Ideias de Chirico

cultura

Imagem de uma sopa de letrinhas

Um, dois: feijão com arroz!

Lembro que, quando eu era menino, minha mãe me elogiava porque eu comia tudo do prato: se me colocassem muita comida, eu comia; se me colocassem pouca comida, eu comia ― isso sem nunca reclamar da quantidade. O importante era comer!

Cresço um bocado e sigo com esse mesmo comportamento, mas também em outros contextos da vida. Hoje sou um indivíduo que se adapta rápido às situações, que se contenta com pouco, mas que, ao mesmo tempo, tenta tirar o melhor proveito do que há disponível.

Semana passada migrei de plataforma no Fediverso. Antes participava de uma instância do Mastodon, uma plataforma de microblogging que tem o limite padrão de 500 caracteres por postagem. Passei então para o Akkoma, também um microblogging, mas que permite ao usuário a publicação de 5000 (!) caracteres.

A limitação de caracteres nunca me foi um grave problema no Mastodon ― tanto que o frequentei por quase um ano. Eu migrei mesmo foi para ter uma melhor integração com o protocolo fediversal. No entanto, pouco a pouco percebi que, havendo um limite maior por postagem, passei a desenvolver melhor meus comentários e debater mais extensamente ― bref: comecei a “comer” (akkomer?) os caracteres que me passaram a ser disponíveis!

Com esse limite maior de caracteres, eu poderia evitar os medonhos fios do Mastodon ― um hábito infelizmente importado do X Twitter ―, me estendendo um pouco quando necessário.

Eventualmente produzi textos que se pareciam com rascunhos para publicações deste blogue. Ontem, então, decidi publicá-los “finalizados” aqui com uma ligeira adaptação e algumas correções.

Sobre “Koyaanisqatsi” (11 de maio)

Cena do filme "Koyaanisqatsi". Uma imagem de postes de luz vistos em alta velocidade

Cena de “Koyaanisqatsi”.

Semana passada assisti ao “Koyaanisqatsi”, um documentário indicado por um usuário participante do último #tercinema, cujo tema era “filmes com gênero difícil de definir”.

O partido do filme é registrar vários momentos do território estadunidense, desde sua natureza até sua paisagem industrial/urbana. Pensei que eu fosse ficar entediado, mas nem sequer pausei o filme.

Não há fala alguma durante o longa, imaginem vocês! Só vez ou outra há um canto de timbre grave que canta “Koyaanisqatsi” (o significado dessa palavra é mostrado ao fim do filme).

Soa como um filme simples (a ideia de fazer um filme só com imagens é muito sedutora), mas imagine ter todos esses planos-sequências de cenas que nunca mais se repetirão (fenômenos raros da natureza, detonação de edifícios imensos etc.) e ter de fazer uma montagem que, não só faça sentido, mas que também seja interessante aos olhos...

Durante toda a película, vemos a montagem fazer uma constante relação de causa e consequência. “Koyaanisqatsi” faz parte de um nicho de cinema que age, não por subordinação (narrativa), mas por coordenação (paralelismos) ― Godard, Vertov e Einsestein estão inclusos nesse “gueto poético-cinematográfico”.

Assisti-lo endossou minha ideia de que diretores de documentários são muito mais ousados e experimentais do que diretores de filmes ficcionais ― muito presos à “narrativa”.

As pessoas que lhe assistiram elogiam muito a trilha sonora. Ao meu ver, Philip Glass, compositor contratado para o filme, pode não ser o melhor compositor da vanguarda americana (eu creio que um Steve Reich seria muito mais idôneo), mas a música frenética glassiana coube muito bem ao filme.

Assistam ao “Koyaanisqatsi”! E se puderem, façam-no ebriagados de alguma coisa, nem que seja de paixão pela vida!

Páginas sem Javascript (11 de maio)

Sou um grande fã do HTML puro, porque na maioria das vezes navego pela internet com velocidade reduzida, e não ter Javascript no site me ajuda bastante ― além do apelo estético “brutalista” que o HTML puro tem.

Aqui estão alguns sites de interesse público que funcionam sem javascript habilitado.

Internet Archive, repositório de uma biblioteca digital em funcionamento desde 1996.

Wikipédia. Dispensa comentários.

Invidious, uma front-end sem anúncios do Youtube.

Google Imagens. Sim, ele funciona sem JS!

O velocista Emerson Fittipaldi não sabia estacionar carros (13 de maio)

Imagem de um carro de corrida na pista. Ao fundo a arquibancada de observadores lotada.

