 English version

Discordo fortemente quando alguém afirma equivocadamente que “Linux” (querendo frequentemente dizer GNU e outros sistemas tipo Unix) seria projetado para ser usado somente pela linha de comando e, assim, usuários finais seriam melhor servidos por um ou dois sistemas operacionais não livres para computadores pessoais, especialmente aquele que atualmente domina o mercado.

Há de fato um enorme esforço de “Linux”/etc. no lado do servidor (back-end), isso felizmente, já que é o sistema operacional que tem sustentado atualmente a sociedade da informação global, executando a maioria dos servidores da Web, a infraestrutura de telecomunicações em geral, os maiores supercomputadores, projetos científicos de variadas áreas, dispositivos móveis e embarcados, incluindo veículos automotores. Os ditos interpretadores de comandos na realidade tornam a vida de quem aprende a usá-los mais fácil e rápida. Isso não é uma fraqueza, e sim uma vantagem muito poderosa.

Dito isso, também tem havido grande desenvolvimento, por décadas, do que chamamos de ambientes de área de trabalho livres (Free Desktop), com diversas implementações, algumas menos e outras mais orientadas ao usuário final.

Captura de tela do Pantheon desktop, do Elementary OS. Apresenta fundo com uma foto de paisagem, barra superior transparente com letras e ícones brancos, destacando-se a ativação de um item responsável pela abertura de uma janela de escolha com vários ícones para lançar aplicativos e uma barra de texto por onde pode ser pesquisado algum aplicativo. Na parte inferior, há uma barra tipo dock com ícones pelos quais aparentemente também podem ser iniciados programas ou abertos aqueles que estejam em execução.

Usuários comuns de navegadores Web e aplicativos em geral não têm necessidade de saber muito sobre o que o computador faz por trás da interface gráfica humano-máquina. Eles contam com outras pessoas para suporte técnico, e os ambientes desktop livres não mudam esse fato. A maior diferença é que oferecem mais opções e liberdades, dando a impressão de uma escolha mais difícil. Contudo, independentemente do tipo de software envolvido, quando solicitados a instalar ou dar manutenção em uma máquina dessas, faz parte do trabalho de profissionais de TI levantar o que seus clientes precisam no computador, conhecer as opções disponíveis ou pesquisá-las, para satisfazer essas necessidades. Não precisa ser como uma religião com uma única verdade inquestionável para todas as situações, como infelizmente parece ser o caso com frequência. Ao contrário, a idéia aqui é empoderar os usuários para que consigam exercer sua liberdade e mantê-la sustentável.

Meu pai (com mais de 70 anos), que felizmente é saudável, mas nunca tinha usado um computador antes, acabou se tornando um usuário final de Xfce e Firefox praticamente sem treinamento. Ele sabe como ligar, colocar sua senha, iniciar o navegador por um ícone na tela, abrir alguns sites que deixei marcados na Barra de Favoritos, como de instituições financeiras, correio eletrônico, notícias etc. Eventualmente, aprendeu como digitar outros endereços simples, fazer buscas, e até a me chamar para uma sessão de assistência remota quando precisa. Isso teve início antes de ter começado a usar celulares inteligentes. É como o usuário idoso médio de outros sistemas, ou melhor. Há alguns docentes pós-doutores na universidade que, mesmo com o sistema operacional dominante, chegam a ter dificuldade para fazer isso tudo, talvez por falta da vontade necessária. Ele na realidade até chegou a experimentar, sem minha interferência, o sistema proprietário que veio instalado em um então novo notebook, já há vários anos. Não demorou até me pedir para “consertá-lo”, deixando como está acostumado. De vez em quando, atualizo para ele o Xubuntu, que então permanece estável, eficiente em uso de recursos, seguro, possuindo o que ele precisa, sendo que com outro sistema provavelmente a máquina já estaria obsoleta. Então, como poderia não estar feliz com isso? Ele reclama quando um site não faz o que ele quer, o provedor de Internet cai ou a impressora trava, como qualquer outro usuário. Por tudo que é tão elogiado naquele típico sistema operacional proprietário, dito intuitivo, era para ser bem fácil para todas as pessoas se acostumarem a ele, certo?

A lição é que qualquer mudança de hábito é muito difícil para a maioria das pessoas, que costumam ser teimosas. Se tivessem sido ensinadas desde o princípio a usar algum ambiente desktop, ferramentas e aplicativos livres, mesmo que diferentes de seus equivalentes privativos com funcionalidades semelhantes, elas estariam acostumadas e provavelmente evitariam a situação oposta. Assim como as massas têm sofrido lavagem cerebral para acreditarem que existe apenas uma maneira de usar o computador. É por isso que elas mantêm tudo na mesma, ainda que estejam sujeitas a obsolescência programada, aprisionamento tecnológico, práticas monopolistas, comprometimento de privacidade e segurança, ou algum outro tipo de dependência pesada das maiores corporações de tecnologia, preferindo isso a aprender qualquer coisa que pudesse torná-las capazes de mais liberdade.

