Considerações sobre o artigo “Positive and differential diagnosis of autism in verbal women of typical intelligence: A Delphi study [1]”
DISCLAIMER IMPORTANTE: o artigo fala principalmente de autismo de nível de suporte 1, apesar de não citar o termo, e eu também falo disso aqui. Mulheres com níveis de suporte mais alto também sofrem com demora em seus diagnósticos, mas as questões identitárias são sensivelmente diferentes às que eu experiencio.
Olá, sou Ana, uma pessoa autista adulta (25 anos), identificada socialmente como mulher e diagnosticada tardiamente (24 anos). Já escrevi anteriormente sobre minha experiência de diagnóstico tardio de autismo.
Recentemente, acabei me desvencilhando de acompanhar conteúdos e discussões acerca de autismo, em uma tentativa de me dar o espaço necessário para processar o diagnóstico sem intervenções de redes sociais. Entretanto, participo do grupo de WhatsApp “Autistas – UNICAMP”, minha alma mater, que reúne pessoas autistas da Unicamp e relacionadas. Algumas vezes, pessoas compartilham materiais acadêmicos sobre autismo por lá, e o artigo aqui citado em especial me chamou atenção.
Em “Positive and differential diagnosis of autism in verbal women of typical intelligence: A Delphi study” (CUMIN, PELAEZ, MOTTRON, 2022) ês autories reconhecem os critérios diagnósticos do espectro autista (de acordo com o DSM-V e o CID-11) vagos. Atualmente, nos EUA, um dos países com a maior documentação estatística acerca do assunto, a prevalência de autismo é de 1 para 36 crianças [2], o que pode estar relacionado a diversos fatores. Entretanto, a proporção entre meninos e meninas é de 4 para 1, o que reacende a discussão sobre o processo diagnóstico de TEA em meninas.
Historicamente, o processo diagnóstico de TEA em meninas vem sido prejudicado por preconceitos de gênero e enviesamento dos próprios critérios e testes diagnósticos. Principalmente no tocante a diagnósticos tardios femininos, há uma dificuldade em diferenciar o autismo, um transtorno biopsicossocial, de condições psiquiátricas, como o transtorno de personalidade limítrofe (borderline). O ponto do estudo, portanto, foi averiguar os critérios específicos de diferenciação diagnóstica para mulheres adultas com inteligência “normal”, por parte de especialistas em autismo envolvidos com esse perfil em sete países.
Foram 37 os critérios citados em comum por 20 profissionais entrevistades, separados nas seguintes categorias: fatores de complexidade no atendimento, como gerir esses fatores, sinais típicos de autismo em mulheres e diagnósticos diferenciais e comorbidades.
Entre os fatores de complexidade no atendimento, três coisas me chamaram a atenção: o auto-diagnóstico, condições de estigma relacionadas a transtornos comórbidos e reações negativas com o (não-)diagnóstico.
O autodiagnóstico de autismo é um tópico extremamente inflamado dentro da comunidade autista e arredores (como pais, profissionais de saúde, etc.). Grande parte des defensories de auto-diagnóstico estão de acordo que o autodiagnóstico é apenas a primeira parte do processo diagnóstico e não o ponto de chegada. Entretanto, principalmente entre adolescentes, cresce a quantidade de pessoas envolvidas em reconhecer transtornos por meio de listas superficiais em redes sociais com conteúdos cada vez mais pulverizados e até falsos. Cada vez mais, quando têm acesso ao processo diagnóstico oficial, adolescentes e adultes chegam cheies de certeza de seus diagnósticos, o que atrapalha substancialmente o próprio processo.
Qualquer pessoa que tenha o mínimo conhecimento acerca do DSM-V, um manual estadunidense e o principal manual utilizado no Brasil para orientação de processos diagnósticos psiquiátricos e afins, sabe o quanto pode ser sutil e política a diferença entre diagnósticos. É difícil de chegar a uma conclusão certeira até mesmo para profissionais, mas de alguma forma criou-se a narrativa de que qualquer um pode se autodiagnosticar autista, porque “ninguém conhece você melhor que você mesmo”. Essa parte é particularmente delicada porque muitas pessoas têm seus acessos a diagnósticos negados sistematicamente por diferenças raciais, econômicas e de gênero. Entretanto, o que deve ser envisionado aqui não é a banalização do diagnóstico e sim o questionamento das condições socioeconômicas degradantes a que nós pessoas marginalizadas somos expostas, e, por que não?, a própria categoria diagnóstica.
