Quase me mataram

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Os últimos meses foram turbulentos. Nessa turbulência, desenvolvi a habilidade de me automutilar e formulei planos de tirar minha própria vida. Mudanças irresponsáveis na prescrição medicamentosa feitas por um médico que mentia ser psiquiatra coincidiram com a interrupção da melhora que eu relatei na última publicação. Deveria ser óbvio, mas eu precisei passar por muito sofrimento até me ensinarem que especialistas médicos habilitados devem apresentar, além do CRM, também um RQE referente a sua especialização. Consultando pelo portal do CFM, descobri que os médicos que me acompanharam nos últimos 4 anos não tinham RQE e portanto não poderiam ter se declarado psiquiatras.

O lado bom dessa experiência, além de eu ainda estar aqui para escrever esse texto, é que a crença de que eu estava irreparavelmente quebrada foi substituída pela crença de que eu estava apenas sendo sabotada por médicos imperitos. E isso bastou para reviver uma forte pulsão de vida em mim. Se o problema estava na inadequação do tratamento, havia esperança. A mente superdotada engajou com o problema, assumindo para si a responsabilidade de prescrever um tratamento assertivo.

Por esta experiência, nesse momento confio mais em mim do que em qualquer profissional médico. E a auto confiança gera ação, que gera resultados, que melhora a tão surrada autoestima. Faz algumas semanas que estou bem, sem ideações, sem autolesão, sem planejamento, apenas com pensamentos ordinários que tenho conseguido responder de forma rápida e autônoma. Sei que é pouco tempo e que estou longe de estar curada. Ainda estou sensível e disfuncional, mas a diferença é facilmente notada por pessoas próximas, e por mim própria.

As ações autodestrutivas que eu cometi não foram de todo ruins. O processo de isolamento e introspecção, altamente catabólico, permitiu que eu expurgasse elementos obsoletos da minha vida. Assim, meu olhar se desconectou de quem eu fui, do que fiz e do que desejava para observar as possibilidades que pairam no horizonte.

Preciso reaprender a sonhar e, para isso, o primeiro obstáculo que se impõe é conhecer o que é verdadeiramente possível, afinal sonhos sem materialidade não inspiram ação. Voltei a estudar e a cuidar de mim, e estou intrinsecamente motivada. Tenho agora um plano dentro de minhas capacidades.

Adeus

Por questões de segurança, estou eliminando meus rastros digitais. Não abandonarei a tecnologia, afinal creio que devemos obter o máximo possível do que estiver disponível, inclusive aproveitando-nos de ferramentas e infraestrutura hostis. Não há motivo para pânico, mas tampouco é sensato ignorar a intensa vigilância e controle fortalecendo-se ano após ano e aprisionando-nos cada vez mais. O meio digital não é seguro, especialmente para grupos minorizados.

Mais do que reduzir a quantidade de informações sobre mim que são coletadas, quero principalmente reduzir a influência da máquina ideológica sobre mim e prevenir que minhas opiniões formadas por estudo insuficiente tenham lugar no debate público. Portanto não espere por meu retorno neste blog ou em qualquer outra plataforma de mídia social. Caso alguém reivindique esta identidade em qualquer lugar da Internet daqui pra frente, assuma ser um homônimo, fraude ou coação.

Em tempo, gostaria de retificar algumas posições que tomei anteriormente, à luz do meu vigente entendimento. Não retiro as críticas feitas à FE, pois tenho hoje ainda mais certeza de que agi corretamente em me desfiliar de uma organização eleitoreira, mas é necessário aqui um tanto de autocrítica para que meus textos anteriores não sejam influenciadores de reflexões incorretas.

Inclusão

Meu maior erro provavelmente foi tropeçar na ideologia liberal e acreditar que direitos legislados eram garantidos. Entendo hoje que, mesmo em organizações progressistas, sempre haverão as posições mais atrasadas que devem ser combatidas de forma permanente. A classe é o principal motor do fazer político, mas nenhuma organização pode fechar os olhos para as necessidades concretas de elementos específicos, principalmente aquelas que se propõem a lutar pelo fim da desigualdade social e de toda opressão.

Meu erro prático na Força Esperança foi não saber reconhecer quais as minhas demandas particulares e esperar que me ajudassem apenas baseado em uma identidade. Ausente essa autopercepção, estive inapta para solicitar adaptações e fiquei a mercê do que a sociedade capacitista estava disposta a oferecer sem luta: nada. Eu deveria também ter sido mais acolhedora comigo mesma, com minhas próprias limitações, inclusive as temporárias, e não cedido à pressão do ritmo e modo de trabalho dentro da organização. Isso teria evitado crises e atos impulsivos inapropriados, mas o erro às vezes é o custo do aprendizado.

Parte do meu isolamento atual é justamente um esforço para me desenvolver protegida dos estímulos, longe da reatividade da Internet e da máscara social que eu construí tentando me adequar a identidades e papéis que não me serviam.

Big Tech

A raiz da minha discordância é hoje o ponto que menos sinto capacidade de opinar. Aceitei que eu preciso de muito estudo ainda para poder desenvolver de forma robusta uma argumentação sobre o impacto causado pelo avanços das tecnologias da informação/comunicação nas táticas revolucionárias do século XXI.