#SoftwareLivre #Liberdade #GNU #Linux #GNULinux #CódigoAberto #GNOME #KDE #Xfce #LXDE #Pantheon #Budgie #Firefox #desktop #POSIX

 
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from daltux

🇵🇹🇧🇷 Versão em português

I strongly disagree when people mistakenly claim that “Linux” (meaning GNU and other Unix-like) is designed to be used only on the command line interface, and therefore end users would be better served by one or two more common desktop operating systems, especially the currently dominant one.

There is indeed a strong “Linux”/etc focus on the backend/server-side, thankfully, as they drive the information society world today, running most web and database servers and other infrastructure, supercomputers, important scientific projects, artificial intelligence development, mobile and embedded devices, like probably even your automobile. The said command line interpreters actually make life easier and faster for those who learn how to use them. This is not a weakness, but a very powerful feature.

Having said that, there has also been great development for decades on what we call Free Desktop environments, with many different implementations, some more end-user oriented than others.

Screenshot of Pantheon desktop, from Elementary OS, having a landscape wallpaper image, a transparent top bar with white characters and icons, highlighting the activation of an item responsable for opening an application selection menu with several icons to launch them and a text field for app searching. At the bottom, there is a dock with icons, probably for opening applications already running.

Regular web browser and most application users have no need to know much about what the computer is doing behind the graphical human-machine interface. They rely on other people for technical support, and Free Desktop environments do not change this fact. The main difference is that there are more options and freedoms, giving the impression of a harder choice. However, when asked to install software and maintain such a machine, it is the job of good computer technicians to learn the needs of their clients, know or find the options, and meet those needs. It does not have to be like a religion with a single, unquestionable, true solution for all situations, as is unfortunately often the case. On the contrary, the idea here is to empower users to fulfill their freedom and keep it sustainable.

My old man (over 70 years old), who is fortunately healthy but had never used a computer before, became a Xfce/Firefox “light” end user without proper training. He knows how to turn it on, enter his password, start the browser that has an icon, load some sites I left on the Bookmarks Toolbar, e.g. his banks, stock market, email provider, favorite news. Eventually, he learned how to type in other simple addresses, search, and even call me for remote assistance if needed. All this before he started using smartphones. Just like or better than the average older user of other systems. There are some PhD professors at the university who, even on the dominant OS, have a hard time doing all this, perhaps lacking the necessary will. He actually tried the built-in proprietary system without my interference after buying a new laptop (already years ago), but soon asked me to “fix” it. From time to time I upgrade Xubuntu for him, then it remains stable, resource efficient, secure, has what he needs, so how could he not be happy with it? He complains when a website doesn't do what he wants it to, the internet provider goes down, or the printer hangs, like everyone else. Based on what is so praised about the typical proprietary operating system, it should be very easy for all people to get used to it, right?

The lesson is that any habit change is very difficult for most people, and they are usually stubborn. If they had been taught from the beginning how to use some Free Software desktop environment, tools, and applications, even if they were different from most common proprietary counterparts with similar functionality, they would get used to them and probably avoid the opposite situation. Just as the masses have been brainwashed into believing that there is only one way to use a computer. That is why they prefer to keep it the same, even if it is subject to premature obsolescence, vendor lock-in, privacy and security compromise or any other kind of heavy dependence on Big Tech, rather than learn anything at all that would make them capable of broad freedom.

#FreeSoftware #FreeAsInFreedom #GNU #Linux #GNULinux #FOSS #GNOME #KDE #Xfce #LXDE #Pantheon #Budgie #Firefox #FreeDesktop #desktop #POSIX #PC

 
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Acaba sendo bastante interessante pelo menos alguém, em uma equipe que trabalha com um parque repleto de Debian GNU/Linux e/ou derivados como Ubuntu, utilizar Debian Sid ou pelo menos Testing na sua máquina de uso direto: pode ser possível antecipar as eventuais mudanças relevantes na distribuição, por ficar sabendo delas mais naturalmente e provavelmente ter que tratá-las ali assim que ocorrerem, bem antes das máquinas de produção.

Isso ainda permite minimamente contribuir com o teste do sistema operacional utilizado (normalmente) gratuitamente para seu sustento, sendo um projeto colaborativo. Acaba se acostumando a se desvencilhar de possíveis problemas em atualizações, bem como a manipular suas ferramentas e métodos mais recentes. Enfim, aprimorar-se mais do que se não fizesse isso.

Fica menos fácil se utilizar distribuições em formato distinto daquela predominante no seu parque. Muito mais difícil se fizer como muitos que teimam até em usar outros sistemas operacionais que não se justificam além das massas. Pior ainda, aqueles com arquiteturas totalmente proprietárias, específicas, longe dos padrões POSIX.

Esse conceito veio após o exemplo que segue.

Mensagem exibida ao se atualizar o pacote sudo do sid nesta sexta-feira, 2023-12-08:

apt-listchanges: News

sudo (1.9.15p2-1) unstable; urgency=medium

sudo-ldap has become a burden to maintain. This is mainly due to the fact that the sudo team has neither the manpower nor the know-how to maintain sudo-ldap adequately.

In practice, there are few installations that use sudo-ldap. Most installations that use LDAP as a directory service and sudo have now opted for sssd, ssdh-ldap and libsss-sudo.