Fittipaldi na pista. O que será que toda essa gente diria se o vissem dirigir um carro de passeio?

Mais cedo eu soube que Emerson Fittipaldi, o famoso corredor brasileiro de fórmula 3, era um zero à esquerda para estacionar carros. É tudo. Pensemos duas vezes antes de nos cobrar por realizar deveres que só há em nosso trabalho em todas as faces de nossas vidas. Não estamos mais no século XIX, não precisamos mais ser aquele militar do Machado de Assis, que tem de vestir uma farda 24 horas por dia para se sentir pleno.

O que diferencia uma plataforma de microblogging da de macroblogging (11 de maio)

Quando termina o microblogging e começa o macroblogging?

toot de @NoahLoren13@mastodon.social

Quando precisamos escrever segundo a norma ortográfica para respeitar algum gênero de texto? Quando ultrapassamos o limite de uma postagem que cabe em um print de celular? Quando precisamos sair da plataforma para lermos o texto integralmente? Não sei!

Post scriptum: talvez o microblogging tenha uma temática menos previsível do que o macroblogging...

Número de Dunbar (14 de maio)

Imagem de um grupo indígena. Vestem roupas de penas e palhas ou tecido vermelho.

Segundo o antropólogo Robin Dunbar, a capacidade máxima de membros em uma comunidade coesa está entre 100 e 230 pessoas.

O número de Dunbar define o limite cognitivo teórico do número de pessoas com as quais um indivíduo pode manter relações sociais estáveis, ou seja, uma relação onde o indivíduo conhece cada membro do grupo e sabe identificar em que relação cada indivíduo se encontra com os outros indivíduos do grupo.

Se for assumido que humanos possuem um limite com o qual conseguem se organizar e manter relações sociais sem fazer uso de burocracias ou reguladores, qualquer tipo de organização, tecnológica ou não, precisa se preocupar em como sua arquitetura de funcionamento para que se adapte a este limitante

Fonte: Wikipédia

Isso deveria se aplicar também aos servidores do Fediverso! Por que manter megainstâncias como a mastodon.social se as pessoas nela incluídas são incapazes de conhecerem-se completamente umas às outras?

#cultura #notas


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Capa de "Clássico anticlássico", de Giulio Carlo Argan. Imagem de uma coluna com cornija ao topo. Em fonte romana, os nomes do autor e do livro

Capa de “Clássico anticlássico”, de Giulio Carlo Argan.

Dos tempos em que cursei arquitetura, pelos idos de 2017, ainda lembro de um livrinho que a professora de História da Arte e Arquitetura recomendou como leitura complementar sobre Maneirismo. Tratava-se de “Clássico anticlássico”, do historiador italiano Giulio Carlo Argan.

Como já diz o seu subtítulo ― “O Renascimento de Bruneleschi a Bruegel” ―, “Clássico anticlássico” contempla a arte e a arquitetura do Renascimento e também do Maneirismo ― o entr'acte entre o Renascimento e o Barroco.

Mas não é sobre arte propriamente que quero escrever, mas sim desse precioso paradigma que Argan inaugurou: “Clássico anticlássico”. Clássico anticlássico! A tradição que nega a si, mas que, ao mesmo tempo, gira em torno de si. A tese-antítese ― sem síntese. Isso me evoca quase que instantaneamente aquela figura do cachorro que corre atrás do próprio rabo sem, no entanto, mordê-lo.

Em um certo prisma, podemos ler o “Clássico anticlássico” como o establishment que, com propósitos mais ou menos escusos, surge em momentos de crise como antiestablishment a fim de se afirmar como solução prática e definitiva para um problema estrutural e complexo. São os Collors, os Bolsonaros e os Mileis da vida.

Mas também, por outro prisma, entrevemos no paradigma do “clássico anticlássico” a genialidade do criador que soube manobrar uma cultura remota ao tempo presente sem lançar mão da nostalgia ou do reacionarismo estético, mas sim captar “de um belo olho velho a flama invicta” ― como escrevia o poeta Ezra Pound em um de seus Cantos. São os Joyces, os Chomskys e os Andrades ― “Passado é lição para refletir, não repetir”, é uma frase atribuída a um dos modernistas de 1922.

