Paz entre nós
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Tags: #Militância #Pessoal #Neurodivergência
Introdução
Faz 4 meses que abandonei a Força Esperança. Nesse período passei por um mergulho em profunda depressão, mas hoje, estando em clara tendência de deixar os dias assustadores para trás, posso reavaliar a minha relação com a FE.
Não sabe o que é a Força Esperança? Leia meu texto Desfiliação.
Esse texto é um resgate de coisas que já falei antes, mas com um olhar mais analítico permitido pela maior tranquilidade emocional, afim de processar o que ocorreu comigo. Na última seção vou além do retorno ao passado e traço caminhos para o futuro. Tenha em mente que esse ainda assim é um relato subjetivo, que não leva em consideração as versões das diferentes pessoas envolvidas.
Começo
Começando do começo, eu vinha tratando um quadro depressivo-ansioso desde o começo de 2021, fruto da pressão no trabalho, mas com remédio e terapia estava estável. Mesmo com esse suporte, eu adoeci pra valer em 2023. O diagnóstico oficial foi de transtorno misto ansioso e depressivo (F41.2) combinado com esgotamento (Z73.0). Na época, o esgotamento parecia se sobressair. Eu estava exausta para tudo. Pensei que nunca mais fosse conseguir voltar a trabalhar com o rendimento que eu antes tinha. E, passado mais de 1 ano deste colapso, apesar de grande melhora, posso dizer que ainda não recuperei a energia e estabilidade que eu tinha antes.
Necessário pontuar que a piora do meu quadro coincidiu com o momento em que passei a ser contabilizada para a cota PcD no trabalho, e discriminada como tal, porém sem obter adaptações razoáveis nos termos da lei. Esse tratamento diferenciado, combinado com o pessimismo sobre a estagnação de carreira de uma PcD, minou a minha autoestima.
Foi também por volta desse momento que conhecidos me falaram de um tal de comunismo na Internet. Achei que seria algo tosco, mas fui aos poucos sendo convencida pela dialética materialista e a revolta foi me radicalizando. Me convenci que eu não teria chance de lutar sozinha e que precisaria me organizar. Me aproximei da FE, comecei a estudar e a participar das atividades.
Desde o começo esclareci a minha situação: eu estava adoecida pelo esgotamento e em recuperação. Minha coordenação compreendia que por causa disso eu não poderia participar de todas as atividades, mas isso não impediu que eu fosse estimulada a me envolver cada vez mais: mais participação em brigadas de venda de jornal, mais cotas individuais de jornal para vender, mais participação em atos e atividades de finanças, mais estudo e apresentação. Minha coordenação me disse que era o papel dela me estimular a fazer cada vez mais. Afinal, os comunistas praticam a profissionalização do trabalho de militância e nisso a FE era exemplar, mas havia um óbvio problema: Eu não estava em plenas condições de trabalhar.
Eu errei em ceder a esse estimulo. É parte do quadro clínico de esgotamento o histórico de alto envolvimento com o trabalho. E eu estava novamente cometendo o mesmo erro que me fez adoecer por causa de meu ofício. E minha coordenação não me ajudou a encontrar formas de aliviar o autojulgamento de “estar fazendo menos do que eu deveria”, muito pelo contrário, já que nos fazia ler materiais que explicitavam a importância moral do comprometimento e da disciplina. Ao invés de me parabenizar pelo que eu havia conseguido, eu recebia o estímulo a fazer ainda mais. Isto era contraprodutivo para meu momento de recuperação.
Afastamento
Em determinado momento eu desenvolvi hiperfoco em certa pauta compatível com o programa da FE. Observei que haviam organizações brigando por mudanças políticas com relação ao uso de dados e da tecnologia da informação. Como boa militante, passei a tentar convencer os companheiros de que precisaríamos debater essa pauta como organização também, assim como já era feito com a questão sindical, estudantil e feminina. Era, e ainda é, minha crença que a questão da tecnologia da informação necessita ser trabalhada de maneira organizada, sem aventureirismos.
Claramente eu estava propondo uma pauta que era maior do que a FE. As tentativas de trabalhar esse tema eram negligenciadas com argumentos fracos como “A FE é uma organização dentro da lei e não há motivos de tratar esse tema”. E por não verem o tema como relevante, o assunto foi silenciado: Comportamento típico de quadros antigos que insistem em interpretar novos fenômenos da forma que lhes é familiar. A pauta que estava em pleno debate público internacional foi menosprezada internamente. Não tive o espaço para desenvolvê-la e apresentá-la a mais pessoas além do meu núcleo imediato.
Aqui entra em ação a obstinação natural de uma pessoa autista. Quanto mais me ignoravam e me davam justificativas fracas, mais forte ficava meu interesse, mais eu me aprofundava no assunto, mais eu pesquisava, para poder convencer as pessoas de que esse assunto era (é!) importante. Eu fui fisgada pelo hiperfoco, e isso tem seu lado bom e seu lado ruim.
Eu pedi ajuda de minha coordenação para me ajudar a manter a calma, mas a ajuda que ela podia oferecer era insuficiente. Acabei agindo desesperadamente e quebrando a disciplina numa tentativa de chamar a atenção. A autocrítica é óbvia, pois eu já sabia que estava agindo de forma incorreta mesmo antes de me advertirem.
