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from Resenha Cibernética

Relacionalidade

Quando se adota a perspectiva da relacionalidade abandona-se a ideia de coisas que existem independentemente. Em outros termos, mais filosóficos: a ideia de essência intrínseca. Toda essência é extrínseca.

Ou seja, não há uma relação que se estabelece entre duas coisas (objetos) que existissem previamente à relação. O que existe é uma relação que se desdobra em (pelo menos) dois polos (se há mais de dois polos, trata-se de uma hiperrelação). Se esses dois polos se diferenciam, a relação é uma diferença (relação diferencial).

Por isso, deve-se também abandonar a ideia de materialidade. Na Teoria da Relatividade, por exemplo, energia e matéria são intercambiáveis.

Uma relação, assim, não é exatamente uma “coisa”. Uma relação é algo que se diferencia de uma ausência de relação. Ou seja, que se diferencia do vazio. Uma relação é assim uma diferença entre ela mesma e o vazio. Toda relação tem essa “mesmidade”, o que quer dizer que ela se autorreferencia.

Portanto, uma mudança de paradigma da relacionalidade é a questão do vazio. O vazio significa basicamente que não há essência intrínseca. O primeiro a conceituá-lo desta forma, foi o indiano budista Nagarjuna, com o termo sunyata. Sunyata é o vazio, mas o ocidente conceitua este conceito como “nada”. Porém, o vazio budista não é nada, mas simplesmente indica que tudo que é, cria-se em termos de dependência, ou interdependência. O conceito de relação indica essa interdependência. Por exemplo, a terra e a lua não existem por si só, mas numa relação de interdependência. Uma sociedade não é um agregado de “egos”, mas um conjunto de relações entre “ego” e “alter”. Uma sociedade é um conjunto de relações sociais, ou de alteridade, não um conjunto de egos. Ego e alter são os polos de uma relação social.

Se uma relação se diferencia em polos, isso quer dizer que cada um deles é uma “porta de entrada” à relação, isto é, uma abordagem. Uma relação pode ser abordada através de seus polos. É como se a relação tivesse que ser entendida com duas perspectivas diferentes. Se uma relação tem os polos A e B, AB é diferente de BA. Ou seja, a relação tem orientação.

Chamamos essa diferenciação orientada (ou orientável) de mediação. A relação possui um “meio” que é justamente o que conduz de A a B. Por isso, a escola que o indiano Nagarjuna defendia chamava-se Madhyamaka, ou Escola do Caminho do Meio. No entanto, a diferença de percurso que se fazia de A para B e de volta à A, não encontrava o mesmo A (o mesmo polo) do início. Isso significa que o tempo se infiltrou na relação.

Para o paradigma da relacionalidade, o conceito de meio (medium) substitui o de matéria. Toda relação tem meio. A relacionalidade é uma medialidade

 
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from Lento, pero escrevo

Parentalidades em pedaços, LGBTs e capitalismo

Apesar de ampliar a abrangência da licença maternidade, o STF restirngiu a licença-maternidade a apenas uma das mães em casais lésbicos. Um dos argumentos? Austeridade sobre a previdência.

Colagem de família picotada com partes do corpo de varias fotos diferentes formando o corpo das pessoas em questão. Da esquerda pra direita, há uma filha, uma mãe, um pai e um filho

Colagem feita por Gee v Voucher para a primeira edição da Zine International Anthem (1977) da banda de anarcopunk inglesa, Crass. Uma família feita em pedaços

No dia 13 de Março de 2024, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu que mães não gestantes tem direito à licença maternidade. Uma vitória grande para todas as LGBTs vivendo suas parentalidades em pedaços, que pode ter repercussão mesmo para casais de dois homens, garantindo alguma licença para famílias que não tem nenhuma.

Mas as LGBTs mais velhas tem razão quando não reivindicavam o reconhecimento como uma família nuclear monogâmica. Isso põe tetos reais nas nossas vidas: na mesma decisão, restringiram a licença maternidade a só uma das mães. A outra tem direito à licença paternidade, míseros 5 dias.

As duas consequências disso: de um lado, o Estado tratará uma das mães como um homem e a forçará a se distanciar de sua cria. De outro, lauda novamente que homens não devem cuidar de suas crias.

É a versão institucional de “quem é o homem ou a mulher da relação” em LGBTs.

A resposta deveria ser simples. É quem se identifica. E independente do gênero e do arranjo familiar, cuidar de uma criança recém nascida exige MUITO trabalho. Nada mais justo que quem cuide, seja em duas pessoas, três ou uma família inteira tenha licença remunerada digna pra isso.

Mas qual foi um dos argumentos para impedir que duas mulheres em união homoafetiva tivessem direito à licença maternidade? A austeridade: segundo argumento da Procuradoria Geral da República, acatado por boa parte dos Ministros, isso sobrecarregaria a previdência social. Mais especificamente “Não criar despesas de previdência social sem previsão de receitas”. O que é engraçado quando consideramos que o mesmo tribunal não considera que referendar e endurecer a criminalização da maconha, debatida também nas últimas semanas, aumenta gastos do Estado – afinal, vigiar e punir custa muito caro.

Isso nos dá pista dos termos da disputa pela legislação de licença paternidade que precisará ocorrer até agosto de 2025, prazo limite estabelecido pelo STF para que o Congresso decida sobre essa omissão. O que nos faz considerar a hipótese de que mesmo entre conservadores, no mímimo não há disposição para se opor a ela, pois sinaliza para o apoio a algum modelo de família tradicional e, em uma esfera pública cada vez mais atenta aos direitos e vozes das mulheres, dificilmente se oporão a ela de forma aberta. Será sempre uma morosidade e oposição de forma envergonhada ou entre iguais: “quais garantias haverão ao homem provedor?”, “Homem não amamenta, talvez não precise de 180 dias como a mulher” e , por fim, “isso irá sobrecarregar a previdência social”. Essa é a deixa perfeita para a seletividade patriarcal e capitalista funcionarem: o judiciário e o restante do Estado brasileiro pode até garantir o reconhecimento formal de famílias não heterossexuais. Mas garantir condições materiais pra isso?Jamais. O homem (pai) deve dividir igualmente o trabalho do cuidado igualmente de seus filhos. Mas garantir condições materiais pra isso? Talvez não, talvez uma licença mais curra seja melhor gerar superávit primário para o pagamento de juros.

Todavia, os conservadores e capitalistas não são todo poderosos, videntes, bastiões da estratégia. Eles erram e falham, não atoa, mexer com aposentadoria e direitos previdenciários, dos quais as licenças fazem parte, é altamente antipopular. Um sinal disso é que, segundo pesquisa do Data Folha publicada em 02 de Abril de 2024, a ampliação da licença maternidade e paternidade tem, respectivamente, apoio de 83% e 76% dos brasileiros. Até mesmo entre o empresariado entrevistado, onde há o menor apoio, 68% se disseram favoráveis.