O neoliberalismo cria as categorias médicas psiquiátricas e as explora enquanto identidades, em um ciclo retroalimentado. 10 anos atrás, quando eu ainda era adolescente e o autismo não era assunto muito comum em redes sociais brasileiras, já se colocava na biografia de sites como Twitter certos indicadores como “bipolar” ou “borderline”. Em outras palavras, não é exatamente um fenômeno pós-TikTok ou restrito a adolescentes nascides após 2003. Infelizmente, o que se observa é cada vez menos a denúncia das intrínsecas relações entre psiquiatria e neoliberalismo e cada vez mais o abraço em identidades. Eu entendo esse fenômeno como vizinho a outro típico do neoliberalismo: todos nós queremos ser úniques, e cada identidade que colocamos em nossas descrições nos ajuda a nos afirmarmos contra o mundo. Em um mundo adoecido de capitalismo tardio, dominado por relações precárias e expropriação de mais-valor extrema, todos sofremos . Aqui não se trata de dizer que “todo mundo é um pouco autista”, afinal de contas, todes sofremos, mas nossos sofrimentos podem ser distintos e o autismo é uma categoria definida. O que coloco em questionamento é a certeza adolescente e jovem-adulta de que sofremos mais do que ês outres e que somos especiais por isso, como se o ônus de sofrer estivesse vinculado necessariamente a um transtorno psiquiátrico... o que não deixa de ser uma postura individualista!
O gancho aqui exposto me leva ao segundo tópico: condições de estigma relacionadas a transtornos comórbidos. A depressão, o transtorno bipolar, o transtorno de ansiedade, o transtorno de personalidade limítrofe, todos eles carregam um pesado estigma social de serem questões puramente pessoais. Quem carrega esses transtornos o carrega por questões individuais, sendo a cura uma questão individual também. “Tem que ter a terapia em dia”, diz a massa jovem em relação a parceires afetivo-sexuais, como se a terapia fosse a panaceia dos problemas psicossociais. Ao contrário, a delimitação do conceito de neurodiversidade coloca no cérebro biológico a “culpa” de sermos quem somos. Não podemos ter culpa sobre nossos sofrimentos se é algo que nascemos com, ou seja, nos afastamos do estigma de sermos responsáveis por nosso próprio “fracasso”. Já não devemos algo à sociedade, ela quem nos deve algo, porque somos diferentes e a nossa diferença importa.
Note que eu definitivamente não concordo com essa leitura sobre os transtornos mentais, e também não afirmo que a vida de autista/neurodiverse é flores. Nós autistas sofremos sistematicamente com exclusão em vários aspectos sociais, mas aqui meu foco é outro: o uso da linguagem e da identidade para, individualmente, nos resguardarmos do sentimento desgraçado de ser uma falha. Ao abraçar a alcunha de “depressives”, nos indicamos individualmente doentes, e nos colocamos na terapia. Ainda que a depressão tenha também sido cerebralizada (um termo usado por Ortega, em “Somos Nosso Cérebro?”), o autismo é especialmente cerebralizado. No autismo, somos nosso cérebro, ele comanda todas as partes do nosso ser. Essa cerebralização de fenômenos psicossociais como se o cérebro fosse de fato uma CPU natural é uma visão neoliberal e colonizada. Desde quando uma parte do nosso corpo (o cérebro) recebeu uma importância desenfreada em nosso senso comum? A proliferação de abordagens neurocientíficas, que acrescentam o prefixo “neuro” em toda e qualquer coisa, gera a neurodiversidade, mas também a “neuroindividualização” (acabei de inventar esse termo). Nós autistas somos um corpo uno, nosso cérebro é apenas parte de nós. Quando compramos essa lógica cerebralizante, estamos também sumindo perante o capital. Em resumo, é meu cérebro que é assim, eu sou diferente e pronto e acabou.
Mas, afinal de contas, existem cérebros típicos? É a pergunta de milhões. Mesmo assim, diversos membros da comunidade autista parecem se segurar em uma premissa de que são um mundo à parte, com uma diversidade natural não vista em nenhuma outra parte da sociedade, e até mesmo colocam questões morais no meio, taxando ês “neurotípiques” de pessoas intrinsecamente ruins. Criamos uma divisão entre “nós” e “elus” que é completamente cinza, ou seja, não tem um critério claro. E mesmo que esse critério fosse claro, é justificado nos fecharmos em um círculo de pureza? Afinal de contas, como o próprio estudo aponta: “A diagnosis of autism can provide a feeling of belonging to a community, and some clinicians felt that the autism as a social identity resonated particularly with their female patients. Many clinicians indicated that autism was seen by their patients and clients as more socially acceptable than a mental health condition, which could complicate the process of making a differential diagnosis and receiving a stigmatizing label.”