The Debian sudo team recommends the use of libsss-sudo for new installations and the migration of existing installations from sudo-ldap to libsss-sudo and sssd.

The combination of sudo and sssd is automatically tested in autopkgtest of sudo.

This is also being discussed in #1033728 in the Debian BTS.

Debian 13, “trixie”, will be the last version of Debian that supports sudo-ldap. Please use the bookworm and trixie release cycles to migrate your installation away from sudo-ldap.

Please make sure that you do not upgrade from Debian 13 to Debian 14 while you're still using sudo-ldap. This is not going to work and will probably leave you without intended privilege escalation.

— Marc Haber mh+debian-packages@zugschlus.de Mon, 20 Nov 2023 10:07:57 +0100

Em suma, a equipe reponsável pelo empacotamento do sudo declara que trixie — codinome da versão em testing atual, a ser eventualmente paralisada para ser lançada como Debian 13, ainda sem data — será a última versão de Debian com disponibilidade do pacote sudo-ldap.

Felizmente, em máquinas mais recentes, acaba sendo mais frequentemente usado sssd para a integração com o LDAP por ser o que possui mais instruções na documentação, e é realmente uma alternativa apontada pela equipe do sudo agora.

Como Ubuntu é filho de Debian, as mudanças deste devem chegarão em algum momento a Ubuntu também. Nesse caso, se continuarem o padrão atual, provavelmente até 2026.

Claro que seria também possível manter máquinas no parque de servidores para testes com Debian sid ou testing, que precisariam ser frequentemente manipuladas, ou talvez seguir as listas de discussão (difícil por serem inúmeras), porém as atitudes não são excludentes.

 
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from john

dia desses eu vi um vídeo do canal filmento sobre o filme The Creator (2023). aparentemente, esse filme tem gerado um certo burburinho acerca da suspeita de que seria uma obra feita por IA. Eu nunca vi o filme em si, mas o argumento desse vídeo do filmento me chamou muita atenção: não importa tanto se foi um humano ou uma máquina que escreveu o filme, porque independente disso, é um filme escrito como se fosse por IA. significando que da mesma forma como as IA atuais escrevem copiando e colando sem muita consideração pedaços de outras obras, esse filme é uma grande colcha de retalhos de elementos celebrados em outras obras, mas que foram misturados sem a preocupação de construir um todo que seja coerente e artisticamente significativo. ao passo que o vídeo convence bem que a película é um catadão de elementos cinematográficos sem um roteiro que sustente, não deixo de pensar que os filmes já são feitos por IAs há muito tempo. por isso a gente escuta tanta reclamação de que não temos histórias novas, só roteiros derivados. a IA não eram os escritores, mas o sistema de produtores, bancos, agentes e empresários que regurgitam roteiros medíocres e seguros, colagens de sucessos do passado que não passam de imitações baratas ou sombras do que teriam sido. a decepção é a emoção padrão no cinema comercial hoje. acho que no fundo a reclamação do scorcese não vem tanto do fato de que o filmes comerciais são feitos pra entreter, mas de que as IAs (seja um LLM da vida ou um conglomerado de mídia) são incapazes de criar coisas realmente novas, que nos afetem e sim, talvez incomodem.

#IA #Cinema #Filmes

 
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from groselhas

Considerações sobre o artigo “Positive and differential diagnosis of autism in verbal women of typical intelligence: A Delphi study [1]”

DISCLAIMER IMPORTANTE: o artigo fala principalmente de autismo de nível de suporte 1, apesar de não citar o termo, e eu também falo disso aqui. Mulheres com níveis de suporte mais alto também sofrem com demora em seus diagnósticos, mas as questões identitárias são sensivelmente diferentes às que eu experiencio.


Olá, sou Ana, uma pessoa autista adulta (25 anos), identificada socialmente como mulher e diagnosticada tardiamente (24 anos). Já escrevi anteriormente sobre minha experiência de diagnóstico tardio de autismo.

Recentemente, acabei me desvencilhando de acompanhar conteúdos e discussões acerca de autismo, em uma tentativa de me dar o espaço necessário para processar o diagnóstico sem intervenções de redes sociais. Entretanto, participo do grupo de WhatsApp “Autistas – UNICAMP”, minha alma mater, que reúne pessoas autistas da Unicamp e relacionadas. Algumas vezes, pessoas compartilham materiais acadêmicos sobre autismo por lá, e o artigo aqui citado em especial me chamou atenção.

Em “Positive and differential diagnosis of autism in verbal women of typical intelligence: A Delphi study” (CUMIN, PELAEZ, MOTTRON, 2022) ês autories reconhecem os critérios diagnósticos do espectro autista (de acordo com o DSM-V e o CID-11) vagos. Atualmente, nos EUA, um dos países com a maior documentação estatística acerca do assunto, a prevalência de autismo é de 1 para 36 crianças [2], o que pode estar relacionado a diversos fatores. Entretanto, a proporção entre meninos e meninas é de 4 para 1, o que reacende a discussão sobre o processo diagnóstico de TEA em meninas.