E provavelmente manterá intocado o consenso tabu da nossa seguridade social: de que só tem direito quem trabalha no mercado de trabalho formal. No caso julgado pelo STF, a outra mãe, que gestou, é uma trabalhadora informal e que não teve direiro a licença em função disto. A consequência disso também é racial, visto que pais e mães não brancos terão menos acesso ao período essencial de licença, por que estão em maiores taxas de informalidade.

Tabela retirada do Sistema SIDRA do IBGE com dados da PNAD Contínua trimestral em 2023. Nela estão os dados da taxa de informalidade no mercado de trabalho segundo a raça Dados da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD) contínua de 2023 do IBGE

Novamente, a disputa conservadora será acanhada contra a ideia de uma licença paternidade. Provavelmente, tentarão restringir de forma velada ao máximo possível por meio da austeridade – com o menor tempo e restrito aos trabalhadores formais – e de forma aberta a quem não for família, na visão deles – casais LGBTs. Se mesmo Ministros de um tribunal que foi colocado como progressista, em relação ao último governo de extrema-direita, utilizaram esse argumento de equilíbrio fiscal, o que impede dos conservadores o fazerem?

Assim, VALE MUITO a pena brigarmos coletivamente pela aprovação do Estatuto da Parentalidade (PL 1974/2021), projeto de lei dos deputados Sâmia Bonfim (PSOL) e Glauber Braga (PSOL), que defende que duas pessoas responsáveis pelos cuidados tenham direito a 180 dias de licença remunerada.

Ainda que foque em apenas duas pessoas e em trabalhadores formais, mas é uma proposta excelente e a mais radical de Licença Parental igualitária hoje e que bate nessas amarrações entre patriarcado, racismo, sexualidade e capitalismo. Infelizmente, nos falta organização parental para lutar pelo cuidado. Nessa perspectiva de tudo o que foi dito, a decisão judicial em torno dessas duas mães sobre o direito a licença mais longas não diz respeito apenas às LGBTs, mas interessa e impacta todos aqueles(as) que exercem o trabalho do cuidado ou dele dependem.

 
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from Resenha Cibernética

Bits, Dits, Sits

Bits: entropia informacional (incerteza) de Shannon medida quantitativamente por códigos sintáticos.

Dits: informação semântica (distintiva). Medida por signos em grandezas quantitativa e qualitativa. Constituídas por linguagens.

Sits: informação situacional ou referencial. Medida de sentido em grandezas apenas qualitativas (virtuais). Composta por sistemas de sentido (sociais).

 
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from Resenha Cibernética

IA e a explosão de conteúdo

Na era das mídias de difusão, havia poucos produtores de conteúdo e muitos receptores.

Com as redes sociais, todo receptor se tornou também um emissor. Houve então uma explosão na produção de conteúdo. Mas não houve um aumento na recepção. Ela continuou de tamanho comparativamente semelhante.

O resultado foi um aumento na oferta de conteúdo sem o mesmo aumento de demanda (atenção). Isso causou uma redução no valor da produção de conteúdo.

Aí entraram os algoritmos. Estes provocam uma redução na oferta, selecionando o “conteúdo relevante” para a recepção. A razão disso foi para elevar o preço do conteúdo. Usuários passaram a pagar para “turbinar” seu conteúdo.

Ao mesmo tempo, entrou conteúdo “redundante”, isto é, conteúdo de marketing. É esse conteúdo que efetivamente interessava às redes sociais.

Basicamente com as IA generativas aumenta ainda mais a oferta de conteúdo. Mas a demanda de recepção permanece basicamente inalterada.

Isso indica uma tendência à “superprodução” de conteúdo e a redução de seu valor global. Segundo a teoria do valor trabalho, o preço do conteúdo informativo tende a zero.

Veremos então um acirramento do uso de algoritmos para reduzir o alcance do conteúdo. Algoritmos servirão como uma represa para impedir o escoamento do conteúdo.

Veremos até que ponto o “transbordo” da geração de conteúdo irá efetivamente mudar as condições de produção do “intelecto coletivo”.

 
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from Lento, pero escrevo

O DIA QUE A CIDADE PAROU (por causa de uma fila)

Essa crônicazinha foi escrita em 22 de Agosto de 2018 após a fila do busão para a Universidade de Brasília, a linha 0.110, dar a volta na rodoviária todinha por conta de falta veículos e de obras inacabáves na rodoviária do Plano Piloto. Fazia não muito tempo, o passe estudantil de geral tinha sido bloqueado

2030, futuro próximo da distopia estudantil. Um policial observa um grupo de estudantes enfileiradas(os), fecham o Eixo Monumental e o Eixão Sul, avenidas enormes e de alta velocidade. Puto, ele saca o spray de laser, ergue o cassetete que dá choque, aciona seus colegas de motos voadoras pela telepatia e pergunta ao estudante mais perto:

“Ei caralho, vai estudar! Sai dessa rua, muleque. Por que você tá aí?”

“Perdão, senhor. Quero estudar, mas estou apenas esperando a fila do 0.110, como todo mundo aqui no eixo monumental.”

“E por que porra tem um monte de estudante enfileirados fechando Eixão Sul, seu mentiroso?”

“Aquela é a fila do DFTRANS, senhor. As pessoas estão apenas tentando resolver o problema do seu passe estudantil.”

Frustrado e sem poder fazer nada para diminuir as filas, o policial desistiu da sua lombra institucional. O DFTRANS continuou paranoico atrás de “fraudes no passe livre”. A quantidade de ônibus do 0.110 continuava a mesma, independente da UnB ter se tornado uma cidade a parte com 200.000 estudantes, que flutuava no céu com a força da pedância e o sonho de alguns acadêmicos em viverem mais perto do mundo da lua empresarial.

As filas cresceram e já podiam ser vistas pelo satélite lançado diretamente da base de lançamento aeroespacial Alcântara Business, vendida para uma multinacional dos Estados Unidos. A fila já fazia os contornos do DF, chegando perto do entorno. “O quadradinho do lobby” se transformou no quadradinho da fila estudantil.

Assim, finalmente, o DF parou. “O poder se sabotou”, gritou a fila com alívio, alegria e cansaço.

O futuro da fila está próximo.

Arte feita sobre o Mapa do DF, em tons roxeados, chapiscados como ruído de televisão

 
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from john

é daqueles filmes que tem cara de filme indie. aquela carinha de festival sundance, sabe? ele tem uma trilha sonora bem gostosa de ouvir e tem aquela moça com jeito de gente normal (Melanie Lynskey). recentemente ela aparece como uma antagonista em The Last of Us e só funciona pq ela tem essa cara de gente normal. aqui é a mesma coisa, a história doida tem mais impacto pq a protagonista parece tanto uma pessoa comum. o filme conta a história de uma moça chamada Ruth, que trabalha em uma clínica de tratamentos paliativos e que fica cada vez mais cansada da falta de consideração e gentileza do mundo. é uma motivação meio piegas, mas a revolta de Ruth com a insensibilidade e falta de empatia dos outros acaba colocando ela em situações bizarras que vão escalando cada vez mais. a participação do elijah wood como o vizinho muito doido que acompanha Ruth em suas confusões também ajuda a comédia a acertar bem no tom. no geral, achei que o conceito do filme ficou meio qualquer coisa, mas em um nível mais superficial de história é uma narrativa bem divertida e que entretém. excelente pra um sábado a tarde despretensioso.