Contudo, continuo sem saber como poderia ter agido melhor. Sendo a pauta suprimida silenciosamente e estando desconfiada de omissão da minha coordenação, o que eu poderia fazer? A hierarquia não permitia que eu levasse a pauta para amplo debate, sob argumentos que não convenciam logicamente e sequer indicavam ter havido decisão coletiva anterior. Sem democracia não se pode exigir disciplina. Eu rejeito a acusação de individualismo e de desvio pequeno-burguês de minha parte. Se eu agi da forma como o fiz, foi por não ser capaz de tratar o assunto de outra forma. Há uma grave incoerência entre o que é dito (operamos na legalidade) e o que é praticado (decisões tomadas por organismos ocultos, sem envolvimento das bases). Que queriam que eu fizesse? Que me resignasse com o silêncio e aceitasse a minha insignificância em propor reivindicações?
Na ocasião da crítica realizada sobre minha conduta houve ainda um erro de agregar na mesma oportunidade a devolutiva sobre o teor da matéria que eu havia escrito. Julgaram meu texto idealista e anticientífico. Quem julgou, isso eu não tive o direito de saber. A devolutiva me foi passada anonimamente por minha coordenação. Seria eu idealista ou seria o avaliador secreto um passivo oportunista?
Me permitam demonstrar fraqueza por um instante. Essa devolutiva me destruiu um pouco mais. Eu estava há meses trabalhando nesse tema, de modo que ele tomou a importância de missão para mim, incentivada por minha coordenação que me exigia uma proposta mais estruturada para levar o tema para a apreciação do organismo superior. E depois de todo o tempo de pesquisa e estudo tudo que eu tive o direito de receber foram 2 rótulos negativos provindos de um avaliador anônimo. Isso me fez ter, em 2024, meu segundo colapso, sem haver ainda me recuperado do primeiro.
Os sentimentos de inutilidade e incapacidade retornaram, e eu chorei a maior parte dos dias naquela semana. Permito-lhes que me chamem de fraca ou de doente, ou até mesmo de imatura. O que rejeito, porém, é que me digam que eu estava errada. A mágoa era o sentimento possível naquele momento adoecido, mas hoje, entendendo que eu tinha a razão, posso transformar esse sentimento em raiva útil.
A conduta autodestrutiva que eu desenvolvi nesses 4 meses de depressão profunda, felizmente está ficando para trás.
Reorganize-se da forma que der
Mesmo acreditando que eu estava correta eu não tenho força ainda para voltar naquele ambiente e lutar para que o certo seja aplicado. Por meu movimento de autopreservação fui chamada de sectarista. Isso consolida a crença de que eu não sou bem-vinda naquele espaço. Não há acolhimento de minha condição de saúde, nem tampouco de minha neurodivergência. Podem me chamar de idealista, mas eu continuarei defendendo que ninguém é obrigado a estar em um espaço em que se é excluído. Se o preço para isso é não poder atuar na construção da revolução brasileira, então esse é um custo que eu terei que arcar. A gente faz o que dá, e pra mim não dá pra seguir recuperando minha saúde e minha capacidade de trabalhar naquele coletivo.
Acredito hoje no que disseram algumes amigues: que a organização necessita merecer a nossa participação tanto quanto nós necessitamos merecer estar na organização. Eu sou uma pessoa neurodivergente, com necessidade de suporte aumentada por conta do adoecimento que o trabalho me proporcionou e do qual tenho ainda sequelas. Se uma organização de massas tal qual a FE não é capaz de me acolher, ela então não me representa. Arrisco que não representa nenhuma pessoa com deficiência ou que se encontre incapacitada para o trabalho de forma temporária ou definitiva.
Felizmente eu fui acolhida em outra organização, de ideologia anarquista. Não que eu tenha passado a rejeitar o marxismo e os aportes de validez universal de Lênin sobre como realizar a revolução. Acontece que neste momento eu necessito mais do que contribuir para a construção do socialismo científico. Preciso voltar a me julgar útil e competente. O coletivo anarquista me oferece uma forma de me integrar no trabalho coletivo dentro das minhas possibilidades, e isso favorece a minha cura.
O anarquismo é o meio-termo que permite que eu siga trabalhando coletivamente, de forma não alienada, no presente. E vendo a enorme quantidade de pessoas neurodivergentes que estão em coletivos anarquistas, vejo que não sou só eu que, apesar de rejeitar a ideologia individualista, não se adequa para estar em um coletivo marxista-leninista. Os comunistas estão falhando conosco, e não poderemos trabalhar juntos enquanto o capacitismo não for adequadamente tratado.
Lembro que autistas verbais (comumente chamado de nível “leve”) tem 9 vezes mais chance de cometer suicídio do que pessoas neurotípicas. Prosseguir moralizando inadequações de neurodivergentes é fazer pouco caso dos problemas comportamentais e de convivência que caracterizam o quadro de TEA, bem como outras condições. Demandar a inclusão hoje é garantir que o movimento trabalhador cresça com o apoio das potencialidades de neurodivergentes, para que não tenha que, vitoriosa a revolução, condenar-nos dissidentes que devem ser exterminados.