Posso não ter a competência para defender minha visão, mas tenho a profunda convicção que a atuação truculenta e violenta dos serviços de inteligência e de polícia possui sinergia com o aparato de mídia burguesa e a assimilação inesgotável de “dados” à respeito de nossa vida privada e pública. E que todo esse conjunto opera para esmagar até as menores aspirações progressistas.

Posso estar errada, mas posso estar no caminho certo também, e para debater isso eu preciso estudar mais para merecer a atenção de pessoas capazes de mais do que rotular sem argumentar, esquivando-se de um debate que poderia consolidar a linha correta.

Felizmente existem muitas pessoas inteligentes no mundo, e se existir algo para ser descoberto, eventualmente alguém irá descobrir, se é que já não foi descoberto. Pode demorar anos ou séculos, mas o proletariado fiel à doutrina das condições de sua própria libertação vencerá, libertando assim toda a humanidade. A idade média durou mil anos, mas mesmo com todo o poder que a igreja católica romana acumulou para si, a ordem social mudou. Sou otimista em acreditar que a mudança da era atual para a próxima levará bem menos que mil anos, e que já estamos em seus anos finais.

Hoje entendo a questão do desenvolvimento e soberania nacionais como tarefas secundárias. A prioridade é apoiar as massas camponesas em sua luta organizada contra o agronegócio, dando fim às atrasadas relações semifeudais e realizando a Revolução Agrária, bandeira unificadora de todas as classes exploradas no Brasil.

Classe

Declarei anteriormente fazer parte da classe trabalhadora. Hoje entendo que essa nomenclatura dilui a nível teórico as diferenças de classe. Afinal, mesmo os bilionários declaram “trabalhar” dezenas de horas por semana e tem-se tornado lugar comum dizer que os empreendedores, ou pequenos proprietários, são os que mais trabalham dentro de um negócio.

O mais correto seria reconhecer que eu, e minha família, apesar de assalariados e desprovidos de meios de produção, somos ainda assim pequenos-burgueses. O distanciamento das condições do proletariado corrompe nossa visão de mundo e nos torna vacilantes. Não é nossa renda, mas a forma como participamos na produção, que permite afeiçoarmo-nos à ideologia burguesa.

Palavras finais

Eu não sou uma intelectual. Eu sou apenas uma pessoa criativa, com facilidade para aprender e que articula bem as ideias. É por minha inclinação para ser polímata e não por arrogância que eu extrapolo minha formação acadêmica e mergulho hoje nas humanidades.

Por minha condição de minoria social, é de meu genuíno interesse superar o quanto antes a sociedade atual e suas opressões; é por meu estado de organismo vivo, de vital necessidade reverter as mudanças climáticas e impedir o desenrolar de uma nova guerra mundial nuclear interimperialista; porém, enquanto pequeno-burguesa, sou sedutoramente tentada pelo oportunismo que coloca as débeis vitórias da social-democracia e as vantagens pessoais imediatas, como melhores condições de trabalho e renda, acima dos interesses permanentes e de longo prazo da classe proletária.

A certeza permanece de que o proletariado tem como única arma a organização na sua luta pelo poder, mas eu não sou uma proletária ainda. Apesar da inevitável decadência da pequena-burguesia, essa é a posição que eu me encontro e da qual me recuso a abandonar voluntariamente, ao menos até que a revolução democrática avance.

Sendo pequeno-burguesa, é mais fácil conquistar migalhas para si e uns poucos do que pão para todos. Porém, se os frutos positivos desse esforço são apropriados de maneira privada, ou por um pequeno grupo, nada mais justo também que os frutos negativos sejam suportados pelos mesmos que nos períodos positivos se beneficiaram, afinal são os riscos do empreendimento previstos na ideologia burguesa. Não há nada que se possa exigir do povo quando viramos-lhe as costas. A partir daqui seria desonesto me lamuriar pela crescente degradação ambiental, social e econômica em minha vida. Isto pois, diante da oportunidade de me proletarizar e servir ao povo lutando de forma científica contra o capitalismo, eu optei pela via liberal burguesa, julgando ser mais provável e capaz de ainda conquistar uma vida melhor para mim agindo de forma individualista e corporativista, assim como fazem, conscientemente ou não, tantos outros elementos da esquerda liberal e da direita civil.

Admito que essa suposta escolha pouco tem de livre, pois opera sobre a ignorância parcial das leis da natureza e exibe a dominação de sentimentos oscilantes de medo e potência sobre a razão. Como tal, é uma posição mutável que depende do conhecimento possuído a respeito das necessidades do mundo material e do estado de agudização da crise capitalista.

Por essa vacilação, verifico que a pequena e média burguesia não podem ser revolucionários legítimos, mas tão somente companheiros situacionais enquanto estiverem a lutar contra o latifúndio e o imperialismo de forma prática e não apenas em palavras e desejos. Compete ao proletariado e semi-proletariado, aliando-se à classe campesina em sua luta pela terra, guiados pelo socialismo científico e unidos em uma Frente Única dos trabalhadores, dirigir a Revolução de Nova Democracia como processo ininterrupto para o socialismo. Afinal, estes sim, nada tem a perder a não ser os seus grilhões.

Referências