Resenha Cibernética

Bloco de notas pessoal de Guilherme Preger, contendo ensaios e resenhas sobre cibernética, semiótica política, filosofia da ciência e da tecnologia, cinema e literatura (sobretudo ficção científica). Este blog é uma continuação do trabalho realizado nos blogs Fabulação Especulativa (gfpreger.medium.com) e Semiopolítica (semiopolitica.tumblr.com).

Bits, Dits, Sits

Bits: entropia informacional (incerteza) de Shannon medida quantitativamente por códigos sintáticos.

Dits: informação semântica (distintiva). Medida por signos em grandezas quantitativa e qualitativa. Constituídas por linguagens.

Sits: informação situacional ou referencial. Medida de sentido em grandezas apenas qualitativas (virtuais). Composta por sistemas de sentido (sociais).

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IA e a explosão de conteúdo

Na era das mídias de difusão, havia poucos produtores de conteúdo e muitos receptores.

Com as redes sociais, todo receptor se tornou também um emissor. Houve então uma explosão na produção de conteúdo. Mas não houve um aumento na recepção. Ela continuou de tamanho comparativamente semelhante.

O resultado foi um aumento na oferta de conteúdo sem o mesmo aumento de demanda (atenção). Isso causou uma redução no valor da produção de conteúdo.

Aí entraram os algoritmos. Estes provocam uma redução na oferta, selecionando o “conteúdo relevante” para a recepção. A razão disso foi para elevar o preço do conteúdo. Usuários passaram a pagar para “turbinar” seu conteúdo.

Ao mesmo tempo, entrou conteúdo “redundante”, isto é, conteúdo de marketing. É esse conteúdo que efetivamente interessava às redes sociais.

Basicamente com as IA generativas aumenta ainda mais a oferta de conteúdo. Mas a demanda de recepção permanece basicamente inalterada.

Isso indica uma tendência à “superprodução” de conteúdo e a redução de seu valor global. Segundo a teoria do valor trabalho, o preço do conteúdo informativo tende a zero.

Veremos então um acirramento do uso de algoritmos para reduzir o alcance do conteúdo. Algoritmos servirão como uma represa para impedir o escoamento do conteúdo.

Veremos até que ponto o “transbordo” da geração de conteúdo irá efetivamente mudar as condições de produção do “intelecto coletivo”.

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O problema do liberalismo

Se alguém se considera “liberal”, tudo bem. O único problema é que cedo ou tarde irá cair em inconsistências e aporias.

O liberalismo se baseia no princípio de que o indivíduo vem primeiro do que a sociedade. Ou seja, a sociedade é feita da reunião de indivíduos.

Alguns liberais mais radicais, ditos “neoliberais” chegam mesmo a dizer que a “sociedade não existe, existem indivíduos e famílias”. Mas a contradição já chega aí, ao aceitar que a sociedade é no máximo uma “grande família”. Aliás, curiosamente se pode dizer que nenhuma organização tolhe mais o indivíduo do que justamente a família.

Mas fiquemos com os liberais mais moderados que toleram a existência da sociedade. Para explicar a formação desta a partir dos indivíduos que a precedem eles recorrem à tese contratualista: a sociedade nasce do contrato livre entre indivíduos.

Em geral, esses indivíduos que criam o contrato social são geralmente do sexo masculino. Não se sabe onde estavam as mulheres nesse momento de assinar o contrato social.

Mas vamos deixar mais esta contradição de lado. Há outra pior: com que linguagem os indivíduos se reuniram para redigir o contrato original?

Algum liberal poderia tentar explicar como os indivíduos em sua vida solitária constituiram sua linguagem, provavelmente para falar consigo próprios.

Neste caso, cada indivíduo teria criado uma linguagem própria, diferente dos demais. Como eles conseguiram se entender já deve ter sido um grande problema.

Na verdade, não pode existir nada mais “social” do que a linguagem. Alguém que fala, o faz para um interlocutor. O paradoxo está que o contrato social original precisou ser construído antes do surgimento da linguagem e ao mesmo tempo depender dessa mesma linguagem.