#filmes

 
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from john

animaçãozinha que eu vi na netflix. ao contrário de outras obras para adultos, que apelam ao público alvo pela explicitude da violência ou das cenas sexuais, em Carol e o fim do mundo o apelo está na profunda melancolia de um cotidiano marcado pela certeza do fim. no desenho, o mundo vai acabar, todos vão morrer e as pessoas, tanto individualmente quanto em sociedade, precisam inventar formas de lidar com a iminência do fim.

é uma história muito bonita, que lida com temas pesados de uma forma bem delicada. as questões profundas que são levantas sobre vida, morte e realização pessoal são tratadas de forma cuidadosa, mas leve. É o tipo de série que você vê melancólico, mas sorrindo.

#animação #netflix

 
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from Lento, pero escrevo

6 meses de vida e a urgência da Licença Parental

Você sabe quantas horas por dia se gasta para amamentar um bebê? E arrotar, cochilar, dormir? Um pouco das razões de ser absurdo uma licença paternidade de 5 dias

Coruja buraqueira em seu ninho feito por genteCoruja buraqueira na pracinha. Na época da foto, brava e gritando com as pessoas por que tinha dado cria recentemente

Semana passada nossa filha fez 6 meses de vida. E sem a licença parentalidade de 6 meses que conquistamos no Programa de Pós-Graduação de Ciência Política da UnB, teria sido absurdamente mais exaustivo para nós, para minha companheira, para nossa família e para nossa filha. Esse é o período recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para que a alimentação do bebê seja exclusivamente de leite materno. Além do contato pele a pele, que estimula e acalma a criança, o aleitamento garante mais saúde pois passa os anticorpos – até mesmo de vacinas – e é um alimento supernutritivo para a criança.

Mas sabe quantas horas por dia se gasta com um bebê para que isso seja possível? E todas as outras necessidades, quanto tempo duram? Odeio essa exposição, mas vou contar um relato pessoal por que muitas pessoas que não convivem ou conviveram com bebês e crianças, em especial homens como eu, não tem a mínima ideia do quão trabalhoso é manter um recém nascido vivo.

NAS PRIMEIRAS SEMANAS DE VIDA:

O bebê ainda está aprendendo a mamar, por isso passa muito tempo mamando. Várias vezes, foram 40 minutos para nossa filha estar satisfeita. Depois disso, ela ainda não sabe arrotar ou mesmo tossir para se desengasgar. Então são mais 20 minutos para que a criança arrote, no ombro ou na vertical com nosso apoio. Por dia são, em média 10 a 12 mamadas. Se apenas a mulher ou a pessoa que amamenta também for a responsável por colocar a criança para arrotar, são 12 horas por dia apenas mamando.

NOS PRIMEIROS TRÊS MESES:

Depois melhora um pouco, piora um pouco. Sendo otimista, são em torno de 7 a 10 mamadas por dia e elas duram 20 minutos, mais os 20 minutos arrotando. Só aqui, quando tudo vai bem são mais 4 horas e meia do seu dia . Mas além disso, a criança precisa cochilar durante o dia para dormir bem a noite, evitando uma noite estressante em que precisemos acordar de uma em uma hora e em que tranquilize apenas mamando. E descansar é essencial para a pessoa que amamenta conseguir produzir leite. A criança precisa cochilar em torno de 3 a 5 horas POR DIA e algumas só cochilam mamando ou no colo depois de balançar por em média 20 minutos. São pelo menos mais 3 horas. São quase sete horas ao todo que o bebê pode acabar passando só no braço.

ENTRE OS 3 E 6 MESES

As mamadas melhoram, são mais rápidas. Mas a partir dos três meses a criança passa a perceber tudo ao seu redor. Então os cochilos dela são mais difíceis, por que ela distrai com tudo. E novamente, para produzir leite a pessoa que amamenta precisa também conseguir descansar. Se o bebê não cochila? Bom, a noite ele provavelmente não dorme direito, logo quem amamenta também não dorme e pode ter mais dificuldade ainda para amamentar. O bebê passa intervalos de tempo maiores sem mamar. A cada duas ou três horas durante 10 a 20 minutos. Só isso, já dá em torno de 2h30min por dia apenas no peito. E, como dito, cochilar também é essencial: nessa idade precisam de 3 a 5 horas de cochilos diurnos. São pelo menos cinco horas por dia com a criança no colo. Casa de João de Barro em um poste. Um ninho de um pássaro mais tranquilo, mas que perdeu a tranquilidade no diabo do poste

O dia tem 24 horas?

Narro tudo isso a partir de uma dedicação bem objetiva, que é a quantidade de horas. Foram 180 dias em que a nossa filha precisava entre 5 horas de colo por dia, nos melhores momentos, a 12 horas por dia, nos momentos mais difíceis .

Nessa conta não considerei outras tantas horas que a mãe ou pessoa que amamenta pode precisar passar ordenhando leite para ter um estoque de leite, caso precise ter qualquer outra obrigação normal de uma pessoa adulta que lhe impeça de estar longe da filha por algumas poucas horas. Não considerei que a mãe ou pessoa que amamenta precisa se alimentar bem, beber uma quantidade enorme de água, urinar, defecar, tomar banho e viver em um lugar minimamente organizado e limpo para passar por esse momento caótico que é o puerpério.

Aliás, não considerei uma coisa básica do trabalho de cuidar de um bebê pequeno: tem toda a parte subjetiva de como está nossa cabeça, o zelo, os medos, o morrer de amores, as oscilações de humor, as pressões e o julgamento constante de tudo ao seu redor. São muitas outras horas do seu dia que você passará tentando entender quem é você no meio de tudo isso – e se você é um pai que cuida igual, também passará por isso.

Aqui em casa somos muito fechados com Silvia Federici. Mas desde que soubemos da gravidez, o tanto que a gente já chorou de exaustão é o mesmo tanto que a gente ama nossa filha. Viver na contradição tem dessas coisas

A licença parental radical ou licença de cuidado

Como o dia tem apenas 24 horas por dia, obviamente é completamente insustentável amamentar e cuidar sozinha. Eu honestamente não sei como trabalhadoras informais sem direito à licença-maternidade, mães solo e sem rede de apoio dão conta. Provavelmente não dão, mas o sofrimento nesse período da vida é tão naturalizado e normalizado que ninguém se importa. Mesmo que se opte por dar fórmula por falta de tempo, exaustão ou isolamento, há todas as outras coisas que precisam ser feitas.

Hoje em dia a licença paternidade não existe, a não ser que você considere que em 5 dias você pode cuidar plenamente do seu bebê que acabou de vir ao mundo, acompanhar seu desenvolvimento, ser pai e aliviar sua companheira que amamenta.