Historicamente, o processo diagnóstico de TEA em meninas vem sido prejudicado por preconceitos de gênero e enviesamento dos próprios critérios e testes diagnósticos. Principalmente no tocante a diagnósticos tardios femininos, há uma dificuldade em diferenciar o autismo, um transtorno biopsicossocial, de condições psiquiátricas, como o transtorno de personalidade limítrofe (borderline). O ponto do estudo, portanto, foi averiguar os critérios específicos de diferenciação diagnóstica para mulheres adultas com inteligência “normal”, por parte de especialistas em autismo envolvidos com esse perfil em sete países.

Foram 37 os critérios citados em comum por 20 profissionais entrevistades, separados nas seguintes categorias: fatores de complexidade no atendimento, como gerir esses fatores, sinais típicos de autismo em mulheres e diagnósticos diferenciais e comorbidades.

Entre os fatores de complexidade no atendimento, três coisas me chamaram a atenção: o auto-diagnóstico, condições de estigma relacionadas a transtornos comórbidos e reações negativas com o (não-)diagnóstico.

O autodiagnóstico de autismo é um tópico extremamente inflamado dentro da comunidade autista e arredores (como pais, profissionais de saúde, etc.). Grande parte des defensories de auto-diagnóstico estão de acordo que o autodiagnóstico é apenas a primeira parte do processo diagnóstico e não o ponto de chegada. Entretanto, principalmente entre adolescentes, cresce a quantidade de pessoas envolvidas em reconhecer transtornos por meio de listas superficiais em redes sociais com conteúdos cada vez mais pulverizados e até falsos. Cada vez mais, quando têm acesso ao processo diagnóstico oficial, adolescentes e adultes chegam cheies de certeza de seus diagnósticos, o que atrapalha substancialmente o próprio processo.

Qualquer pessoa que tenha o mínimo conhecimento acerca do DSM-V, um manual estadunidense e o principal manual utilizado no Brasil para orientação de processos diagnósticos psiquiátricos e afins, sabe o quanto pode ser sutil e política a diferença entre diagnósticos. É difícil de chegar a uma conclusão certeira até mesmo para profissionais, mas de alguma forma criou-se a narrativa de que qualquer um pode se autodiagnosticar autista, porque “ninguém conhece você melhor que você mesmo”. Essa parte é particularmente delicada porque muitas pessoas têm seus acessos a diagnósticos negados sistematicamente por diferenças raciais, econômicas e de gênero. Entretanto, o que deve ser envisionado aqui não é a banalização do diagnóstico e sim o questionamento das condições socioeconômicas degradantes a que nós pessoas marginalizadas somos expostas, e, por que não?, a própria categoria diagnóstica.

O neoliberalismo cria as categorias médicas psiquiátricas e as explora enquanto identidades, em um ciclo retroalimentado. 10 anos atrás, quando eu ainda era adolescente e o autismo não era assunto muito comum em redes sociais brasileiras, já se colocava na biografia de sites como Twitter certos indicadores como “bipolar” ou “borderline”. Em outras palavras, não é exatamente um fenômeno pós-TikTok ou restrito a adolescentes nascides após 2003. Infelizmente, o que se observa é cada vez menos a denúncia das intrínsecas relações entre psiquiatria e neoliberalismo e cada vez mais o abraço em identidades. Eu entendo esse fenômeno como vizinho a outro típico do neoliberalismo: todos nós queremos ser úniques, e cada identidade que colocamos em nossas descrições nos ajuda a nos afirmarmos contra o mundo. Em um mundo adoecido de capitalismo tardio, dominado por relações precárias e expropriação de mais-valor extrema, todos sofremos . Aqui não se trata de dizer que “todo mundo é um pouco autista”, afinal de contas, todes sofremos, mas nossos sofrimentos podem ser distintos e o autismo é uma categoria definida. O que coloco em questionamento é a certeza adolescente e jovem-adulta de que sofremos mais do que ês outres e que somos especiais por isso, como se o ônus de sofrer estivesse vinculado necessariamente a um transtorno psiquiátrico... o que não deixa de ser uma postura individualista!

O gancho aqui exposto me leva ao segundo tópico: condições de estigma relacionadas a transtornos comórbidos. A depressão, o transtorno bipolar, o transtorno de ansiedade, o transtorno de personalidade limítrofe, todos eles carregam um pesado estigma social de serem questões puramente pessoais. Quem carrega esses transtornos o carrega por questões individuais, sendo a cura uma questão individual também. “Tem que ter a terapia em dia”, diz a massa jovem em relação a parceires afetivo-sexuais, como se a terapia fosse a panaceia dos problemas psicossociais. Ao contrário, a delimitação do conceito de neurodiversidade coloca no cérebro biológico a “culpa” de sermos quem somos. Não podemos ter culpa sobre nossos sofrimentos se é algo que nascemos com, ou seja, nos afastamos do estigma de sermos responsáveis por nosso próprio “fracasso”. Já não devemos algo à sociedade, ela quem nos deve algo, porque somos diferentes e a nossa diferença importa.