Nenhum liberal consegue realmente fugir desse paradoxo que o leva para uma aporia: como foi possível aceitar um contrato antes do surgimento de uma linguagem? Talvez por isso os neoliberais defendam que não existe sociedade. Mas isso não resolve realmente o problema.

Inconsistências como essa são graves porque sempre seguem adiante. O liberal pode até tentar desvencilhar-se delas, mas elas se agarram no raciocínio porque elas já estavam lá desde o início.

Inconsistências não conseguem sustentar o raciocínio lógico. Este serve justamente para evitar aquelas.

O que neste caso resulta a dizer que a sociedade precede o indivíduo. Sociedades não são feitas de indivíduos, indivíduos é que são feitos de sociedade. E a marca desta no indivíduo se chama precisamente linguagem.

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Eros x Tânatos

Em o Mal-estar da Civilização, Freud tenta “sociologizar” a psicanálise. Ele expande a teoria das pulsões para a sociedade com dois princípios opostos: Eros e Tânatos. Eros é o construtor dos laços sociais e Tânatos o destruidor dos laços.

Como sabido, por causa do clima dos anos 30 do século passado na Europa, o clássico freudiano é um exemplo de pessimismo cultural: apesar dos esforços de Eros, no final das contas Tânatos vencerá.

Isso corresponde socialmente a prevalência da pulsão de morte sobre a pulsão de vida. Mas esse dualismo pulsional já havia sido rejeitado por Freud. Tanto Eros como Tânatos são exorbitâncias sociais da pulsão de morte.

A pulsão de morte é estritamente “psíquica”. Quando vamos para a sociedade não há continuidade, mas uma bifurcação pulsional.

Eros é pulsão “vinculada” enquanto Tânatos é pulsão “solta”. Mas ambos os princípios sociais são derivados da mesma pulsão.

Do ponto de vista evolutivo, é um erro dizer que Tânatos (ou a morte) tem a última palavra. A morte de um único ente está a serviço da preservação da espécie como um todo. Tânatos serve a Eros e não o oposto.

Na perspectiva evolutiva, são mais importantes as “cópulas” tanto intra como interespécies, pois são as cópulas que geram diversividade genética.

A evolução é tecida por Eros. Tânatos, no entanto, tem função regenerativa, que está a serviço da criação do tecido.

Assim, a extrema-direita ao mobilizar Tânatos como princípio parece “vencer o jogo”, mas ao final das contas quem vencerá são aquelas forças que acreditarem nos impulsos libidinais.

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Fake News como destruição de sentido

Fake news são formas narrativas de desinformação. A pergunta que fica é se elas podem manipular o “público” de extrema-direita.

Fake news a princípio são informação (banal) que pode ser codificada (transformada em dados) e informação semântica que pode ser semiotizada (virar signo).

Mas do ponto de vista da “informação pragmática”, elas são destruidoras de sentido (desorientadoras). A função da fake news é desorientar.

Elas fazem isso porque confundem o mapa com o território. O mapa que elas traçam é o próprio território.

Ou seja, o mapa traçado deve ser material de outras comunicações. Por isso, fake news desorientam por não serem capazes de produzir distinções.

O público desorientado chama-se “rebanho”. A desorientação (alienação política) é útil, pois assim o rebanho pode ser melhor orientado (manipulado) via algoritmos.

A verdade das fake news é que elas são desinformação. Mas só entendemos isso quando somos capazes de distinguir entre informação sintática (em bits), informação semântica (em signos) e informação pragmática (em ideias).

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O problema do voluntarismo

O problema do voluntarismo político é que sistemas sociais são não-triviais e não-lineares. Isso significa que não há mais relação causal entre a vontade de um ato e seu efeito. Muito esforço pode redundar em nada e uma ideia pequena ter consequências incríveis.

Por isso a questão não é cobrar mais “vontade política”. A vontade só funciona se alavancada por uma organização que pode ter efeito multiplicador. Mas também pode ter efeito redutor. Portanto, o “X” da questão é como o coletivo se organiza.