Mesmo algumas instituições do Estado já reconhecem a necessidade de criar um licença real, como sinalizou decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) obrigando que em até 18 meses o congresso estenda e decida sobre a licença paternidade. Até alguns capitalistas e seus gestores progressistas já reconheceram essa urgência e aderiram à Coalizão Licença Paternidade (COPAI). Nesse sentido também é que vai o Projeto de Lei 1974/2021 das deputadas Sâmia Bonfim e Glauber Braga, que criam a licença parentalidade remunerada por 180 dias para duas pessoas responsáveis pela criança.

Mesmo que a Licença seja estendida, devíamos ir até além. Por que é a coisa mais comum do mundo que quando nasce um bebê, as avós e as tias se desdobrem para cuidar também. Ou seja, dois adultos sozinhos não são suficientes para cuidar de um bebê de uma forma digna e não exaustiva. Todas as pessoas que se desdobram pra tocar o trabalho de cuidar de um bebê em suas famílias estendidas, não tradicionais, LGBTs e que fogem à família monogâmica nuclear – papai, mamãe, criança e cachorro – deveriam ter direito a 180 dias de licença remunerada – sejam elas empregadas formalmente ou não.

Esse é um passo essencial para que as mulheres não precisem se sobrecarregar com 12 horas ou mais do seu dia para o trabalho de cuidar. E nós, homens, temos feito muito pouco nessa briga coletiva para cuidar que deveria nos mobilizar tanto quanto todas as outras lutas coletivas. Que a briga por uma licença parentalidade digna seja um primeiro passo para isso.

Vários cavalos-marinho, grávidos próximo a um coralAo contrário do que dizem os capitalistas e os conservadores, que “macho” já é biologicamente predisposto a não cuidar, na natureza o cavalo-marinho “macho” “engravida”. Como será que os conservadores vão reagir quando souberem que homens podem amamentar?

 
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from john

dia desses eu vi um vídeo do canal filmento sobre o filme The Creator (2023). aparentemente, esse filme tem gerado um certo burburinho acerca da suspeita de que seria uma obra feita por IA. Eu nunca vi o filme em si, mas o argumento desse vídeo do filmento me chamou muita atenção: não importa tanto se foi um humano ou uma máquina que escreveu o filme, porque independente disso, é um filme escrito como se fosse por IA. significando que da mesma forma como as IA atuais escrevem copiando e colando sem muita consideração pedaços de outras obras, esse filme é uma grande colcha de retalhos de elementos celebrados em outras obras, mas que foram misturados sem a preocupação de construir um todo que seja coerente e artisticamente significativo. ao passo que o vídeo convence bem que a película é um catadão de elementos cinematográficos sem um roteiro que sustente, não deixo de pensar que os filmes já são feitos por IAs há muito tempo. por isso a gente escuta tanta reclamação de que não temos histórias novas, só roteiros derivados. a IA não eram os escritores, mas o sistema de produtores, bancos, agentes e empresários que regurgitam roteiros medíocres e seguros, colagens de sucessos do passado que não passam de imitações baratas ou sombras do que teriam sido. a decepção é a emoção padrão no cinema comercial hoje. acho que no fundo a reclamação do scorcese não vem tanto do fato de que o filmes comerciais são feitos pra entreter, mas de que as IAs (seja um LLM da vida ou um conglomerado de mídia) são incapazes de criar coisas realmente novas, que nos afetem e sim, talvez incomodem.

#IA #Cinema #Filmes

 
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from groselhas

Considerações sobre o artigo “Positive and differential diagnosis of autism in verbal women of typical intelligence: A Delphi study [1]”

DISCLAIMER IMPORTANTE: o artigo fala principalmente de autismo de nível de suporte 1, apesar de não citar o termo, e eu também falo disso aqui. Mulheres com níveis de suporte mais alto também sofrem com demora em seus diagnósticos, mas as questões identitárias são sensivelmente diferentes às que eu experiencio.


Olá, sou Ana, uma pessoa autista adulta (25 anos), identificada socialmente como mulher e diagnosticada tardiamente (24 anos). Já escrevi anteriormente sobre minha experiência de diagnóstico tardio de autismo.

Recentemente, acabei me desvencilhando de acompanhar conteúdos e discussões acerca de autismo, em uma tentativa de me dar o espaço necessário para processar o diagnóstico sem intervenções de redes sociais. Entretanto, participo do grupo de WhatsApp “Autistas – UNICAMP”, minha alma mater, que reúne pessoas autistas da Unicamp e relacionadas. Algumas vezes, pessoas compartilham materiais acadêmicos sobre autismo por lá, e o artigo aqui citado em especial me chamou atenção.

Em “Positive and differential diagnosis of autism in verbal women of typical intelligence: A Delphi study” (CUMIN, PELAEZ, MOTTRON, 2022) ês autories reconhecem os critérios diagnósticos do espectro autista (de acordo com o DSM-V e o CID-11) vagos. Atualmente, nos EUA, um dos países com a maior documentação estatística acerca do assunto, a prevalência de autismo é de 1 para 36 crianças [2], o que pode estar relacionado a diversos fatores. Entretanto, a proporção entre meninos e meninas é de 4 para 1, o que reacende a discussão sobre o processo diagnóstico de TEA em meninas.

Historicamente, o processo diagnóstico de TEA em meninas vem sido prejudicado por preconceitos de gênero e enviesamento dos próprios critérios e testes diagnósticos. Principalmente no tocante a diagnósticos tardios femininos, há uma dificuldade em diferenciar o autismo, um transtorno biopsicossocial, de condições psiquiátricas, como o transtorno de personalidade limítrofe (borderline). O ponto do estudo, portanto, foi averiguar os critérios específicos de diferenciação diagnóstica para mulheres adultas com inteligência “normal”, por parte de especialistas em autismo envolvidos com esse perfil em sete países.

Foram 37 os critérios citados em comum por 20 profissionais entrevistades, separados nas seguintes categorias: fatores de complexidade no atendimento, como gerir esses fatores, sinais típicos de autismo em mulheres e diagnósticos diferenciais e comorbidades.

Entre os fatores de complexidade no atendimento, três coisas me chamaram a atenção: o auto-diagnóstico, condições de estigma relacionadas a transtornos comórbidos e reações negativas com o (não-)diagnóstico.

O autodiagnóstico de autismo é um tópico extremamente inflamado dentro da comunidade autista e arredores (como pais, profissionais de saúde, etc.). Grande parte des defensories de auto-diagnóstico estão de acordo que o autodiagnóstico é apenas a primeira parte do processo diagnóstico e não o ponto de chegada. Entretanto, principalmente entre adolescentes, cresce a quantidade de pessoas envolvidas em reconhecer transtornos por meio de listas superficiais em redes sociais com conteúdos cada vez mais pulverizados e até falsos. Cada vez mais, quando têm acesso ao processo diagnóstico oficial, adolescentes e adultes chegam cheies de certeza de seus diagnósticos, o que atrapalha substancialmente o próprio processo.