Note que eu definitivamente não concordo com essa leitura sobre os transtornos mentais, e também não afirmo que a vida de autista/neurodiverse é flores. Nós autistas sofremos sistematicamente com exclusão em vários aspectos sociais, mas aqui meu foco é outro: o uso da linguagem e da identidade para, individualmente, nos resguardarmos do sentimento desgraçado de ser uma falha. Ao abraçar a alcunha de “depressives”, nos indicamos individualmente doentes, e nos colocamos na terapia. Ainda que a depressão tenha também sido cerebralizada (um termo usado por Ortega, em “Somos Nosso Cérebro?”), o autismo é especialmente cerebralizado. No autismo, somos nosso cérebro, ele comanda todas as partes do nosso ser. Essa cerebralização de fenômenos psicossociais como se o cérebro fosse de fato uma CPU natural é uma visão neoliberal e colonizada. Desde quando uma parte do nosso corpo (o cérebro) recebeu uma importância desenfreada em nosso senso comum? A proliferação de abordagens neurocientíficas, que acrescentam o prefixo “neuro” em toda e qualquer coisa, gera a neurodiversidade, mas também a “neuroindividualização” (acabei de inventar esse termo). Nós autistas somos um corpo uno, nosso cérebro é apenas parte de nós. Quando compramos essa lógica cerebralizante, estamos também sumindo perante o capital. Em resumo, é meu cérebro que é assim, eu sou diferente e pronto e acabou.

Mas, afinal de contas, existem cérebros típicos? É a pergunta de milhões. Mesmo assim, diversos membros da comunidade autista parecem se segurar em uma premissa de que são um mundo à parte, com uma diversidade natural não vista em nenhuma outra parte da sociedade, e até mesmo colocam questões morais no meio, taxando ês “neurotípiques” de pessoas intrinsecamente ruins. Criamos uma divisão entre “nós” e “elus” que é completamente cinza, ou seja, não tem um critério claro. E mesmo que esse critério fosse claro, é justificado nos fecharmos em um círculo de pureza? Afinal de contas, como o próprio estudo aponta: “A diagnosis of autism can provide a feeling of belonging to a community, and some clinicians felt that the autism as a social identity resonated particularly with their female patients. Many clinicians indicated that autism was seen by their patients and clients as more socially acceptable than a mental health condition, which could complicate the process of making a differential diagnosis and receiving a stigmatizing label.”

A construção da identidade é algo importantíssimo para nosso reconhecimento junto à sociedade. Entretanto, é perceptível a monetização da identidade, e o autismo não deixa de ser uma das identidades que entram nesse balaio. Quando chegam aos consultórios agarrados à certeza de que “meu cérebro é diferente, não é minha culpa”, ês pacientes reagem (muito) mal à notícia de que não preenchem critérios diagnósticos para autismo. Voltam à estaca de “você pode ter outro transtorno, um que vai ser sua culpa”. O boom da procura por diagnósticos tardios de autismo também está relacionado, portanto, ao estigma de diagnósticos correlacionados que são duramente estigmatizados e individualizados (as próprias categorias diagnósticas de que fazem parte segundo o DSM-V são o estigma da loucura, levando as pessoas a não verem melhora substancial nos seus quadros, claro!)

Passando ao terceiro tópico, o de sinais típicos de autismo em mulheres adultas. São listados 11 sinais, dos quais destaco: “Autistic women, despite presenting as intelligent, had often failed to achieve expected levels of personal/professional success”, e “In autistic women, gender may be expressed more fluidly, with less attachment to the gender binary, or femininity may appear forced/rehearsed”.

A marca social da diferença está muito relacionada à questão diagnóstica do autismo e esses dois tópicos são sintomáticos. Primeiramente, o que é “alcançar níveis de sucesso profissional/pessoal” em um contexto em que sofremos brutalmente com o desemprego, o subemprego, a inflação, a substituição por tecnologias, entre outros? Algum des tides “neurotípiques”, por mais inteligentes que sejam, conseguem alcançar esses níveis de sucesso profissional/pessoal? O que é essa métrica do “sucesso”? Utilizar um critério associado ao sucesso de uma pessoa, atrelando-o ainda à noção de inteligência, é também um sintoma neoliberal por trás das avaliações neuropsicológicas e psiquiátricas. Parece, então, que ao observar ume indivídue que não responde adequadamente à pressão neoliberal, e juntarmos a um conjunto de características que se destacam em meio a uma pretensa normalidade, precisamos patologizá-le.

Ainda dentro da diferença, a aparição do critério de expressão de gênero fluida como atrelado ao autismo também é preocupante. Quantas mulheres e outras pessoas que desviam da norma de gênero foram internadas em sanatórios ao longo da história? Desvincular gênero e sexualidade de critérios patológicos é mandatório em um cenário antimanicomial. É verdade que nós autistas por sermos menos ligades a normas e convenções sociais, estamos mais propenses a nos expressarmos mais livremente. Entretanto, o desconforto e o rechaço a normas sociais de gênero e sexualidade é uma coisa perfeitamente normal em uma sociedade repressiva de desviantes. No grupo des autistas da Unicamp, mais de uma vez pessoas relatam seu desconforto com normas de gênero como se fosse um trejeito autístico. Na verdade, esse é um desconforto... humano. Tentar vincular as duas coisas como intrínsecas, além de problemático, volta ao assunto de buscar formas de nos colocarmos como especiais perante o resto da sociedade, uma conduta individualizante que nos isola e não nos une em torno da luta por uma sociedade melhor.

