Notas sob(re) Salvador

Salvador, Cidade Baixa. Foto de Bárbara.

Salvador, Cidade Baixa. Foto de Bárbara.

Em plena era do avião e do veículo leve sobre trilhos, viajar longas distâncias por terra para alguns pode parecer uma bela de uma ideia de Chirico. Em minha condição de estudante e trabalhador em terra estrangeira, no entanto, viajar por esse meio era o que me estava à mão, já que sou contemplado pelo programa ID Jovem.

Por meio dele, pude viajar de Fortaleza para Salvador gratuitamente, tendo de pagar somente a taxa de embarque. Permaneci na capital baiana por duas semanas ― a última de janeiro e a primeira de fevereiro. Devi minha estadia ao querido casal de amigos soteropolitanos Bárbara, a “Bá”, e André, o “Dé”. Por ela ter uma redação de projeto de doutorado por fazer, ele é quem me acompanhou a maior parte dos dias.

Compartilho com vocês algumas impressões “a quente”, feitas no momento da viagem, que vêm de notas de um pequeno diário que levei na mochila. Depois, algumas impressões mais “a frio” de Salvador, percepções que escaparam durante a viagem, as quais não tive tempo de registrar ou que vieram com a distância do meu retorno. Intercalando-as, fotos que tirei pelo meu celular ou que Bárbara tirou em sua câmera digital, além de estáticos de vídeos que fiz pela cidade.

Notas a quente

24 de janeiro (quarta-feira): Em um ônibus Guanabara de dois andares, passo por Rio Grande do Norte, Paraíba, Sergipe. Nas três paradas consecutivas, sinto que a natureza e as gentes suas não são diferentes das do Ceará. Mesmo o sotaque da gente paraibana, da parte de onde parei, lembra um pouco o sotaque da Costa Norte, do oeste e norte cearenses. O Nordeste é tão diverso... Por que manter esse mito de unidade, de cactos e sóis imóveis?

25 de janeiro (quinta-feira): Em Salvador, no Parque da Cidade com Dé. Bárbara “Suei” ficou em casa enquanto passeamos. O tempo está nublado, e há na cidade um quê paulista.

26 de janeiro (sexta-feira): Em SESC Nazaré, ainda em Salvador. Dormi em casa de Alex Simões, um poeta local que eu conhecera em 2021, pelo curso de Poesia Expandida. Ontem fomos ao Pelourinho com Clarisse Lyra, outra poeta de Salvador, e apareceram também Augusto, um pesquisador de Jorge Amado ― gaúcho ―, Camila ― paulista ―, e Mateus ― carioca ―, também escritor. Tive de sair da casa de Alex, pois não poderia ficar comigo. Mato o tempo até as duas da tarde, quando Dé poderá me pegar.

27 de janeiro (sábado): Pelo Pelourinho com Carol. Era noite. Luzes quentes e baixas das tradicionais arandelas de rua. (...) Sobre as escadarias da Fundação Jorge Amado, falou de seu contínuo resgate a antepassados indígenas. Sua fala cantada ― brilhante. Falou a certa volta: “Não tenho medo de morrer (...), mas tenho medo de esquecer o que vivi” (...).

Post scriptum: Carol foi quem me recebeu na primeira vez em que fui a Salvador, em 2019. Nesta volta, levei-lhe alguns mimos cearenses, entre os quais Sequilhos ― biscoitos de leite em pó ―, pedaços de rapadura de amendoim, uma lata do refrigerante de caju São Geraldo, e um cartão-postal da Praia de Iracema, de Fortaleza.

28 de janeiro (domingo): Fui almoçar com Dé e Bá na UFBA. Lugar incrível. É inconcebível como são capazes de fornecer almoço aos domingos. (...)

29 de janeiro (segunda-feira): No Passeio Público com Dé. (...) À noite, saímos eu, Dé, Bá, Luísa e Pedro Sol para um restaurante indiano-árabe-oriental.

Post scriptum: Este restaurante chama-se Pasárgada e fica no bairro Rio Vermelho, próximo (ma non troppo) da Casa de Iemanjá, onde ocorre o famoso cortejo anual à Iemanjá, a todo 2 de fevereiro.

30 de janeiro (terça-feira): No Museu de Arte Contemporânea fui violentamente censurado por um turista (...) por eu ter tocado numa peça que era sonora. Isso, por habilidade de Dé, não acabou nosso passeio. Comemos uma empadinha de doce de leite numa padaria onde tivemos o melhor atendimento possível; conversamos em inglês com dois londrinos num bar de beco; descemos a Ladeira da Barra vendo a Baía de Todos-os-Santos bem na hora dourada, chegando às proximidades do Farol ao pôr-do-sol.