Qualquer pessoa que tenha o mínimo conhecimento acerca do DSM-V, um manual estadunidense e o principal manual utilizado no Brasil para orientação de processos diagnósticos psiquiátricos e afins, sabe o quanto pode ser sutil e política a diferença entre diagnósticos. É difícil de chegar a uma conclusão certeira até mesmo para profissionais, mas de alguma forma criou-se a narrativa de que qualquer um pode se autodiagnosticar autista, porque “ninguém conhece você melhor que você mesmo”. Essa parte é particularmente delicada porque muitas pessoas têm seus acessos a diagnósticos negados sistematicamente por diferenças raciais, econômicas e de gênero. Entretanto, o que deve ser envisionado aqui não é a banalização do diagnóstico e sim o questionamento das condições socioeconômicas degradantes a que nós pessoas marginalizadas somos expostas, e, por que não?, a própria categoria diagnóstica.

O neoliberalismo cria as categorias médicas psiquiátricas e as explora enquanto identidades, em um ciclo retroalimentado. 10 anos atrás, quando eu ainda era adolescente e o autismo não era assunto muito comum em redes sociais brasileiras, já se colocava na biografia de sites como Twitter certos indicadores como “bipolar” ou “borderline”. Em outras palavras, não é exatamente um fenômeno pós-TikTok ou restrito a adolescentes nascides após 2003. Infelizmente, o que se observa é cada vez menos a denúncia das intrínsecas relações entre psiquiatria e neoliberalismo e cada vez mais o abraço em identidades. Eu entendo esse fenômeno como vizinho a outro típico do neoliberalismo: todos nós queremos ser úniques, e cada identidade que colocamos em nossas descrições nos ajuda a nos afirmarmos contra o mundo. Em um mundo adoecido de capitalismo tardio, dominado por relações precárias e expropriação de mais-valor extrema, todos sofremos . Aqui não se trata de dizer que “todo mundo é um pouco autista”, afinal de contas, todes sofremos, mas nossos sofrimentos podem ser distintos e o autismo é uma categoria definida. O que coloco em questionamento é a certeza adolescente e jovem-adulta de que sofremos mais do que ês outres e que somos especiais por isso, como se o ônus de sofrer estivesse vinculado necessariamente a um transtorno psiquiátrico... o que não deixa de ser uma postura individualista!

O gancho aqui exposto me leva ao segundo tópico: condições de estigma relacionadas a transtornos comórbidos. A depressão, o transtorno bipolar, o transtorno de ansiedade, o transtorno de personalidade limítrofe, todos eles carregam um pesado estigma social de serem questões puramente pessoais. Quem carrega esses transtornos o carrega por questões individuais, sendo a cura uma questão individual também. “Tem que ter a terapia em dia”, diz a massa jovem em relação a parceires afetivo-sexuais, como se a terapia fosse a panaceia dos problemas psicossociais. Ao contrário, a delimitação do conceito de neurodiversidade coloca no cérebro biológico a “culpa” de sermos quem somos. Não podemos ter culpa sobre nossos sofrimentos se é algo que nascemos com, ou seja, nos afastamos do estigma de sermos responsáveis por nosso próprio “fracasso”. Já não devemos algo à sociedade, ela quem nos deve algo, porque somos diferentes e a nossa diferença importa.

Note que eu definitivamente não concordo com essa leitura sobre os transtornos mentais, e também não afirmo que a vida de autista/neurodiverse é flores. Nós autistas sofremos sistematicamente com exclusão em vários aspectos sociais, mas aqui meu foco é outro: o uso da linguagem e da identidade para, individualmente, nos resguardarmos do sentimento desgraçado de ser uma falha. Ao abraçar a alcunha de “depressives”, nos indicamos individualmente doentes, e nos colocamos na terapia. Ainda que a depressão tenha também sido cerebralizada (um termo usado por Ortega, em “Somos Nosso Cérebro?”), o autismo é especialmente cerebralizado. No autismo, somos nosso cérebro, ele comanda todas as partes do nosso ser. Essa cerebralização de fenômenos psicossociais como se o cérebro fosse de fato uma CPU natural é uma visão neoliberal e colonizada. Desde quando uma parte do nosso corpo (o cérebro) recebeu uma importância desenfreada em nosso senso comum? A proliferação de abordagens neurocientíficas, que acrescentam o prefixo “neuro” em toda e qualquer coisa, gera a neurodiversidade, mas também a “neuroindividualização” (acabei de inventar esse termo). Nós autistas somos um corpo uno, nosso cérebro é apenas parte de nós. Quando compramos essa lógica cerebralizante, estamos também sumindo perante o capital. Em resumo, é meu cérebro que é assim, eu sou diferente e pronto e acabou.

Mas, afinal de contas, existem cérebros típicos? É a pergunta de milhões. Mesmo assim, diversos membros da comunidade autista parecem se segurar em uma premissa de que são um mundo à parte, com uma diversidade natural não vista em nenhuma outra parte da sociedade, e até mesmo colocam questões morais no meio, taxando ês “neurotípiques” de pessoas intrinsecamente ruins. Criamos uma divisão entre “nós” e “elus” que é completamente cinza, ou seja, não tem um critério claro. E mesmo que esse critério fosse claro, é justificado nos fecharmos em um círculo de pureza? Afinal de contas, como o próprio estudo aponta: “A diagnosis of autism can provide a feeling of belonging to a community, and some clinicians felt that the autism as a social identity resonated particularly with their female patients. Many clinicians indicated that autism was seen by their patients and clients as more socially acceptable than a mental health condition, which could complicate the process of making a differential diagnosis and receiving a stigmatizing label.”

A construção da identidade é algo importantíssimo para nosso reconhecimento junto à sociedade. Entretanto, é perceptível a monetização da identidade, e o autismo não deixa de ser uma das identidades que entram nesse balaio. Quando chegam aos consultórios agarrados à certeza de que “meu cérebro é diferente, não é minha culpa”, ês pacientes reagem (muito) mal à notícia de que não preenchem critérios diagnósticos para autismo. Voltam à estaca de “você pode ter outro transtorno, um que vai ser sua culpa”. O boom da procura por diagnósticos tardios de autismo também está relacionado, portanto, ao estigma de diagnósticos correlacionados que são duramente estigmatizados e individualizados (as próprias categorias diagnósticas de que fazem parte segundo o DSM-V são o estigma da loucura, levando as pessoas a não verem melhora substancial nos seus quadros, claro!)

Passando ao terceiro tópico, o de sinais típicos de autismo em mulheres adultas. São listados 11 sinais, dos quais destaco: “Autistic women, despite presenting as intelligent, had often failed to achieve expected levels of personal/professional success”, e “In autistic women, gender may be expressed more fluidly, with less attachment to the gender binary, or femininity may appear forced/rehearsed”.

A marca social da diferença está muito relacionada à questão diagnóstica do autismo e esses dois tópicos são sintomáticos. Primeiramente, o que é “alcançar níveis de sucesso profissional/pessoal” em um contexto em que sofremos brutalmente com o desemprego, o subemprego, a inflação, a substituição por tecnologias, entre outros? Algum des tides “neurotípiques”, por mais inteligentes que sejam, conseguem alcançar esses níveis de sucesso profissional/pessoal? O que é essa métrica do “sucesso”? Utilizar um critério associado ao sucesso de uma pessoa, atrelando-o ainda à noção de inteligência, é também um sintoma neoliberal por trás das avaliações neuropsicológicas e psiquiátricas. Parece, então, que ao observar ume indivídue que não responde adequadamente à pressão neoliberal, e juntarmos a um conjunto de características que se destacam em meio a uma pretensa normalidade, precisamos patologizá-le.

