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from groselhas

Reminiscência

Reminiscência é uma recordação do passado.

O filme Her (Spike Jonze, 2013) ensinou que “o passado é apenas uma história que nós nos contamos”. O passado existe em nossa mente como um eco, encantado com um filtro que assume a cor que decidimos colocar nele.

Se meu passado tivesse uma cor, ela certamente seria azul escuro. Não aquele azul bonito que nos tira o fôlego ao olhar para o céu, mas um azul escuro, um azul apático. Quem colocaria essa cor por lá teria sido eu mesma.

Acho que sempre fui uma criança melancólica, e na adolescência não foi diferente. Minha incapacidade de me ligar emocionalmente com meus amigos de escola me levou, anos mais tarde, a passar algumas noites de sono sonhando com o que poderia ter sido, mas não foi. O bullying que sofri no começo da adolescência foi um motor para eu querer pintar minhas experiências de azul escuro. Eu não entendia por que tanta gente não gostava de mim, e ativamente se movimentava para me machucar. Longe de eu ter sido perfeita ou não-problemática, com certeza participei de processos que machucavam outros. Mas é claro, para mim, que a balança pesava contra minha existência.

Entrei no ensino médio em 2013 e passei alguns dos anos mais desgraçados da minha vida. Eu não me identificava com a maioria dos meus colegas de turma, que tinham condições econômicas diferentes e assuntos que não me contemplavam; os poucos com quem eu tinha algum assunto, mais uma vez eu não conseguia manter laços emocionais com eles. Outros, ainda, eram amigos que eram incapazes de manter relações saudáveis comigo, enquanto eu era incapaz de fazer o caminho contrário. Fiquei conhecida no máximo como a menina invocada, a bravinha, ou, na maioria das vezes, invisível. As vantagens de ser invisível...

Quando entrei na faculdade, fiz uma escolha deliberada de inventar uma personagem diferente, dessa vez eu não seria a pessoa chata, eu ia ser querida e legal. Hoje entendo esse processo como parte do masking do autismo, mas não vou focar nesse assunto, pois entendo esse viés como menos importante aqui. De qualquer forma, tentei muito ser a pessoa que todos gostavam, só para descobrir que ninguém se deixou enganar pela minha máscara, minha nova personagem. Criei inúmeros desafetos durante meus anos de graduação. Dos 013 aos 019, todos os anos têm assunto para lembrar de mim como uma insuportável. Mas eu era realmente insuportável?

Talvez eu tenha feito escolhas erradas durante meus anos de graduação, escolhas que me levaram a descontar os pesos de ser uma farsa ambulante em pessoas que não tinham nada a ver com o assunto. Mais de uma vez, ativamente machuquei pessoas com minhas palavras. Mas eu não fui especialmente insuportável, ou deliberadamente uma pessoa ruim, eu só queria ser querida. Na ânsia de ser vista como uma pessoa legal, as pessoas me viram como ridícula. Como disse um amigo meu, as pessoas não riam comigo. Elas riam de mim.

Felizmente, eu consegui fazer amigos queridos durante os anos de graduação. Muitos já se afastaram e se perderam pela vida, talvez nunca mais nos falemos. Sobraram uns cinco para contar história, e está ótimo. Porque o fardo do masking, de ser uma farsa, é muito pesado para carregar, e ele não durou muito tempo. Eu só posso ser eu. E meu eu é, assumidamente, insuportável para muitas pessoas. Talvez aquilo que eu mais tenha aprendido durante os últimos anos tenha sido que, não importa o que façamos ou quem sejamos, nunca vamos agradar a todos. É possível que não agrademos nem metade das pessoas com quem interagimos. Eu sou, de fato, uma pessoa difícil de lidar em diversos aspectos. Mas quem convive comigo sabe das delícias que podem aproveitar estando próximos de mim, também. Mais uma pessoa como qualquer outra, porque todos têm altos e baixos.

O resumo dessa história e a moral eu não sei. Olho para trás com certa dor em perceber que fiz tantas inimizades e desafetos durante minha trajetória, devido à minha personalidade difícil e pouco convidativa, mesmo (e principalmente) quando eu tentava esconder isso e ser querida. Ainda hoje sofro com esses problemas de comunicação, também no ambiente de trabalho. Só que, ao mesmo tempo, estou ativamente ciente de que ser querida por todos é, também, uma farsa. Por isso, já não busco esse estado de ser. Ainda bem.

Meu eu do passado teria orgulho de quem eu sou hoje e isso é o que importa.

Cheers.