31 de janeiro (quarta-feira): Eu, Bá e Dé saímos em disparada para um cinema às 12:00, onde haveria a projeção de “Il sol dell'avvenire” às 13:00. Iríamos lhe assistir com Vinícius e Gabriel. Almoçamos de improviso algumas marmitas no Shopping Paseo. Dé quebrava as talheres [de plástico] de minuto a minuto. Comi à parmegiana ― saudades de meu pai. Mais tarde nós meninos fomos ao Lago dos Patos, em Pituba ― Bá ficara em casa para escrever. Logo depois, a pegamos e saímos a um restaurante chinês. Nos empanturramos de yakissoba!

1 de fevereiro (quinta-feira): Andei sozinho por um tempo durante a manhã. Pela tarde eu e Dé fomos ao Mercado Modelo ― lembra-me muito das feiras artesanais de Fortaleza. Lá comprei uma camiseta do Olodum e um ímã com uma gravura do Elevador Lacerda, por onde subimos até a Cidade Alta. Era já hora de pôr-do-sol. A Baía de Todos-os-Santos resplandescia. O céu partia-se em laranjas, amarelos e gris. Logo depois, o brilho das cidades ao horizonte. Por fim, tomamos uns copos de cerveja num Bar do Pelô. Dé é um grande amigo!

Crepúsculo a partir da Cidade Alta. Estático de um vídeo.

Crepúsculo a partir da Cidade Alta. Estático de um vídeo.

2 de fevereiro (sexta-feira): Festa de Iemanjá. Dé, Bá e eu acordamos cedinho. Não pudemos ver a partida do cortejo. (...) Pudemos fazer oferendas. Comemos. Almocei fora bem baratinho. Caminho um pouco sozinho. Voltei para casa ensopado e trombei com Vinícius e Gabriel, que saíam para a Barra, onde tomamos sorvete e coco! Pela noite nos encontramos no Rio Vermelho para comer acarajé. Por conta das festas profanas, lá estava um caos.

3 de fevereiro (sábado): Passo o dia sozinho. Bárbara e André ficam em suas casas a fim de finalizar os trabalhos dela. Decido ir à Avenida 7 de setembro para comprar sandálias (as minhas anteriores quebraram durante a Festa de Iemanjá), e “Capitães de Areia”. Compro as sandálias, mas não encontro um sebo aberto sequer. Como estava próximo ao Elevador Lacerda, decido descer à Cidade Baixa. Acabo comprando um chapeuzinho chinês.

Post scriptum: Este chapéu estava em moda naquele momento. Comprei-o porque tinha certeza de que não o encontraria outra vez com facilidade.

4 de fevereiro (domingo): Eu, Dé e Bá almoçamos no Shopping Salvador. (...) Lá haveria um encontro extraordinário do Clube Poliglota local. Falei em inglês com Suzy, em espanhol com Leandro, e em italiano com Gerlon. (...) Mais tarde, eu e Bá fomos ao Museu de Arte Moderna da Bahia. Visitamos a exposição de Walter Firmo e fotografamos o edifício.

Post scriptum: “extraordinário” aqui no sentido de “fora do programado”. Os encontros do CP de Salvador ordinariamente ocorrem aos sábados. No entanto, no primeiro sábado em que estive na cidade, caiu um toró, e no segundo, começavam os preparativos para o carnaval, o que inviabilizava qualquer outra coisa que não a folia.

Foto de Bárbara tiradas por mim na Praia da Gamboa, próxima ao Museu de Arte Moderna da Bahia.

Foto de Bárbara tiradas por mim na Praia da Gamboa, próxima ao Museu de Arte Moderna da Bahia.

5 de fevereiro (segunda-feira): Quando o carnaval está prestes, Salvador prepara tapumes defronte a suas fachadas e muros ― qual estivesse se preparando para uma batalha prevista. Tudo aqui é belo, e tudo aqui é interessante ― mesmo as favelas e mesmo os bairros nobres mais exclusivos ―, mas, (...) tudo é caro, (...) e não há o menor espaço para o ciclista. Não retornarei a Salvador enquanto eu for um estudante pobre.

6 de fevereiro (terça-feira): (...) O ônibus partiria às 8:30. Carol prometera estar lá às 8:00, mas seu metrô atrasou. Carol pisou na plataforma assim que o ônibus manobrava para partir. Sequer pude vê-la. (...) chorei (...). Carol prometeu viajar a Fortaleza em junho.