A organização precisa ser mais “autopoiética”, isto é, olhar mais para si própria e se perguntar se os esforços individuais estão sendo tolhidos ou turbinados. A organização é uma represa ou uma turbina?

Ou melhor ainda: a organização é uma usina na qual a potência (o desejo) represado está sendo canalizado para rodar alguma engrenagem social? A questão é portanto produtiva.

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A Natureza é o insondável e nossos corpos são sondas da e na Natureza.

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Globalização e Crioulização

Graças ao engenheiro americano George Spencer-Brown temos uma teoria rigorosa da forma. Toda forma tem dois lados: o marcado e o não marcado.

A forma é produzida por uma distinção que tem dois movimentos: a observação e a indicação. A distinção é observada e um de seus lados é indicado.

Toda observação bifurca o espaço em lados distintos. Isso vem do fato de que não é possível observar todo espaço ao mesmo tempo. Para que algo seja observado, algo também precisa ficar fora da observação. A operação da observação separa esses dois lados como campos distintos, marcado e não marcado.

Se hoje nos dizem que a economia foi globalizada, isso significa que a globalização é sua forma contemporânea. Mas, como toda forma, ela deve ter dois lados. Chamamos esse outro lado de “crioulização”.

A teoria decolonial diz que a colonização é o outro lado (não marcado) da modernidade. A distinção, portanto, é modernidade/colonialidade. Se a globalização é a forma contemporânea da modernidade, a crioulização é o seu lado não marcado.

A teoria da crioulização nasceu na América Latina caribenha, e é uma teoria da linguagem. Infelizmente, no Brasil, o termo “crioulo” foi racializado. A palavra “creòle”, no entanto, originalmente vem do latim “creare”, criar. São crioulas as línguas criadas a partir da transformação da língua do colonizador, seja pelas populações ameríndias nativas, ou pelos escravos deslocados forçosamente da África.

A crioulização transfigura a língua do colonizador não num modo de aculturação, mas de apropriação. Os colonizados transformam a língua para seu próprio uso.

George Spencer-Brown também cunhou o termo “reentrada”, que é uma generalização do conceito cibernético de feedback. Como todo lado marcado depende de um lado não marcado, então dizemos que há uma reentrada da forma em si mesma, com o lado não marcado reentrando no marcado. Isso, obviamente, produz um paradoxo.

A crioulização é o modo de lidar com esse paradoxo do não marcado no marcado. Assim, aquilo que é “deixado de lado” pela globalização, reaparece como crioulizado, ou seja, como uma linguagem reconstruída dentro de outra linguagem.

Os antigos helenos chamavam de bárbaros aqueles povos que não falavam o grego. Bárbaro é um termo onomatopaico que simulava o canto dos passarinhos. A língua bárbara era a língua crioula entre os povos dominados pelos gregos.

Na verdade, toda língua surge (é criada) da crioulização de uma língua anterior que se expandiu para além das fronteiras de uma comunidade, num movimento “imperial” de alargamento, ou seja, pela conquista.

Assim, a crioulização é um signo da resistência linguística e cultural. É uma recomposição da língua do colonizador para os propósitos dos povos colonizados.

O plural é aqui essencial, pois o colonizador quer se ver como uma unidade étnica ou nacional e essa unidade deve ser representada pela língua colonizadora. Mas, os povos colonizados são sempre plurais e falam muitas línguas diferentes entre si. Assim, a crioulização é uma criação que visa a traduções. A colonização amplia fronteiras, a crioulização cruza as fronteiras.

A crioulização ressurge na globalização como signo de diversidade e inventividade. Tudo que é novo na globalização deve seu surgimento à crioulização de ideias anteriores que estavam em estado “não marcado”, ou seja, latente.

A crioulização constrói, desconstrói e reconstrói as línguas. Essa permanente atividade amplia o horizonte semiótico da cultura. Se as culturas avançam por fronteiras e divisões, as crioulizações são essenciais como seus modos de passagem. Ou, em outras palavras, para os impasses da globalização, a crioulização é a única resposta.

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