 
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from groselhas

Autismo e outras drogas

Receber o diagnóstico de autismo aos 24 anos é estranho. É como receber a resposta de uma pergunta que você nunca perguntou, mas ao mesmo tempo, sempre (se) perguntou. Um gosto do sentimento de inadequação é normal na adolescência. Eu já não sou adolescente há alguns anos e esse sentimento não me abandonou. Era meu aniversário em uma noite gelada de junho de 2021, olhei para meu então namorado e falei: “acho que tem alguma coisa errada comigo”. Cinco anos antes, um amigo meu me deu uma bronca amigável: “falar com você é engraçado. Você não me olha no olho, parece que tá viajando”. Desde então, todas as interações com as pessoas vieram com um “será que estou olhando para essa pessoa?” Aos 20, trocando de psiquiatra, contei para a médica que em nenhum período da minha vida soube dizer que eu estava com sede antes de minha garganta estar pegando fogo, ou quando ir ao banheiro antes de sentir uma dor absurda. Ela achou engraçado que meus amigos me lembravam de fazer essas coisas, eu já achava uma humilhação. Ainda aos 20, um episódio com um professor orientador de auxiliar didático na faculdade fez eu desenvolver certo trauma. Ele chegou a afirmar que eu era a pior pessoa que ele havia conhecido. Tudo por causa de uma falha de comunicação, em que eu fui incapaz de entender o que era o correto socialmente. Aos 3, eu já lia e escrevia como uma criança de seis, sete anos. As pessoas achavam fofo, mas isso seria fatal para um destino marcado pelas grandes pressões colocadas em mim. Aos 13, a obsessão por aviões comerciais começou. Eu passava horas sem comer nem dormir apenas alimentando os conhecimentos de aviação, vendo programas e vídeos no YouTube, acompanhando mapas e planespotting. Mas foi só aos 23, em 2022, que os pratos que eu estava segurando em mãos, quentes demais, foram estilhaçados no chão. Precisei varrer a bagunça para fora da casa. Pedi demissão de um emprego que me remuneraria 5 mil reais por mês: eu era professora na rede estadual de São Paulo, um emprego nada fácil, mas que acabara de receber aumento salarial. Cada vez eu chegava em casa mais cansada, precisava dormir mais de 12 horas por dia, várias vezes perdia a hora por não conseguir ir ao trabalho sem passar mal de nervoso e querer me machucar. 40h por semana era, e ainda é, uma carga insuportável para mim. Minha casa estava um caos completo, a louça criando mofo, o banheiro cheirando a urina felina e as roupas, sem lavar por três semanas. Eu já estava quase reutilizando calcinhas. Eu não entendia por que mesmo medicada e tratada da depressão a bagunça reinava. Autista. Ana Paula necessita de suporte leve: tem dificuldades na comunicação, mas sem que isto limite sua interação social significativamente. Problemas de organização e planejamento podem prejudicar a independência. O processo diagnóstico está lento, caro e ainda em processo, entre a suspeita e o parecer da neuropsicóloga foram quase dois anos, e a psiquiatra ainda não fechou o laudo, pois está coletando pareceres com minha psicóloga. Mas, dentro de mim e com as profissionais que me acompanham, o quadro está desenhado. Ouvindo o podcast da Rádio Novelo sobre uma pessoa cega em processo de adaptação com seu cão-guia, senti-me abraçada. A moça relatou a dificuldade que foi aceitar-se enquanto uma pessoa com deficiência: em um dia, ela era normal, no outro, após relatório médico, deficiente. Hoje eu entendo que o autismo é uma deficiência biopsicossocial e que muito provavelmente já se nasce autista. Então, eu sempre fui uma pessoa com deficiência, apesar de apenas aos 24 encontrar palavras para descrever a minha condição. Minha psiquiatra ficou com certo receio de que eu fosse levar o diagnóstico para o lado negativo, ou pior, tomar a identidade como algo fechado em si. Como se ser autista fosse a única coisa que eu pudesse ser, e alguns profissionais ruins e autistas recém-diagnosticados acabam pensando assim. Eu entendo esses autistas: quando algo tão caro para nós chega com tanto atraso, nós queremos ficar abraçados à tábua da identidade. Ela explica com nomes médicos para a sociedade o porquê de não gostarmos que nos toquem, explica porque nós geralmente vamos embora mais cedo das festas ou porque temos movimentos repetitivos estranhos. Eu sou autista, entretanto, sou muito mais do que isso. Vários adjetivos e títulos se aplicam a mim e autista é apenas um deles. Não apaguem isso da minha identidade, mas também não me resumam a ela, e aqui também cabe um tom de autocrítica. Porque às vezes, na ânsia de comprovar para eu mesma um diagnóstico extremamente subjetivo apesar de clínico, acabo me autossabotando. Onde é que já se viu um autista estar feliz (contém ironia)? Por um tempo, tive medo de falar sobre o assunto publicamente e ser julgada por pessoas que não entendem a complexidade da situação. Só que escrever sempre foi uma válvula de escape para mim, desde que, aos seis anos, escrevia um diário com palavras como “pisina” (piscina). Compartilhar faz parte desse processo, receber um retorno das pessoas que se importam comigo é importante. Por isso, obrigada por ler esse texto. Outros virão.