Por fim, ainda no tópico de internação manicomial de mulheres e pessoas desviantes de normas de gênero em geral, o próprio estudo apresenta a histórica vinculação entre transtornos psiquiátricos e autismo, como diagnósticos facilmente trocados erroneamente. “Borderline Personality Disorder is highly present in autism assessment clinics as a past diagnosis and/or a potential differential diagnosis” e “Autistic women can superficially present with signs resembling Borderline Personality Disorder”. Isso porque, além de toda a problemática neoliberal apresentada, o gênero é uma camada de interpretação importante. Mulheres desviantes só podem ser loucas, atípicas, “com cérebro diferente”. O que está em jogo aqui é, de fato, a mudança de uma linguagem patologizante para outra que, apesar de parecer menos patologizante, ainda ressoa nas entrelinhas dentro da lógica capitalista.

“Ah, mas Ana, tudo para você é capitalismo? O autismo não ia existir no comunismo?” Isso (as condições de uma sociedade comunista existente) eu já não sei informar, mas a percepção de diagnósticos psiquiátricos e adjacentes está intimamente ligada com o desenvolvimento da medicina, que, oras, anda de mãos dadas com o capitalismo, o racismo e a misoginia, entre outros. Ao abraçar acriticamente identidades provenientes da lógica médica presente no DSM-V, de forma até mesmo agressiva, estamos nos deixando engolir.

Atenciosamente,

Uma autista possivelmente borderline possivelmente louca possivelmente... só humana.

Referências na ordem em que aparecem:

[1] Cumin, J., Pelaez, S., & Mottron, L. (2022). Positive and differential diagnosis of autism in verbal women of typical intelligence: A Delphi study. Autism, 26(5), 1153–1164. https://doi.org/10.1177/13623613211042719 [2] Data & Statistics on Autism Spectrum Disorder, por Centers for Disease Control and Prevention (2022): https://www.cdc.gov/ncbddd/autism/data.html

 
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from blog do pedro

olá usuários deste sítio cibernético.

gostaria de partilhar com vocês uma ideia que me ocorreu.

é que fui numa farmácia comprar desodorantes e enquanto olhava as gondolas fui abordado por uma atendente: “Com licença, o senhor gostaria de ajuda”. Disse-a que não, que estava apenas olhando, e então me ocorreu que a lembrança de que eu, negro, 1,83m, dreads, moletom, sou assustador.

ao realizer tal fato, logo pus me a pagar, pois em nada me interessa amedrontar as moçoilas ja que São Paulo é mesmo uma cidade perigosa para uma farmácia as 20h da noite. negar o problema da segurança pública nos afasta das pessoas em geral e em nada ajuda, além de ser desnecessário para afirmar uma luta anti-racista e de esquerda, só demonstra falta de capacidade de lidar com o Real e sua incapacidade de se escrito de maneira confortável em nosso discurso.

além disso perdi o gosto por zanzar pelas gondolas e ter o prazer de consumir como qualquer outra pessoa.

ao efetuar o pagamento no entanto, fiz questão de fazê-lo com meu Apple Watch. não nego o gozo de quebrar com as expectativas de vez em quando. ostentar para nós tem um significado diferente embora eu não me ilude que isto seja algum tipo de vitória coletiva ou até mesmo individual. vendo minha força de trabalho para o sistema (vale do silício) e compro brinquedos caros para me entreter e esquecer de tal fato. nada revolucionário nisso.

mas foi sair da loja que me dei conta que talvez ela pensasse que eu roubara tal relógio. é meio chato porquê meu plano de surpreendê-la sendo um negro com certo poder aquisitivo então provavelmente falhara. que pena.

e então me veio o seguinte insight:

no futuro, eu terei um chip implantado em mim ou haverá um reconhecimento facial, ou algo do gênero, e toda minha ficha será levantada em segundos via internet.

eles vão vender essa realidade aterrorizante como uma solução para o racismo.

hoje a minha ficha é pseudo-levantada a partir do meu rosto, cabelo e roupas. mas com esse upgrade, eles lerão meu rosto ou meu chip ou ainda celular e rapidamente saberão que sou um homem honesto e trabalhador, que jamais foi parar numa delegacia nem por um baseadinho (como muitos de meus conhecidos brancos), nunca roubou nem uma bala (como muitos de meus conhecidos brancos) e que nem sequer pechincha ou parcela o pagamento das coisas. nunca se endividou, exímio pagador, estudado (nível superior), gentil, que até ajudou algumas velhas (brancas) a atravessarem a rua outro dia. que tem empatia até com o pobre trabalhador que me toma por assaltante (coitado, ser assaltado é foda e é um medo real!).

e me veio à cabeça que eu vou me ficar mais tranquilo com essa tecnologia. e o trabalhador também.

é uma merda isso. deve ser uma merda pra você ler isso. tomara que seja, significa que você entende o real impacto desse insight: eles vão vender reconhecimento facial como solução pro racismo. assim como vendem camera na farda do PM como solução pra violência policial.

e talvez estejam certos. afinal de contas a escolha é entre o ruim e o pior.

fique ligado. em breve mais textos irritantes, imorais, alienados, verdadeiros harakiris sociais!