Ainda dentro da diferença, a aparição do critério de expressão de gênero fluida como atrelado ao autismo também é preocupante. Quantas mulheres e outras pessoas que desviam da norma de gênero foram internadas em sanatórios ao longo da história? Desvincular gênero e sexualidade de critérios patológicos é mandatório em um cenário antimanicomial. É verdade que nós autistas por sermos menos ligades a normas e convenções sociais, estamos mais propenses a nos expressarmos mais livremente. Entretanto, o desconforto e o rechaço a normas sociais de gênero e sexualidade é uma coisa perfeitamente normal em uma sociedade repressiva de desviantes. No grupo des autistas da Unicamp, mais de uma vez pessoas relatam seu desconforto com normas de gênero como se fosse um trejeito autístico. Na verdade, esse é um desconforto... humano. Tentar vincular as duas coisas como intrínsecas, além de problemático, volta ao assunto de buscar formas de nos colocarmos como especiais perante o resto da sociedade, uma conduta individualizante que nos isola e não nos une em torno da luta por uma sociedade melhor.

Por fim, ainda no tópico de internação manicomial de mulheres e pessoas desviantes de normas de gênero em geral, o próprio estudo apresenta a histórica vinculação entre transtornos psiquiátricos e autismo, como diagnósticos facilmente trocados erroneamente. “Borderline Personality Disorder is highly present in autism assessment clinics as a past diagnosis and/or a potential differential diagnosis” e “Autistic women can superficially present with signs resembling Borderline Personality Disorder”. Isso porque, além de toda a problemática neoliberal apresentada, o gênero é uma camada de interpretação importante. Mulheres desviantes só podem ser loucas, atípicas, “com cérebro diferente”. O que está em jogo aqui é, de fato, a mudança de uma linguagem patologizante para outra que, apesar de parecer menos patologizante, ainda ressoa nas entrelinhas dentro da lógica capitalista.

“Ah, mas Ana, tudo para você é capitalismo? O autismo não ia existir no comunismo?” Isso (as condições de uma sociedade comunista existente) eu já não sei informar, mas a percepção de diagnósticos psiquiátricos e adjacentes está intimamente ligada com o desenvolvimento da medicina, que, oras, anda de mãos dadas com o capitalismo, o racismo e a misoginia, entre outros. Ao abraçar acriticamente identidades provenientes da lógica médica presente no DSM-V, de forma até mesmo agressiva, estamos nos deixando engolir.

Atenciosamente,

Uma autista possivelmente borderline possivelmente louca possivelmente... só humana.

Referências na ordem em que aparecem:

[1] Cumin, J., Pelaez, S., & Mottron, L. (2022). Positive and differential diagnosis of autism in verbal women of typical intelligence: A Delphi study. Autism, 26(5), 1153–1164. https://doi.org/10.1177/13623613211042719 [2] Data & Statistics on Autism Spectrum Disorder, por Centers for Disease Control and Prevention (2022): https://www.cdc.gov/ncbddd/autism/data.html

 
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from blog do pedro

olá usuários deste sítio cibernético.

gostaria de partilhar com vocês uma ideia que me ocorreu.

é que fui numa farmácia comprar desodorantes e enquanto olhava as gondolas fui abordado por uma atendente: “Com licença, o senhor gostaria de ajuda”. Disse-a que não, que estava apenas olhando, e então me ocorreu que a lembrança de que eu, negro, 1,83m, dreads, moletom, sou assustador.

ao realizer tal fato, logo pus me a pagar, pois em nada me interessa amedrontar as moçoilas ja que São Paulo é mesmo uma cidade perigosa para uma farmácia as 20h da noite. negar o problema da segurança pública nos afasta das pessoas em geral e em nada ajuda, além de ser desnecessário para afirmar uma luta anti-racista e de esquerda, só demonstra falta de capacidade de lidar com o Real e sua incapacidade de se escrito de maneira confortável em nosso discurso.

além disso perdi o gosto por zanzar pelas gondolas e ter o prazer de consumir como qualquer outra pessoa.

ao efetuar o pagamento no entanto, fiz questão de fazê-lo com meu Apple Watch. não nego o gozo de quebrar com as expectativas de vez em quando. ostentar para nós tem um significado diferente embora eu não me ilude que isto seja algum tipo de vitória coletiva ou até mesmo individual. vendo minha força de trabalho para o sistema (vale do silício) e compro brinquedos caros para me entreter e esquecer de tal fato. nada revolucionário nisso.

mas foi sair da loja que me dei conta que talvez ela pensasse que eu roubara tal relógio. é meio chato porquê meu plano de surpreendê-la sendo um negro com certo poder aquisitivo então provavelmente falhara. que pena.

e então me veio o seguinte insight:

no futuro, eu terei um chip implantado em mim ou haverá um reconhecimento facial, ou algo do gênero, e toda minha ficha será levantada em segundos via internet.

eles vão vender essa realidade aterrorizante como uma solução para o racismo.

hoje a minha ficha é pseudo-levantada a partir do meu rosto, cabelo e roupas. mas com esse upgrade, eles lerão meu rosto ou meu chip ou ainda celular e rapidamente saberão que sou um homem honesto e trabalhador, que jamais foi parar numa delegacia nem por um baseadinho (como muitos de meus conhecidos brancos), nunca roubou nem uma bala (como muitos de meus conhecidos brancos) e que nem sequer pechincha ou parcela o pagamento das coisas. nunca se endividou, exímio pagador, estudado (nível superior), gentil, que até ajudou algumas velhas (brancas) a atravessarem a rua outro dia. que tem empatia até com o pobre trabalhador que me toma por assaltante (coitado, ser assaltado é foda e é um medo real!).

e me veio à cabeça que eu vou me ficar mais tranquilo com essa tecnologia. e o trabalhador também.

é uma merda isso. deve ser uma merda pra você ler isso. tomara que seja, significa que você entende o real impacto desse insight: eles vão vender reconhecimento facial como solução pro racismo. assim como vendem camera na farda do PM como solução pra violência policial.

e talvez estejam certos. afinal de contas a escolha é entre o ruim e o pior.

fique ligado. em breve mais textos irritantes, imorais, alienados, verdadeiros harakiris sociais!

 
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from john

Beleza então, o objetivo agora é reduzir onde for possível minha dependência do ecossistema tecnológico do google.

o primeiro passo foi criar um novo email principal no protonmail. agora pretendo parar de usar o google docs e o calendário da minha conta ggl pessoal. e transferir isso pro nextcloud.

então alguns princípios informando essa migração:

  1. evitar as big techs;
  2. software livre, de preferência;
  3. soberania digital e autonomia tecnológica.

agradeço a inspiração e as dicas do felipe siles!

Seguimos!

