Resenha Cibernética

Bloco de notas pessoal de Guilherme Preger, contendo ensaios e resenhas sobre cibernética, semiótica política, filosofia da ciência e da tecnologia, cinema e literatura (sobretudo ficção científica). Este blog é uma continuação do trabalho realizado nos blogs Fabulação Especulativa (gfpreger.medium.com) e Semiopolítica (semiopolitica.tumblr.com).

A ficção valor

Em Marx aprendemos que no Capitalismo impera a lei do valor.

O valor significa que há uma equivalência geral de tudo com tudo. Mas o valor não é o valor de troca, no qual a troca “zeraria” o valor (valor de soma zero), mas sim o valor de “acumulação”, de soma não nula.

Isso significa que o valor não é uma equivalência geral, mas que se sustenta sobre uma “inequivalência”. Esta não equivalência corresponde, segundo Marx, ao trabalho não pago do trabalhador. Assim, o trabalhador recebe um salário pela sua “força de trabalho”, que é um valor de troca, mas seu trabalho não pago é um excedente além da troca, que fica com o empregador.

Marx diz que o capitalismo só ocorre porque há um “trabalhador livre”, que aceita não só vender (alienar) sua força de trabalho por um salário, mas trabalhar um pouco mais sem ser remunerado. Este valor não pago é o valor propriamente dito, i.e., o mais-valor, porque sempre acumula. Acumula precisamente sob a forma de capital.

Mas Marx também diz, n'O Capital, que antes da acumulação do trabalho não pago, houve uma acumulação primitiva que gerou o “capital inicial”, que correspondeu aos “cercamentos” (enclosures) das terras. Com isso, aquilo que era abundante, as terras comunais (the commons), tornou-se raro. Ora, o capital só viceja onde há raridade.

Os cercamentos liberaram os trabalhares da terra para serem “livres” na cidade. Livres para serem explorados e trabalharem o trabalho não pago.

Outro grande pensador chamado Karl, o Polanyi, disse que havia três mercadorias “fictícias”: a terra, o trabalho e o dinheiro. Fictícias porque são mercadorias que não podem ser trocadas, a não ser por meio de ficções chamadas falácias.

Assim, é lícito pensar, baseado nos dois Karls, que o capital é gerado ficcionalmete nesta ordem: primeiro, ocorreram os cerceamentos; esses criaram os trabalhadores livres e o trabalho não pago; e o trabalho não pago gerou o capital financeiro, que pode ser vendido como se fosse uma mercadoria.

Podemos assim citar três modos de produção do capital e não apenas um como queria Marx: a expropriação da terra (da natureza) pelos cerceamentos, a exploração dos trabalhadores pelo trabalho não pago (nos cercados fabris da produção) e a especulação do dinheiro, nos cercadinhos financeiros das “bolsas” e “bancos”.

O que é fictício no capital é precisamente esse ato de cercar, de impor um limite onde antes não havia. Mas essas cercas são antes de tudo simbólicas, pois o que garante a propriedade de um bem comum a não ser um acordo simbólico imposto ou não pela força bruta?

Alguém, em algum momento, disse: “isto aqui é meu”. E deste ato de fala nasceu a ficção do valor. E daí a expropriação, a exploração e a especulação foram apenas a consequência denominada de Capital, o “valor que se autovaloriza”.

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O próprio e o impróprio

Seguindo os passos de Engels em A Origem da Família, eu diria que a luta de classes mais primordial é entre proprietários (que definem o que é próprio) x desapropriados (que são impróprios). Desapropriados daquilo que é comum a todos. Próprio/Impróprio é a distinção fundamental de todo meio (medium). Engels escreveu que esta distinção marca o início do patriarcado. O matriarcado seria então uma sociedade em que tudo é próprio, tudo é comum.

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Relacionalidade

Quando se adota a perspectiva da relacionalidade abandona-se a ideia de coisas que existem independentemente. Em outros termos, mais filosóficos: a ideia de essência intrínseca. Toda essência é extrínseca.

Ou seja, não há uma relação que se estabelece entre duas coisas (objetos) que existissem previamente à relação. O que existe é uma relação que se desdobra em (pelo menos) dois polos (se há mais de dois polos, trata-se de uma hiperrelação). Se esses dois polos se diferenciam, a relação é uma diferença (relação diferencial).

Por isso, deve-se também abandonar a ideia de materialidade. Na Teoria da Relatividade, por exemplo, energia e matéria são intercambiáveis.

Uma relação, assim, não é exatamente uma “coisa”. Uma relação é algo que se diferencia de uma ausência de relação. Ou seja, que se diferencia do vazio. Uma relação é assim uma diferença entre ela mesma e o vazio. Toda relação tem essa “mesmidade”, o que quer dizer que ela se autorreferencia.