 
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from blog do pedro

Vejo algo de positivo nos avanços das artes geradas por computador.

Essa opinião não vem a mim de forma confortável. Muito pelo contrário. Como alguém de orientação marxista, observo o desemprego tecnológico com bastante receio.

Mas essa preocupação não me cega de observar a forma como essa bomba pode arrasar com as nossas definições atuais do fazer artístico, nos forçando um verdadeiro reset.

No cenário atual, a grande massa daqueles que se dizem artistas pouco se preocupam o que eu considero arte, que tem algo de expressar o indizível, o irreprimível e converter ideias e imaginação em mensagem palpável sensorial.

Essa é uma definição bastante pessoal. Mas esse é meu blog logo tudo aqui são definições bastante pessoais.

A maioria dos artistas estão unicamente preocupados em impressionar outras pessoas. Não há nada de errado em querer impressionar, inclusive todos os artistas querem em algum nível impressionar, mas o problema é que receber um elogio de alguém é apenas uma migalha para quem quer verdadeiramente realizar seu potencial artístico.

É uma etapa inicial da vida de um artista entender que receber uma confirmação de que você minimamente aprendeu o básico do seu ofício não deveria ser uma necessidade. Seria como um medico cirurgião se ver realizado em simplesmente ser chamado de doutor e nem prosseguir em tentar salvar a vida de alguém. Qualquer um com um jaleco branco pode ser chamado de doutor assim como qualquer um que saiba minimamente sombrear uma esfera vai ser chamado de artista. A missão é muito maior que isso, mas a baixa autoestima é tão grande que muitos se dão por satisfeitos por isso.

Mas muitos prosseguem porém ainda nessa mesma chave, a da falta, onde se está sempre tentando chegar no próximo nível técnico, passar de ano. Esses são mais raros. Eles são perderam no deleite de impressionar por técnica e estética. São os que mais temem as IA. Surfaram por décadas o privilégio de saberem renderizar belos cabelos, rostos baseados em estéticas eurocentricas, esculpir corpos e agora se veem desesperados porque as máquinas podem fazer o mesmo em questão de segundos e o progresso dessa tecnologia mal começou.

O uso de imagens com copyright é antiético e deve ser combatido, mas todos sabemos que nada disso vai adiantar porque no fim do dia o problema é o desemprego tecnológico e é inerente ao sistema capitalista já que existe a contradição de que quem consome o faz vendendo sua força de trabalho, e quem produz quer baratear sua produção o máximo possível. O resultado é um espiral de buraco negro rumo a singularidade. Não há escapatória.

Logo, há de se pensar a arte além de seus limites puramente mercadológicos. O viver de arte sempre foi parte do fazer artístico desde o renascimento. Por exemplo a Monalisa foi um Freela do da Vinci. Ele não necessariamente teria pintado aquela mulher se ela não fosse a esposa de um rico mercador de Florença.

As IA matam essa forma de viver de arte, onde sobrevive o mais habilidoso. Sobra algo? Se sobrar, sobra uma arte livre disso. Se não sobrar, arte então nunca existiu, foi um delírio. Tendo acreditar na primeira hipótese.

Mas como o artista vai sobreviver. Eu não sei, eu não quero falar disso nesse texto. Só sei que artistas darão seus pulos e de alguma forma continuarão existindo.

Mas o que muito me interessa o que será essa arte nova então? No primeiro momento seremos inundados por uma tsunami de feitos artísticos tecnicamente impressionantes. Ainda mais do que já somos. Em seguida ficaremos anestesiados. Então vamos prestar atenção nas ideias das imagens, porque a habilidade técnica será completamente planificada. Todos terão as mesmas possibilidades técnicas. O critério então do que chama atenção vai ser puramente conceitual. Não seria isso uma libertação para arte? Artistas serão livrados das distrações dos sombreamentos dos feitos técnicos ou então serão formados a sempre inventar novos estilos, o que também seria muito bom.

Eu não sinto confortável de dar essa opinião visto que ela a mim soa excessivamente otimista e ingênua, mas não posso evitar expressar pra onde minhas coordenadas atuais me apontam.

Fique a vontade de apontar eventuais erros e discordâncias ou opiniões pelo meu mastodon @pedro@ayom.media ou por e-mail pedro@pedromaciel.com

 
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