#softwareLivre #soberaniaDigital

 
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from blog do pedro

Não façais, vocês, atos performativos em nome de ressentidos, pois estes que aí estão, jamais se alegrarão. Além de que teus recalques em nada servem. Gozai de tua fortuna. É tudo o que tens. Quem sabe assim te livres para algo além de ti mesmo e então podeis ouvir.

 
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from groselhas

Problemáticas e possibilidades dentro do veganismo: o veganismo é cristão?

Começo o texto me apresentando brevemente.

Sou Ana, 24 anos, (ovolacto)vegetariana desde 2018, vegana em alguns períodos dentro desse espaço de tempo (2018-2023). Antes que alguma pessoa vegana torça o nariz e diga que não há “ex-vegane”, apenas aqueles que não entenderam de fato os princípios éticos do veganismo, peço calma. Melhor ler o texto inteiro antes de julgar.

E por que eu dei uma “pausa” no veganismo?

O principal motivo foi a minha incapacidade de me organizar cotidianamente para cozinhar, fruto de uma disfunção executiva associada a um autismo identificado tardiamente, aliado ao desenvolvimento de um incipiente transtorno alimentar. O veganismo propõe a adoção do vegetarianismo estrito*, e dietas restritivas podem levar a episódios de compulsão alimentar. Em resumo, eu não estava comendo, e quando comia, comia alimentos de origem animal escondida em grandes quantidades. Não me orgulho disso; obviamente, minha experiência não deve ser basilar para justificar por que o veganismo não dá certo ou qualquer bobagem do tipo. Apenas relato minha experiência pessoal.

*O vegetarianismo estrito é uma dieta baseada apenas em produtos de origem vegetal. Como o veganismo prevê a não-exploração de animais em todas as esferas da vida humana, por consequência todos os veganos são vegetarianos estritos, mas é possível ser vegetariano estrito e não ser vegano.

Fora os aspectos práticos, posso dizer que durante a pandemia de COVID-19, o veganismo foi meu interesse especial. Dessa forma, eu dormia e acordava pensando em implicações éticas do veganismo; relato essa questão para que compreendam que não sou uma pessoa iniciante no assunto. Militei pela causa, participei de coletivos locais e nacionais, e mesmo assim, achei prudente me afastar. Alguma coisa havia estremecido minha no veganismo.

A essa altura, pessoas veganas que leem o texto já devem ter pensado: como assim você militava comendo coisas de origem animal escondida? A cara não queimava de vergonha? Pois é, queimava. Foi aí que eu comecei a perceber que alguma coisa não estava andando bem.

Por que algo que deveria me enriquecer eticamente, ser um modo de vida saudável e com compaixão, estava me trazendo um nível de stress significante ao ponto de me levar a um transtorno alimentar?

O uso da palavra “fé” alguns parágrafos atrás não foi por coincidência. A relação das pessoas veganas com o veganismo é similar a de uma fé professa, apesar do veganismo não ser uma religião, e os princípios éticos do veganismo esbarram muitas vezes em uma ética cristã.

Elaboro.

A ideia de que o veganismo está intrinsecamente ligado ao cristianismo não é minha, na verdade, ela foi cantada por indígenas (em retomada ou não) no Twitter alguns anos atrás. Gostaria de lembrar a pessoa que tocou nesse assunto para dar-lhe os devidos créditos, mas infelizmente já não me lembro exatamente quem foi.

Enfim, não é novidade que o veganismo, especialmente o veganismo praticado por pessoas brancas, está frequentemente em embates com culturas indígenas. Afinal de contas, se o veganismo é atravessado por uma ética animal que busca abolir a exploração animal, o vegano não pode relativizar o que julga ser exploração animal. Diversas culturas, indígenas ou não, utilizam de produtos animais e animais em si. Portanto, a interface entre veganos (especialmente brancos) e indígenas é permeada por racismo.

Aqui eu de forma alguma afirmo que o veganismo é necessariamente branco ou que indígenas não podem ser veganos. Qualquer pessoa pode ser vegana, e o veganismo conta com expoentes em diversas etnias. Entretanto, é importante reforçar os embates entre a ética vegana e os paradigmas culturais vigentes em sociedades.

A pessoa indígena em questão delimitou as aproximações entre veganismo e cristianismo enquanto uma parte cultural importante da sociedade em que vivemos, especialmente quando analisamos as origens do veganismo no Ocidente. É verdade que hoje em dia o veganismo praticado no sul global tem atravessamentos anti-capitalistas fortes, muito mais do que no norte global. Entretanto, as raízes epistemológicas do veganismo seguem com forte influência europeia, e cristã.

Venho repetindo a influência cristã no veganismo, mas por que afirmo isso?

O vegano não pode utilizar de animais, ou de seus derivados, porque, devido à senciência (capacidade de animais humanos ou não de sentirem sensações de forma consciente), seria imoral ser dono, explorar, utilizar, aproveitar-se, machucar, matar, qualquer outro ser senciente. O ponto de discordância mais crucial ocorre entre veganos e outras culturas que têm relações diversas com animais. Aqui, não me refiro à cultura pecuarista de dominação animal. Definitivamente, essa cultura é destrutiva, machista e cruel (para descrever isso, o livro A Política Sexual da Carne, de Carol J. Adams, é exemplar). Refiro-me, entretanto, a cosmovisões de pessoas que enxergam os animais como seus iguais, mas não têm essa premissa de que matar ou utilizar-se de produtos animais seja algo eticamente repreensível.

Lógico que não defendo que matar seja acriticamente correto. Aqui, o que está em jogo é o papel da morte em cada sociedade. A visão da morte enquanto algo carregado negativamente não é unanimidade em todas as culturas, nem todas as mortes são processos violentos. É nesse aspecto que o veganismo se aproxima do cristianismo: a máxima “não matarás” é o ponto principal do veganismo.

A esse ponto do texto, você talvez esteja se dizendo: “mas a relação de povos originários com animais não é a mesma que nós na sociedade ocidental temos”. E concordo com seu pensamento. A crueldade com que animais humanos e não-humanos são tratados em meio ao capitalismo tardio não tem precedentes, e deve ser combatida. Talvez nesse aspecto o termo “especismo*” seja importante para descrever a relação de superioridade, reafirmada na Bíblia cristã, entre humanos e animais não-humanos.

*O especismo é a noção de que humanos são superiores a outros animais não-humanos. Entretanto, esse conceito é atravessado por diversas questões: TODOS os humanos são vistos como superiores a outros animais, ou essa noção vale apenas para os brancos? E quais são as manifestações do especismo nas relações humanos-animais não-humanos?

Outro aspecto tipicamente cristão do veganismo é a relação de abstinência e culpabilização individual. Os veganos são esperados de se absterem de todos os produtos possíveis de origem animal, gerando um sentimento de culpa gigantesco naqueles que não o conseguem por razões múltiplas. Como eu ilustrei nos primeiros parágrafos do texto, a abstinência é um fardo pesado e pouco eficaz para a transformação de visão de mundo de uma pessoa. No veganismo, o adepto é tratado como um ex-dependente químico é tratado na igreja, falando muitas vezes da vida pecaminosa que levava antes de ser eticamente correto.