Notas a frio

Travessia

Brilhar pra sempre,/ brilhar como um farol,/ brilhar com brilho eterno,/ gente é pra brilhar

“Brilhar pra sempre,/ brilhar como um farol,/ brilhar com brilho eterno,/ gente é pra brilhar”, Vladímir Maiakóvski. Foto minha do Farol da Barra.

Lembro-me de uma certa anedota que ouvi do meu amigo serragrandense Nelson. Ele me falava de uma caravana de monges orientais que levavam sete dias na travessia entre uma montanha e outra. Ao fim dessa peregrinação, realizavam uma habitual missão espiritual.

Um engenheiro inglês que viajava pela região, vendo a situação de aparente dificuldade, ofereceu-se-lhes para construir uma ponte da última tecnologia europeia.

Com esse suporte, a peregrinação, que durava sete dias, agora poderia durar apenas dois. Os monges contestaram-no: “Mas de que outra forma poderemos conversar e meditar durante os cinco dias que nos restariam?” Para esses peregrinos, o que interessava não era o destino, mas a travessia.

A vantagem de se viajar por terra é que o atrito com o espaço faz com que se conheça mais do espaço pelo qual se viaja. Parece óbvio, mas em um trajeto por terra de uma hora partindo de um ponto A a um ponto B, um viajante conhece muito mais de A-B do que outro viajante que viaja pelo mesmo trajeto em um mágico tempo de ― digamos ― vinte minutos. Assim, a viagem é cômoda e conveniente, mas, por consequência, previsível.

Já por terra, há mais fricção. Diz algum teórico da comunicação (ou algum marxista): só há informação nas diferenças. Pela fricção, a dialética. Pela fricção, o outro. Pela fricção, o novo.

Na trajetória entre Fortaleza e Salvador, cruzei os estados do Rio Grande do Norte, Paraíba, Sergipe e, claro, Bahia. A cada parada dessa longa viagem de pouco mais de um dia de duração, eu ouvia um sotaque diferente, comia uma comida diversa, via uma paisagem distinta da anterior.

Cruzar o Brasil nordestino por terra é ver desabar o folclore forjado aqui e alhures de um Nordeste homogêneo. Claro, como foi registrado na nota “quente” do dia 24 de janeiro, vez ou outra eu (ou)via o meu povo em outro povo ― o que me surpreendia, pois eram semelhanças que eu não esperava encontrar. Mas mesmo essas semelhanças reforçam a diversidade nordestina, pois fogem das caricaturas de Nordeste.

Terra

Interior baiano. Estático de um vídeo meu.

Interior baiano. Estático de um vídeo.

Atravesso as matas baianas que, imagino, encontram-se próximas do litoral. Daí a algumas horas, chego a Salvador. Essa paisagem rural evoca aquela de “Grande Sertão: Veredas”, romance do mineiro João Guimarães Rosa. Não por acaso: se não falseio, aquela era a região ao sul de Bahia, fronteiriça com Minas Gerais, onde também acontece o romance rosiano.

De minha janela avultam buritizais, mata miúda e verde, eventualmente carnaubais, tortas veredas, cancelas branquinhas, pequenas casas de largos beirais. Emoldurando essa paisagem, um tempo extraordinariamente nublado, que durou os três primeiros dias em que estive em Salvador.

Cidade

Elevador Lacerda. Foto de Bárbara.

Elevador Lacerda. Foto de Bárbara.

Como relatado na nota “quente” do dia 25 de janeiro, havia àquele dia nessa cidade uma atmosfera paulista. Salvador é, contrariando desde 2019 minhas espectativas, uma cidade cosmopolita. Salvador é, como São Paulo, uma antena do mundo ― e também um porto do mundo. Não à toa, há um grande intercâmbio entre a gente paulistana e a gente baiana.

Nas duas cidades predomina o carro, a geografia acidentada e imprevisível desenha as ruas, viadutos e linhas de metrô arranham os arranha-céus. No entanto, em São Paulo é possível lobrigar, aos poucos, uma cidade feita para o pedestre, há uma presença considerável e a contrapelo da bicicleta, e uma reivindicação pelo transporte não motorizado e público.

Por outro lado, nada disso é visível em Salvador. Aqui, o carro engoliu por completo as ruas que, apesar de curvas e feitas inicialmente à medida do pé, acomodaram-se totalmente ao corpo do automóvel.

Em todos os meus trajetos por Salvador, percebo uma “costura” entre os edifícios e entre os bairros, que falta a maioria das grandes cidades que visitei ou morei, como Fortaleza. Nesta, há uma quebra brusca entre o que é, digamos, Messejana e Bairro de Fátima, ou Mucuripe e Meireles; entre todas há portais, sinais claros do término e do início de tudo. Por vezes, até a sensação de clima muda, as gentes mudam, e, ato contínuo, a cultura muda. Há Fortalezas em Fortaleza. E há, em Fortaleza, fortalezas ― semióticas.