A construção da identidade é algo importantíssimo para nosso reconhecimento junto à sociedade. Entretanto, é perceptível a monetização da identidade, e o autismo não deixa de ser uma das identidades que entram nesse balaio. Quando chegam aos consultórios agarrados à certeza de que “meu cérebro é diferente, não é minha culpa”, ês pacientes reagem (muito) mal à notícia de que não preenchem critérios diagnósticos para autismo. Voltam à estaca de “você pode ter outro transtorno, um que vai ser sua culpa”. O boom da procura por diagnósticos tardios de autismo também está relacionado, portanto, ao estigma de diagnósticos correlacionados que são duramente estigmatizados e individualizados (as próprias categorias diagnósticas de que fazem parte segundo o DSM-V são o estigma da loucura, levando as pessoas a não verem melhora substancial nos seus quadros, claro!)
Passando ao terceiro tópico, o de sinais típicos de autismo em mulheres adultas. São listados 11 sinais, dos quais destaco: “Autistic women, despite presenting as intelligent, had often failed to achieve expected levels of personal/professional success”, e “In autistic women, gender may be expressed more fluidly, with less attachment to the gender binary, or femininity may appear forced/rehearsed”.
A marca social da diferença está muito relacionada à questão diagnóstica do autismo e esses dois tópicos são sintomáticos. Primeiramente, o que é “alcançar níveis de sucesso profissional/pessoal” em um contexto em que sofremos brutalmente com o desemprego, o subemprego, a inflação, a substituição por tecnologias, entre outros? Algum des tides “neurotípiques”, por mais inteligentes que sejam, conseguem alcançar esses níveis de sucesso profissional/pessoal? O que é essa métrica do “sucesso”? Utilizar um critério associado ao sucesso de uma pessoa, atrelando-o ainda à noção de inteligência, é também um sintoma neoliberal por trás das avaliações neuropsicológicas e psiquiátricas. Parece, então, que ao observar ume indivídue que não responde adequadamente à pressão neoliberal, e juntarmos a um conjunto de características que se destacam em meio a uma pretensa normalidade, precisamos patologizá-le.
Ainda dentro da diferença, a aparição do critério de expressão de gênero fluida como atrelado ao autismo também é preocupante. Quantas mulheres e outras pessoas que desviam da norma de gênero foram internadas em sanatórios ao longo da história? Desvincular gênero e sexualidade de critérios patológicos é mandatório em um cenário antimanicomial. É verdade que nós autistas por sermos menos ligades a normas e convenções sociais, estamos mais propenses a nos expressarmos mais livremente. Entretanto, o desconforto e o rechaço a normas sociais de gênero e sexualidade é uma coisa perfeitamente normal em uma sociedade repressiva de desviantes. No grupo des autistas da Unicamp, mais de uma vez pessoas relatam seu desconforto com normas de gênero como se fosse um trejeito autístico. Na verdade, esse é um desconforto... humano. Tentar vincular as duas coisas como intrínsecas, além de problemático, volta ao assunto de buscar formas de nos colocarmos como especiais perante o resto da sociedade, uma conduta individualizante que nos isola e não nos une em torno da luta por uma sociedade melhor.
Por fim, ainda no tópico de internação manicomial de mulheres e pessoas desviantes de normas de gênero em geral, o próprio estudo apresenta a histórica vinculação entre transtornos psiquiátricos e autismo, como diagnósticos facilmente trocados erroneamente. “Borderline Personality Disorder is highly present in autism assessment clinics as a past diagnosis and/or a potential differential diagnosis” e “Autistic women can superficially present with signs resembling Borderline Personality Disorder”. Isso porque, além de toda a problemática neoliberal apresentada, o gênero é uma camada de interpretação importante. Mulheres desviantes só podem ser loucas, atípicas, “com cérebro diferente”. O que está em jogo aqui é, de fato, a mudança de uma linguagem patologizante para outra que, apesar de parecer menos patologizante, ainda ressoa nas entrelinhas dentro da lógica capitalista.
“Ah, mas Ana, tudo para você é capitalismo? O autismo não ia existir no comunismo?” Isso (as condições de uma sociedade comunista existente) eu já não sei informar, mas a percepção de diagnósticos psiquiátricos e adjacentes está intimamente ligada com o desenvolvimento da medicina, que, oras, anda de mãos dadas com o capitalismo, o racismo e a misoginia, entre outros. Ao abraçar acriticamente identidades provenientes da lógica médica presente no DSM-V, de forma até mesmo agressiva, estamos nos deixando engolir.
Atenciosamente,
Uma autista possivelmente borderline possivelmente louca possivelmente... só humana.
Referências na ordem em que aparecem:
[1] Cumin, J., Pelaez, S., & Mottron, L. (2022). Positive and differential diagnosis of autism in verbal women of typical intelligence: A Delphi study. Autism, 26(5), 1153–1164. https://doi.org/10.1177/13623613211042719 [2] Data & Statistics on Autism Spectrum Disorder, por Centers for Disease Control and Prevention (2022): https://www.cdc.gov/ncbddd/autism/data.html
Ana, 25. Química. Estudante. Autista. Facilitadora de anarquia. Mas muito mais que tudo isso.