Como sou uma pessoa que se identifica como ateísta e que fugiu da(s) igreja(s) cristã(s) desde os 9 anos, todos esses aspectos foram muito pesados para mim, e o são para outras pessoas.

Obviamente, nada se compara ao sofrimento animal em tempos de capitalismo tardio, e eu concordo com isso. O que está em disputa aqui é: a existência de visões de mundo que permitem imaginar novas relações com animais indicam que não necessariamente precisamos passar pelo veganismo. Há outras possibilidades.

Não escrevo essas palavras para incentivar o consumo de produtos de origem animal ou o tratamento degradante de animais, na verdade, penso que o primeiro precisa ser reavaliado e o segundo, abolido. Escrevo para afirmar que o veganismo é um caminho muito cristão de resolver o problema que o próprio cristianismo ajudou a impor: a superioridade de humanos em relação a animais. Talvez outras formas de enxergar o mundo e de tratar respeitosamente os animais sejam possíveis.

Esse texto nem de longe esgota as problemáticas e possibilidades do veganismo, não cheguei nem a abordar a polêmica das questões climáticas e ambientais. Entretanto, espero ter contribuído para o debate dentro da comunidade vegana.

P.S.: estou aberta a críticas e sugestões e admito que meu conhecimento do cristianismo não é tão forte quanto poderia ser, então posso ter me equivocado em algum ponto. Fiquem à vontade para contribuir.

 
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from groselhas

Melodrama

Quem é essa pessoa dirigindo o carro? Quem é essa pessoa olhando o motorista? Você manteve os olhos fixos no semáforo, mas o semáforo já estava amarelo. Os tendões brancos em torno do volante, o pé semicontrolado no acelerador. Entra, a casa é sua; Da janela, a vista era cor de rubi. Meus lábios, já secos, procuraram os seus, mas um beijo não é um beijo se de volta os outros lábios não te beijam. Difícil saber o que fiz de errado, mais difícil ainda o que fiz de certo. Você não se dá bem com minha família, disse-me; Nem minhas crias sua barriga quer carregar. O que temos em comum, então? Nada além de um grande fio verde, mas a tesoura estava em tuas mãos. Essa é a fita mais dolorida, saiu pela porta mais escura, não sem antes um afago, mas o gato já não estava lá para observar. Gosto de me abraçar em noites assim, seus braços não estão aqui para sentir as lágrimas grossas, escarlates, a cair. Seria eu digna de ser amada ou apenas um lampejo de ser humano escrevendo suas querelas tristes no meio da madrugada?

 
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from groselhas

Reminiscência

Reminiscência é uma recordação do passado.

O filme Her (Spike Jonze, 2013) ensinou que “o passado é apenas uma história que nós nos contamos”. O passado existe em nossa mente como um eco, encantado com um filtro que assume a cor que decidimos colocar nele.

Se meu passado tivesse uma cor, ela certamente seria azul escuro. Não aquele azul bonito que nos tira o fôlego ao olhar para o céu, mas um azul escuro, um azul apático. Quem colocaria essa cor por lá teria sido eu mesma.

Acho que sempre fui uma criança melancólica, e na adolescência não foi diferente. Minha incapacidade de me ligar emocionalmente com meus amigos de escola me levou, anos mais tarde, a passar algumas noites de sono sonhando com o que poderia ter sido, mas não foi. O bullying que sofri no começo da adolescência foi um motor para eu querer pintar minhas experiências de azul escuro. Eu não entendia por que tanta gente não gostava de mim, e ativamente se movimentava para me machucar. Longe de eu ter sido perfeita ou não-problemática, com certeza participei de processos que machucavam outros. Mas é claro, para mim, que a balança pesava contra minha existência.

Entrei no ensino médio em 2013 e passei alguns dos anos mais desgraçados da minha vida. Eu não me identificava com a maioria dos meus colegas de turma, que tinham condições econômicas diferentes e assuntos que não me contemplavam; os poucos com quem eu tinha algum assunto, mais uma vez eu não conseguia manter laços emocionais com eles. Outros, ainda, eram amigos que eram incapazes de manter relações saudáveis comigo, enquanto eu era incapaz de fazer o caminho contrário. Fiquei conhecida no máximo como a menina invocada, a bravinha, ou, na maioria das vezes, invisível. As vantagens de ser invisível...

Quando entrei na faculdade, fiz uma escolha deliberada de inventar uma personagem diferente, dessa vez eu não seria a pessoa chata, eu ia ser querida e legal. Hoje entendo esse processo como parte do masking do autismo, mas não vou focar nesse assunto, pois entendo esse viés como menos importante aqui. De qualquer forma, tentei muito ser a pessoa que todos gostavam, só para descobrir que ninguém se deixou enganar pela minha máscara, minha nova personagem. Criei inúmeros desafetos durante meus anos de graduação. Dos 013 aos 019, todos os anos têm assunto para lembrar de mim como uma insuportável. Mas eu era realmente insuportável?

Talvez eu tenha feito escolhas erradas durante meus anos de graduação, escolhas que me levaram a descontar os pesos de ser uma farsa ambulante em pessoas que não tinham nada a ver com o assunto. Mais de uma vez, ativamente machuquei pessoas com minhas palavras. Mas eu não fui especialmente insuportável, ou deliberadamente uma pessoa ruim, eu só queria ser querida. Na ânsia de ser vista como uma pessoa legal, as pessoas me viram como ridícula. Como disse um amigo meu, as pessoas não riam comigo. Elas riam de mim.

Felizmente, eu consegui fazer amigos queridos durante os anos de graduação. Muitos já se afastaram e se perderam pela vida, talvez nunca mais nos falemos. Sobraram uns cinco para contar história, e está ótimo. Porque o fardo do masking, de ser uma farsa, é muito pesado para carregar, e ele não durou muito tempo. Eu só posso ser eu. E meu eu é, assumidamente, insuportável para muitas pessoas. Talvez aquilo que eu mais tenha aprendido durante os últimos anos tenha sido que, não importa o que façamos ou quem sejamos, nunca vamos agradar a todos. É possível que não agrademos nem metade das pessoas com quem interagimos. Eu sou, de fato, uma pessoa difícil de lidar em diversos aspectos. Mas quem convive comigo sabe das delícias que podem aproveitar estando próximos de mim, também. Mais uma pessoa como qualquer outra, porque todos têm altos e baixos.

O resumo dessa história e a moral eu não sei. Olho para trás com certa dor em perceber que fiz tantas inimizades e desafetos durante minha trajetória, devido à minha personalidade difícil e pouco convidativa, mesmo (e principalmente) quando eu tentava esconder isso e ser querida. Ainda hoje sofro com esses problemas de comunicação, também no ambiente de trabalho. Só que, ao mesmo tempo, estou ativamente ciente de que ser querida por todos é, também, uma farsa. Por isso, já não busco esse estado de ser. Ainda bem.

Meu eu do passado teria orgulho de quem eu sou hoje e isso é o que importa.

Cheers.

 
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