Portanto, uma mudança de paradigma da relacionalidade é a questão do vazio. O vazio significa basicamente que não há essência intrínseca. O primeiro a conceituá-lo desta forma, foi o indiano budista Nagarjuna, com o termo sunyata. Sunyata é o vazio, mas o ocidente conceitua este conceito como “nada”. Porém, o vazio budista não é nada, mas simplesmente indica que tudo que é, cria-se em termos de dependência, ou interdependência. O conceito de relação indica essa interdependência. Por exemplo, a terra e a lua não existem por si só, mas numa relação de interdependência. Uma sociedade não é um agregado de “egos”, mas um conjunto de relações entre “ego” e “alter”. Uma sociedade é um conjunto de relações sociais, ou de alteridade, não um conjunto de egos. Ego e alter são os polos de uma relação social.

Se uma relação se diferencia em polos, isso quer dizer que cada um deles é uma “porta de entrada” à relação, isto é, uma abordagem. Uma relação pode ser abordada através de seus polos. É como se a relação tivesse que ser entendida com duas perspectivas diferentes. Se uma relação tem os polos A e B, AB é diferente de BA. Ou seja, a relação tem orientação.

Chamamos essa diferenciação orientada (ou orientável) de mediação. A relação possui um “meio” que é justamente o que conduz de A a B. Por isso, a escola que o indiano Nagarjuna defendia chamava-se Madhyamaka, ou Escola do Caminho do Meio. No entanto, a diferença de percurso que se fazia de A para B e de volta à A, não encontrava o mesmo A (o mesmo polo) do início. Isso significa que o tempo se infiltrou na relação.

Para o paradigma da relacionalidade, o conceito de meio (medium) substitui o de matéria. Toda relação tem meio. A relacionalidade é uma medialidade

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Bits, Dits, Sits

Bits: entropia informacional (incerteza) de Shannon medida quantitativamente por códigos sintáticos.

Dits: informação semântica (distintiva). Medida por signos em grandezas quantitativa e qualitativa. Constituídas por linguagens.

Sits: informação situacional ou referencial. Medida de sentido em grandezas apenas qualitativas (virtuais). Composta por sistemas de sentido (sociais).

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IA e a explosão de conteúdo

Na era das mídias de difusão, havia poucos produtores de conteúdo e muitos receptores.

Com as redes sociais, todo receptor se tornou também um emissor. Houve então uma explosão na produção de conteúdo. Mas não houve um aumento na recepção. Ela continuou de tamanho comparativamente semelhante.

O resultado foi um aumento na oferta de conteúdo sem o mesmo aumento de demanda (atenção). Isso causou uma redução no valor da produção de conteúdo.

Aí entraram os algoritmos. Estes provocam uma redução na oferta, selecionando o “conteúdo relevante” para a recepção. A razão disso foi para elevar o preço do conteúdo. Usuários passaram a pagar para “turbinar” seu conteúdo.

Ao mesmo tempo, entrou conteúdo “redundante”, isto é, conteúdo de marketing. É esse conteúdo que efetivamente interessava às redes sociais.

Basicamente com as IA generativas aumenta ainda mais a oferta de conteúdo. Mas a demanda de recepção permanece basicamente inalterada.

Isso indica uma tendência à “superprodução” de conteúdo e a redução de seu valor global. Segundo a teoria do valor trabalho, o preço do conteúdo informativo tende a zero.

Veremos então um acirramento do uso de algoritmos para reduzir o alcance do conteúdo. Algoritmos servirão como uma represa para impedir o escoamento do conteúdo.

Veremos até que ponto o “transbordo” da geração de conteúdo irá efetivamente mudar as condições de produção do “intelecto coletivo”.

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O problema do liberalismo

Se alguém se considera “liberal”, tudo bem. O único problema é que cedo ou tarde irá cair em inconsistências e aporias.

O liberalismo se baseia no princípio de que o indivíduo vem primeiro do que a sociedade. Ou seja, a sociedade é feita da reunião de indivíduos.

Alguns liberais mais radicais, ditos “neoliberais” chegam mesmo a dizer que a “sociedade não existe, existem indivíduos e famílias”. Mas a contradição já chega aí, ao aceitar que a sociedade é no máximo uma “grande família”. Aliás, curiosamente se pode dizer que nenhuma organização tolhe mais o indivíduo do que justamente a família.

Mas fiquemos com os liberais mais moderados que toleram a existência da sociedade. Para explicar a formação desta a partir dos indivíduos que a precedem eles recorrem à tese contratualista: a sociedade nasce do contrato livre entre indivíduos.

Em geral, esses indivíduos que criam o contrato social são geralmente do sexo masculino. Não se sabe onde estavam as mulheres nesse momento de assinar o contrato social.

Mas vamos deixar mais esta contradição de lado. Há outra pior: com que linguagem os indivíduos se reuniram para redigir o contrato original?

Algum liberal poderia tentar explicar como os indivíduos em sua vida solitária constituiram sua linguagem, provavelmente para falar consigo próprios.