 
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from john

Beleza então, o objetivo agora é reduzir onde for possível minha dependência do ecossistema tecnológico do google.

o primeiro passo foi criar um novo email principal no protonmail. agora pretendo parar de usar o google docs e o calendário da minha conta ggl pessoal. e transferir isso pro nextcloud.

então alguns princípios informando essa migração:

  1. evitar as big techs;
  2. software livre, de preferência;
  3. soberania digital e autonomia tecnológica.

agradeço a inspiração e as dicas do felipe siles!

Seguimos!

#softwareLivre #soberaniaDigital

 
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from blog do pedro

Não façais, vocês, atos performativos em nome de ressentidos, pois estes que aí estão, jamais se alegrarão. Além de que teus recalques em nada servem. Gozai de tua fortuna. É tudo o que tens. Quem sabe assim te livres para algo além de ti mesmo e então podeis ouvir.

 
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from groselhas

Problemáticas e possibilidades dentro do veganismo: o veganismo é cristão?

Começo o texto me apresentando brevemente.

Sou Ana, 24 anos, (ovolacto)vegetariana desde 2018, vegana em alguns períodos dentro desse espaço de tempo (2018-2023). Antes que alguma pessoa vegana torça o nariz e diga que não há “ex-vegane”, apenas aqueles que não entenderam de fato os princípios éticos do veganismo, peço calma. Melhor ler o texto inteiro antes de julgar.

E por que eu dei uma “pausa” no veganismo?

O principal motivo foi a minha incapacidade de me organizar cotidianamente para cozinhar, fruto de uma disfunção executiva associada a um autismo identificado tardiamente, aliado ao desenvolvimento de um incipiente transtorno alimentar. O veganismo propõe a adoção do vegetarianismo estrito*, e dietas restritivas podem levar a episódios de compulsão alimentar. Em resumo, eu não estava comendo, e quando comia, comia alimentos de origem animal escondida em grandes quantidades. Não me orgulho disso; obviamente, minha experiência não deve ser basilar para justificar por que o veganismo não dá certo ou qualquer bobagem do tipo. Apenas relato minha experiência pessoal.

*O vegetarianismo estrito é uma dieta baseada apenas em produtos de origem vegetal. Como o veganismo prevê a não-exploração de animais em todas as esferas da vida humana, por consequência todos os veganos são vegetarianos estritos, mas é possível ser vegetariano estrito e não ser vegano.

Fora os aspectos práticos, posso dizer que durante a pandemia de COVID-19, o veganismo foi meu interesse especial. Dessa forma, eu dormia e acordava pensando em implicações éticas do veganismo; relato essa questão para que compreendam que não sou uma pessoa iniciante no assunto. Militei pela causa, participei de coletivos locais e nacionais, e mesmo assim, achei prudente me afastar. Alguma coisa havia estremecido minha no veganismo.

A essa altura, pessoas veganas que leem o texto já devem ter pensado: como assim você militava comendo coisas de origem animal escondida? A cara não queimava de vergonha? Pois é, queimava. Foi aí que eu comecei a perceber que alguma coisa não estava andando bem.

Por que algo que deveria me enriquecer eticamente, ser um modo de vida saudável e com compaixão, estava me trazendo um nível de stress significante ao ponto de me levar a um transtorno alimentar?

O uso da palavra “fé” alguns parágrafos atrás não foi por coincidência. A relação das pessoas veganas com o veganismo é similar a de uma fé professa, apesar do veganismo não ser uma religião, e os princípios éticos do veganismo esbarram muitas vezes em uma ética cristã.

Elaboro.

A ideia de que o veganismo está intrinsecamente ligado ao cristianismo não é minha, na verdade, ela foi cantada por indígenas (em retomada ou não) no Twitter alguns anos atrás. Gostaria de lembrar a pessoa que tocou nesse assunto para dar-lhe os devidos créditos, mas infelizmente já não me lembro exatamente quem foi.

Enfim, não é novidade que o veganismo, especialmente o veganismo praticado por pessoas brancas, está frequentemente em embates com culturas indígenas. Afinal de contas, se o veganismo é atravessado por uma ética animal que busca abolir a exploração animal, o vegano não pode relativizar o que julga ser exploração animal. Diversas culturas, indígenas ou não, utilizam de produtos animais e animais em si. Portanto, a interface entre veganos (especialmente brancos) e indígenas é permeada por racismo.

Aqui eu de forma alguma afirmo que o veganismo é necessariamente branco ou que indígenas não podem ser veganos. Qualquer pessoa pode ser vegana, e o veganismo conta com expoentes em diversas etnias. Entretanto, é importante reforçar os embates entre a ética vegana e os paradigmas culturais vigentes em sociedades.

A pessoa indígena em questão delimitou as aproximações entre veganismo e cristianismo enquanto uma parte cultural importante da sociedade em que vivemos, especialmente quando analisamos as origens do veganismo no Ocidente. É verdade que hoje em dia o veganismo praticado no sul global tem atravessamentos anti-capitalistas fortes, muito mais do que no norte global. Entretanto, as raízes epistemológicas do veganismo seguem com forte influência europeia, e cristã.