Como não sei se essas possibilidades de leitura do paradigma arganiano estão claras para o leitor, vou ilustrá-lo a seguir com alguns exemplos nos quais substituo “clássico” por outra palavra, exemplos que tenho coletado com o passar dos anos ou que me ocorreram durante a escrita deste texto. Lembrem-se, porém, que este é um work in progress, logo, eventualmente irei atualizar esta lista à medida que mais exemplos surgirem...

Clássicos anticlássicos: 1. arte antiarte: Marcel Duchamp; 2. político antipolítico: Jair Bolsanaro ― um “clássico anticlássico” por excelência; 3. música antimúsica: John Cage; 4. trabalhador antitrabalhador: o pobre de direita; 5. poesia antipoesia: Décio Pignatari e os demais concretistas; 6. intelectual anti-intelectual: Olavo de Carvalho; 7. prosa antiprosa: James Joyce em seu “Finnegans”; 8. brasileiro antibrasileiro: o brasileiro; 9. Estado antiEstado: Javier Milei, Collor de Mello, Margaret Thatcher etc., etc., etc. 10. homem anti-homem, branco antibranco, hétero anti-hétero etc.: o esquerdomacho.

Durante os tempos de isolamento social da Covid-19, no período de atos contra o então presidente Bolsonaro, rolava pela internet um template da Ação Antifascista, no qual as pessoas escreviam qualquer profissão, ocupação livre ou identidade específica seguida de “antifascista”. Desse template surgiu uma infinitude de memes do tipo “calvos antifascistas”, “agiotas antifascistas” e coisas que tais. Ocasionalmente surgiu um “fascista antifascista”. Como não consegui pensar em alguém que se enquadrasse nesse exemplo de “clássico anticlássico”, convido vocês a pensarem em um “fascista antifascista”.

(Continua...)

#cotidiano #cultura


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Estas Ideias de Chirico estão organizadas em três grandes eixos: #cultura, #cotidiano e #tecnologia. Às vezes também faço #tradução. Textos curtos ou sem um tema específico estão sinalizados como #notas.

Fotografia de "Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond: Fotobiografias". O livro está sobre um tapete vermelho, e em sua capa há o título do livro em letras garrafais interpolado por três pinturas dos três autores.

Fotografia do livro “Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond: Fotobiografias”. O livro está sobre um tapete vermelho, e em sua capa há o título do livro em letras garrafais interpolado por três pinturas dos três autores.

Leio “Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond: Fotobiografias” (Edições Alumbramento, 2000). Um belo calhamaço. Esse é um compêndio de cartas e escritos literários dos três autores, ilustrado com fotografias, manuscritos e desenhos autorais seus ― tudo em papel couché, caprichosamente diagramado, só vocês vendo. Foi um presente de um grande amigo meu da Serra Grande, o Nelson Cunha, que queria então se desfazer de sua biblioteca particular acumulada por mais de 30 anos ― e que, segundo ele, já não tinha razão de ser.

Enquanto leio o catatau, penso em como antigamente, até através das cartas e bilhetes, as pessoas faziam literatura. Alguns desses escritos não eram simples comunicação utilitária de boas novas, mas uma íntima, privada e ― por que não? ― egoísta literatura, pois de um para um. E aí vêm os biógrafos, vêm o Domínio Público, e é pura sorte nossa de leitores sabermos da beleza que esses autores cochichavam entre si por detrás das cortinas do mundo.

Não quero e nem posso me esticar neste comentário frente ao belo que são os escritos que irei compartilhar aqui. A seguir, duas cartas de Mário de Andrade para Carlos Drummond de Andrade. Na primeira delas, de 1925, Mário lamenta não poder ajudar a elevar a baixo autoestima de Carlos. Na segunda, de 1924, Mário fala sobre a importância de se pensar a cultura como um trabalho coletivo e a longo prazo.