Neste caso, cada indivíduo teria criado uma linguagem própria, diferente dos demais. Como eles conseguiram se entender já deve ter sido um grande problema.

Na verdade, não pode existir nada mais “social” do que a linguagem. Alguém que fala, o faz para um interlocutor. O paradoxo está que o contrato social original precisou ser construído antes do surgimento da linguagem e ao mesmo tempo depender dessa mesma linguagem.

Nenhum liberal consegue realmente fugir desse paradoxo que o leva para uma aporia: como foi possível aceitar um contrato antes do surgimento de uma linguagem? Talvez por isso os neoliberais defendam que não existe sociedade. Mas isso não resolve realmente o problema.

Inconsistências como essa são graves porque sempre seguem adiante. O liberal pode até tentar desvencilhar-se delas, mas elas se agarram no raciocínio porque elas já estavam lá desde o início.

Inconsistências não conseguem sustentar o raciocínio lógico. Este serve justamente para evitar aquelas.

O que neste caso resulta a dizer que a sociedade precede o indivíduo. Sociedades não são feitas de indivíduos, indivíduos é que são feitos de sociedade. E a marca desta no indivíduo se chama precisamente linguagem.

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Eros x Tânatos

Em o Mal-estar da Civilização, Freud tenta “sociologizar” a psicanálise. Ele expande a teoria das pulsões para a sociedade com dois princípios opostos: Eros e Tânatos. Eros é o construtor dos laços sociais e Tânatos o destruidor dos laços.

Como sabido, por causa do clima dos anos 30 do século passado na Europa, o clássico freudiano é um exemplo de pessimismo cultural: apesar dos esforços de Eros, no final das contas Tânatos vencerá.

Isso corresponde socialmente a prevalência da pulsão de morte sobre a pulsão de vida. Mas esse dualismo pulsional já havia sido rejeitado por Freud. Tanto Eros como Tânatos são exorbitâncias sociais da pulsão de morte.

A pulsão de morte é estritamente “psíquica”. Quando vamos para a sociedade não há continuidade, mas uma bifurcação pulsional.

Eros é pulsão “vinculada” enquanto Tânatos é pulsão “solta”. Mas ambos os princípios sociais são derivados da mesma pulsão.

Do ponto de vista evolutivo, é um erro dizer que Tânatos (ou a morte) tem a última palavra. A morte de um único ente está a serviço da preservação da espécie como um todo. Tânatos serve a Eros e não o oposto.

Na perspectiva evolutiva, são mais importantes as “cópulas” tanto intra como interespécies, pois são as cópulas que geram diversividade genética.

A evolução é tecida por Eros. Tânatos, no entanto, tem função regenerativa, que está a serviço da criação do tecido.

Assim, a extrema-direita ao mobilizar Tânatos como princípio parece “vencer o jogo”, mas ao final das contas quem vencerá são aquelas forças que acreditarem nos impulsos libidinais.

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Fake News como destruição de sentido

Fake news são formas narrativas de desinformação. A pergunta que fica é se elas podem manipular o “público” de extrema-direita.

Fake news a princípio são informação (banal) que pode ser codificada (transformada em dados) e informação semântica que pode ser semiotizada (virar signo).

Mas do ponto de vista da “informação pragmática”, elas são destruidoras de sentido (desorientadoras). A função da fake news é desorientar.

Elas fazem isso porque confundem o mapa com o território. O mapa que elas traçam é o próprio território.

Ou seja, o mapa traçado deve ser material de outras comunicações. Por isso, fake news desorientam por não serem capazes de produzir distinções.

O público desorientado chama-se “rebanho”. A desorientação (alienação política) é útil, pois assim o rebanho pode ser melhor orientado (manipulado) via algoritmos.

A verdade das fake news é que elas são desinformação. Mas só entendemos isso quando somos capazes de distinguir entre informação sintática (em bits), informação semântica (em signos) e informação pragmática (em ideias).

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O problema do voluntarismo

O problema do voluntarismo político é que sistemas sociais são não-triviais e não-lineares. Isso significa que não há mais relação causal entre a vontade de um ato e seu efeito. Muito esforço pode redundar em nada e uma ideia pequena ter consequências incríveis.

Por isso a questão não é cobrar mais “vontade política”. A vontade só funciona se alavancada por uma organização que pode ter efeito multiplicador. Mas também pode ter efeito redutor. Portanto, o “X” da questão é como o coletivo se organiza.

A organização precisa ser mais “autopoiética”, isto é, olhar mais para si própria e se perguntar se os esforços individuais estão sendo tolhidos ou turbinados. A organização é uma represa ou uma turbina?

Ou melhor ainda: a organização é uma usina na qual a potência (o desejo) represado está sendo canalizado para rodar alguma engrenagem social? A questão é portanto produtiva.

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A Natureza é o insondável e nossos corpos são sondas da e na Natureza.

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