Venho repetindo a influência cristã no veganismo, mas por que afirmo isso?

O vegano não pode utilizar de animais, ou de seus derivados, porque, devido à senciência (capacidade de animais humanos ou não de sentirem sensações de forma consciente), seria imoral ser dono, explorar, utilizar, aproveitar-se, machucar, matar, qualquer outro ser senciente. O ponto de discordância mais crucial ocorre entre veganos e outras culturas que têm relações diversas com animais. Aqui, não me refiro à cultura pecuarista de dominação animal. Definitivamente, essa cultura é destrutiva, machista e cruel (para descrever isso, o livro A Política Sexual da Carne, de Carol J. Adams, é exemplar). Refiro-me, entretanto, a cosmovisões de pessoas que enxergam os animais como seus iguais, mas não têm essa premissa de que matar ou utilizar-se de produtos animais seja algo eticamente repreensível.

Lógico que não defendo que matar seja acriticamente correto. Aqui, o que está em jogo é o papel da morte em cada sociedade. A visão da morte enquanto algo carregado negativamente não é unanimidade em todas as culturas, nem todas as mortes são processos violentos. É nesse aspecto que o veganismo se aproxima do cristianismo: a máxima “não matarás” é o ponto principal do veganismo.

A esse ponto do texto, você talvez esteja se dizendo: “mas a relação de povos originários com animais não é a mesma que nós na sociedade ocidental temos”. E concordo com seu pensamento. A crueldade com que animais humanos e não-humanos são tratados em meio ao capitalismo tardio não tem precedentes, e deve ser combatida. Talvez nesse aspecto o termo “especismo*” seja importante para descrever a relação de superioridade, reafirmada na Bíblia cristã, entre humanos e animais não-humanos.

*O especismo é a noção de que humanos são superiores a outros animais não-humanos. Entretanto, esse conceito é atravessado por diversas questões: TODOS os humanos são vistos como superiores a outros animais, ou essa noção vale apenas para os brancos? E quais são as manifestações do especismo nas relações humanos-animais não-humanos?

Outro aspecto tipicamente cristão do veganismo é a relação de abstinência e culpabilização individual. Os veganos são esperados de se absterem de todos os produtos possíveis de origem animal, gerando um sentimento de culpa gigantesco naqueles que não o conseguem por razões múltiplas. Como eu ilustrei nos primeiros parágrafos do texto, a abstinência é um fardo pesado e pouco eficaz para a transformação de visão de mundo de uma pessoa. No veganismo, o adepto é tratado como um ex-dependente químico é tratado na igreja, falando muitas vezes da vida pecaminosa que levava antes de ser eticamente correto.

Como sou uma pessoa que se identifica como ateísta e que fugiu da(s) igreja(s) cristã(s) desde os 9 anos, todos esses aspectos foram muito pesados para mim, e o são para outras pessoas.

Obviamente, nada se compara ao sofrimento animal em tempos de capitalismo tardio, e eu concordo com isso. O que está em disputa aqui é: a existência de visões de mundo que permitem imaginar novas relações com animais indicam que não necessariamente precisamos passar pelo veganismo. Há outras possibilidades.

Não escrevo essas palavras para incentivar o consumo de produtos de origem animal ou o tratamento degradante de animais, na verdade, penso que o primeiro precisa ser reavaliado e o segundo, abolido. Escrevo para afirmar que o veganismo é um caminho muito cristão de resolver o problema que o próprio cristianismo ajudou a impor: a superioridade de humanos em relação a animais. Talvez outras formas de enxergar o mundo e de tratar respeitosamente os animais sejam possíveis.

Esse texto nem de longe esgota as problemáticas e possibilidades do veganismo, não cheguei nem a abordar a polêmica das questões climáticas e ambientais. Entretanto, espero ter contribuído para o debate dentro da comunidade vegana.

P.S.: estou aberta a críticas e sugestões e admito que meu conhecimento do cristianismo não é tão forte quanto poderia ser, então posso ter me equivocado em algum ponto. Fiquem à vontade para contribuir.

 
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from groselhas

Melodrama

Quem é essa pessoa dirigindo o carro? Quem é essa pessoa olhando o motorista? Você manteve os olhos fixos no semáforo, mas o semáforo já estava amarelo. Os tendões brancos em torno do volante, o pé semicontrolado no acelerador. Entra, a casa é sua; Da janela, a vista era cor de rubi. Meus lábios, já secos, procuraram os seus, mas um beijo não é um beijo se de volta os outros lábios não te beijam. Difícil saber o que fiz de errado, mais difícil ainda o que fiz de certo. Você não se dá bem com minha família, disse-me; Nem minhas crias sua barriga quer carregar. O que temos em comum, então? Nada além de um grande fio verde, mas a tesoura estava em tuas mãos. Essa é a fita mais dolorida, saiu pela porta mais escura, não sem antes um afago, mas o gato já não estava lá para observar. Gosto de me abraçar em noites assim, seus braços não estão aqui para sentir as lágrimas grossas, escarlates, a cair. Seria eu digna de ser amada ou apenas um lampejo de ser humano escrevendo suas querelas tristes no meio da madrugada?

 
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