“Não sou capaz de aconselhar você, Carlos. Tudo isso você já se disse. Estou convencido que é o grande desejo de ver você feliz que me deixa assim incapaz de fazer considerações sobre o assunto, de fazer literatura. Penso, repenso e não sai nada. Meu pensamento se resolve todo em afeição. O que vale talvez um pouco nisto tudo é o que eu disse atrás e repito: é certo que uma pessoa da sua sensibilidade e da sua volúpia de consciência não pode ter a felicidade comum que é feita de insensibilidade e de inconsciência. A felicidade de você tem de ser espiritual e a melhor maneira de alcançar isso é ter não a vaidade mas a coragem de si mesmo. O dia em que você sem se amolar com o que disse fulano e sem pensar no que fulano dirá, realizar você pra você o que quer dizer pros outros também, pois que o homem é social, virá a calma grande. Aliás, pois que consciente, sempre rajada de temores e inquietações. (...) É possível que estas filosostrias não adiantem nada pra você... Me perdoe. Já disse que me senti numa cruel incapacidade de responder à carta e pedido de você. Mas acredite? Carlos, alguém de S. Paulo está vivendo a tortura de você, as suas inquietações com profundo carinho e uma fraternidade que não pode ser maior. Talvez seja a vagueza de assunto tão vasto e particular que me deixa assim e não perco a esperança de pra outra vez ser mais útil para você. Se quiser que pensemos juntos me escrea contando tudo à medida que os problemas e os casos forem aparecendo na sua vida. Diante da vida eu jamais tenho o prazer dum espetáculo, eu vivo. Eu não contemplarei você, não tirarei de você motivos de literatura, eu viverei você.

― Carta de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, 1925 (grifos meus)

Eu não amo o Brasil espiritualmente mais que a França ou a Cochichina. Mas é no Brasil que me acontece viver e agora só no Brasil eu penso e por ele tudo sacrifiquei. A língua que escrevo, as ilusões que prezo, os modernismos que faço são pro Brasil. E isso nem sei se tem mérito porque me dá felicidade, que é a minha razão de ser da vida. Foi preciso coragem, confesso, porque as vaidades são muitas. Mas a gente tem a propriedade de substituir uma vaidade por outra. Foi o que fiz. A minha vaidade hoje é de ser transitório. Estraçalho a minha obra. Escrevo língua imbecil, penso ingênuo, só pra chamar atenção dos mais fortes do que eu pra este monstro mole e indeciso que é o Brasil. Os gênios nacionais não são de geração esportânea. Eles nascem porque um amontoado de sacrifícios humanos anteriores lhes preparou a altitude necessária de onde podem descortinar e revelar uma nação. Que me importa que a minha obra não fique? É uma vaidade idiota pensar em ficar, principalmente quando não se sente dentro do corpo aquela fatalidade inelutável que move a mão dos gênios*. O importante não é ficar, é viver. Eu vivo.

― Carta de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, 1924 (grifos meus).

#cultura


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Capa do disco "São Mateus não é um lugar assim tão longe". Nela está, em primeiro plano, a nuca de Rodrigo Campos, que observa um jogo de futebol de várzea ao fundo, em um campo de areia alaranjada.

Capa do disco “São Mateus não é um lugar assim tão longe”. Nela está, em primeiro plano, a nuca de Rodrigo Campos, que observa um jogo de futebol de várzea ao fundo, em um campo de areia alaranjada.

Talvez porque a linguagem musical seja para nós mais um recurso de sublimação do que um recurso de imanência, o fato é que é raro encontrar no meio urbano uma música autóctone, “da terra”, que soe como a trilha sonora de sua paisagem, e que dê a ver e ouviver a “cor” de seu lugar de origem — sem, no entanto, mitificá-lo ou folclorizá-lo.

Difícil ouvir por aí peças como Las Cuatro Estaciones Porteñas de Astor Piazzola, que fazem imaginar as ruas vazias de Buenos Aires, ou como as Gymnopédies de Erik Satie que nos projeta a modorra de um boulevard parisiense ao crepúsculo, ou mesmo ouvir alguma das Bachianas de Villa-Lobos, que é capaz de recordar a lida dos trens cargueiros de café do período da Era Vargas. Esse caráter autóctone-musical possui “São Mateus não é um lugar assim tão longe”, um disco que ecoa o subúrbio de São Paulo.

“São Mateus...”, álbum de estreia do cantautor paulista Rodrigo Campos, neste ano completará 15 anos desde seu lançamento em CD, em 2009. Sem grande alcance do público mainstream no seu período de lançamento, mas um sucesso entre o público interessado, rendendo ao músico o prêmio Cata-Vento de “Melhor disco” do ano de 2009, “São Mateus...” é, com certeza, um dos discos mais criativos de sua geração, portador de uma consistência conceitual e sonora rara na música brasileira do século XXI.

Rodrigo Campos tem obras com Juçara Marçal e Romulo Fróes, e já tocou junto de Arnaldo Antunes, Vanessa da Mata e Céu ― através de quem Rodrigo conheceu Beto Villares, aquele que seria um dos futuros produtores de “São Mateus...”. É de Rodrigo Campos os versos que compõem o refrão de “Duas de cinco” (2013), do Criolo:

Compro uma pistola do vapor,
Visto o jaco califórnia azul.
Faço uma mandinga pro terror
— E vou.