Já não o é em Salvador. Há entre todas as regiões soteropolitanas uma firme coesão; uma mal anuncia a outra; sabe-se, quase que por mágica, quando o bairro Graça passa a ser o bairro Canela, ou quando o Pelourinho passa a ser Santo Antônio Além do Carmo ― uma sensibilidade que custa ao viajante assimilar. O fato de que, para cada bairro nobre, há uma periferia “pendurada” ― como me fez perceber André ―, auxilia nessa “costura” urbana.

Gente

Foliões próximo ao Museu de Arte Moderna da Bahia. Foto de Bárbara.

Foliões próximo ao Museu de Arte Moderna da Bahia. Foto de Bárbara.

Uma característica que me chamou muitíssima atenção na gente de Bahia nessa volta foi sua grande afeição ao eavesdrop, i.e., “ouvir de perto alguma conversa privada sem que os falantes notem” (dicionário Cambridge).

Fazê-lo, nesse caso, não é propriamente fofocar, mas estar atento ao entorno acústico, seja para se entreter, seja para se informar do espaço imediato. Os baianos, me parece, têm ouvidos apurados e facilidade de pegar as coisas no ar.

Dessa cultura, creio, é que nasce o melhor da literatura da Bahia. Gary Provost mesmo, autor do best-seller100 ways to improve your writing”, dedica uma bela seção só para falar dos benefícios do eavesdropping ao escritor.

Com frequência, enquanto eu conversava com alguns amigos soteropolitanos em um local fechado, eles acompanhavam mais de uma conversa que rolavam no mesmo recinto, sem entretanto perder o fio do que conversávamos ― e eu, que sou mais visual do que acústico, mal conseguia compreender o que acontecia em nossa mesa, tamanha a azáfama.

Por consequência, são gente de uma refinada educação oral. Interessam-se genuinamente pelo que alguém está falando, sem interrompê-lo. No Ceará, por outro lado, é comum a interrupção da fala do outro ou que mais de uma pessoa fale ao mesmo tempo. Isso é um traço cultural cearense e não tem nada a ver com educação. Mesmo em ambientes formais, é o que acontece.

Retorno

Detalhe de grade do Museu de Arte Moderna da Bahia. Foto de Bárbara.

Detalhe de grade do Museu de Arte Moderna da Bahia. Foto de Bárbara.

Fui a Salvador quase de improviso. Como viajar pelo ID Jovem não depende de minha vontade, mas sim da disponibilidade de vagas, tomei o primeiro ônibus que surgiu em novembro ― ingenuamente sem consultar Bárbara e André sobre suas disponibilidades.

O casal ― natural de Salvador, mas nessa cidade também de férias, como eu ― ocupava-se de outros afazeres, e tinha de muito heroicamente dividir a atenção a familiares, a mim e a outros amigos.

Seus sacrifícios eram notáveis e paulatinamente fizeram-se notar ainda mais. E como eu não estava a par de tudo, muitos desencontros e mal-entendidos surgiram. Pudemos, entretanto, sentar para conversar e acertar tudo. A partir dessa viagem tão longa, sinto que, só agora ― depois de adulto ―, aprendi o valor do diálogo, do amor, e da amizade.

Aprendi também a valorizar o andar sozinho em terra estrangeira. Não era toda a hora que eu poderia contar com a companhia de André. E havia lugares em que eu próprio gostaria de ir sozinho. O jeito, então, era tomar a minha própria mão e passear comigo mesmo.

O fato de se estar temporariamente em terra estrangeira, onde não tenho raízes e onde não sou conhecido, me deu uma sensação desafiadora de liberdade antes inconcebível.

O retorno me deu ganas de buscar explorar minha própria cidade, e me fez perceber que perdi o encanto que eu tinha por ela quando me mudei para cá em 2016, encanto que era ainda mais forte do que tive por Salvador durante esta viagem.

Durante a viagem de retorno decidi que, ao pôr os pés de volta na capital cearense, procuraria turistar como quando cheguei há oito anos. É inegável a dificuldade de ver novidade naquilo que nos é familiar. Como adverte o romancista francês Marcel Proust, “A imobilidade das coisas que nos cercam talvez lhes seja imposta (...) pela imobilidade de nosso pensamento perante elas”. Tudo em um átimo pode ser novo quando nos fazemos novos.

#cotidiano


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