Esses versos, sampleadas de “Califórnia Azul”, são ― creio ― a melhor introdução possível à obra de Rodrigo Campos. Está tudo aí: a temática cotidiana, o trabalho profundamente musical sobre a palavra, o suave dedilhado sobre a corda vocal, o canto minimalista nunca sozinho, sempre em diálogo com os demais instrumentos — uma herança da Bossa Nova que poucos artistas da atualidade praticam.

Nesse disco, 12 de das 14 faixas narram, com humanidade e sem o menor traço de estereótipos, a vida nas periferias da Grande São Paulo, a fim de montar um mosaico de retratos de uma classe trabalhadora em ascensão, que convive com a pobreza ao tempo que paulatinamente se intelectualiza e prospera.

Dentre esses retratos estão a carismática e focada professora de “Lúcia”; a doce infância de brincadeiras e de música de “Cavaquinho” em contraste com a amarga infância explorada e abusada de “Mangue e Fogo”; os afetos clandestinos de “Os olhos dela”, “Califórnia Azul” e “Amor na Vila Sônia” ― retratos ambientados na calçada de uma cena de crime, no campo de futebol, no bar da estação de trem, em uma construção, no funeral do antigo vizinho de portão...

Fotografia de Rodrigo Campos no período da gravação de "São Mateus...". Rodrigo Campos é um homem branco de rosto barbeado e de cabelos pretos, vestindo um casaco de cor creme e de gola alta, e uma boina europeia também de cor creme.

Fotografia de Rodrigo Campos no período da gravação de “São Mateus...”. Rodrigo Campos é um homem branco de rosto barbeado e de cabelos pretos, vestindo um casaco de cor creme e de gola alta, e uma boina europeia também de cor creme.

Mas não é só por isso que esse disco pode ser visto como uma música autóctone, mas também por sua natureza sonora. A música de “São Mateus...” é ao mesmo tempo interessada nas lições do Samba, do Pagode e da Bossa Nova, mas também na pesquisa acústico-eletrônica do Rap e no sincopado do Jazz contemporâneo, sempre com aquele ímpeto de invenção propondo novas sensibilidades, própria de uma São Paulo antropofágica, em termos de Oswald de Andrade. “São Mateus...” desvela uma São Paulo ao mesmo tempo alicerçada no concreto das tradições, mas sintonizada na frequência do que há no presente do mundo.

Somada à sua riqueza melódica, harmônica e textual, “São Mateus...” carrega um grande arsenal de timbres, verdadeiros comentadores não verbais das personagens sobre as quais as canções falam. Entre aqueles instrumentos que se destacam está a flutuante guitarra elétrica de “Fim da Cidade”, a prosa entre os sopros, o cavaco e o sintetizador em “Os olhos dela”, os gentis pitacos do acordeão e do cavaco em “Cavaquinho”, os golpes staccatti das cordas friccionadas em “Salve, Fabrício”, o malandro sete cordas de “Isac”. E nem se fale da maravilhosa voz de Luísa Maita em “Os olhos dela”, “Amor na Vila Sônia” e “Mangue e fogo”, talvez o instrumento musical melhor aplicado em todo o disco...

Tudo isso embalado na produção de som que funciona, não como um mero serviço técnico, mas como um instrumento musical per se, que participa ativamente na formulação do signo musical final, seja revestindo os sons acústicos com um belo tratamento eletrônico, seja acrescentando delays imensos às percussões ou fazendo uma boa distribuição binaural.

Conheci “São Mateus...” por ocasião do aniversário da cidade de São Paulo em 2022, quando o poeta e tradutor Arthur Lungov compartilhou em seu Instagram várias canções que, para ele, seriam cartões postais da capital. Entre elas estavam “Amor na Vila Sônia”, que recomendo como introdução ao disco. Recomendo ouvi-la durante uma viagem de ônibus metropolitano ao fim de uma tarde simples, talvez o cenário ideal para ouvir a música de Rodrigo Campos.

Como música autóctone que é, quando ouço o debut de Rodrigo Campos, ainda que eu esteja sendo sacolejado dentro de um micro-ônibus em Fortaleza, sinto que passeio por Perus, Pinheiros, São Mateus, Aricanduva, Vila Sônia e tantas outras cidades paulistanas e tantos outros bairros paulistas, aí vejo que São Paulo não é um lugar assim tão longe!

#cultura


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