A mitomania estrutural do futebol brasileiro
Após a última derrota acachapante da seleção brasileira masculina de futebol para a Argentina, em partida válida pelas Eliminatórias da Copa, ocorrida em 25 de março de 2025, fui pesquisar em portais conhecidos para ler opiniões sobre o ocorrido. Porém, o texto que me chamou a atenção foi publicado no mesmo dia da partida às 11h33 da manhã, ou seja, é anterior ao certame. A publicação tem autoria da jornalista Milly Lacombe e é entitulado Declarações de jogadores da seleção indicam por que Neymar virou um culto. Lacombe demonstra, de forma brilhante, como Neymar se tornou um mito, que representa algo de um passado mítico do futebol brasileiro que desejamos resgatar, mas ao mesmo tempo em que, em termos materiais, ele não é um jogador de futebol de elite, na prática, há pelo menos sete anos. Para reforçar a questão do mito, Lacombe exalta também o quanto transformamos artificialmente esse jogador num camisa 10, sendo que em sua melhor versão (entre 2015 e 2017), Neymar era um ponta esquerdo, agudo, driblador, ou seja, um camisa 11. Essa crença cega — por parte de jogadores, comissão técnica, e até parte da torcida e imprensa — em um mito, um culto, um herói que, sozinho, vai resgatar a mágica do futebol brasileira e nos trazer o hexa, me chamou a atenção para um descompasso entre o meio do futebol masculino (e seus muitos agentes) e a realidade concreta e material. Mas observando outros fatos, percebi que se trata de uma recorrência e não de um caso isolado.
Em minha opinião pessoal, Neymar é uma pessoa que usou o futebol para atingir seu objetivo verdadeiro, o de se tornar uma celebridade. No Brasil, um país com desigualdade social terminal e sérios problemas estruturais, é de se imaginar que as camadas populares desejem a mobilidade social. Sempre foi assim, inclusive. Para os mais pobres, historicamente, a música e o esporte foram caminhos mais pavimentados para isso, então é normal que, nesse contexto, jovens de origem popular se identifiquem com estrelas do esporte e da música, e sonhem com esse estrelato, para que tenham acesso ao que foi negado a eles: uma vida de conforto material. Isso inclusive é legítimo. Porém, o fenômeno da instagramação da vida distorce esse sonho legítimo, prometendo fama e fortuna para qualquer suposto reles mortal que conseguir seguidores, engajamento e joinhas. Um prato cheio para a juventude que sonha com uma vida melhor, que vê no Neymar como alguém que alcançou esse sucesso. É bom lembrar que o brasileiro passa, em média, 56% do seu tempo acordado em frente à telas de smartphones e computadores, e os aplicativos onde passa maior parte de seu tempo são todos da chamada big tech, sendo o Instagram o grande campeão, consumindo 35% desse tempo online. Trocando em miúdos, o brasileiro passa, em média, mais tempo em um mundo fictício moldado pela publicidade e pelo oligopólio do que lidando com a realidade concreta e material.
Essa instagramação da vida aprofunda um deslocamento com a realidade material, que culmina em fenômenos interligados: fake news, negacionismo climático e científico, mitomania recorrente de políticos e chefes de estado, entre outras coisas. Quando olhamos para a realidade social da maioria dos jogadores, é fácil notar (até pela cor de suas peles e pela textura de seus cabelos) que a maioria esmagadora veio das classes populares, mais suscetíveis a esses fenômenos, tendo o Instagram como uma das poucas formas acessíveis de lazer e entretenimento (já que a polícia brasileira mata jovens negros em bailes funk, melhor ficar vivo vendo Reels mesmo). Olhando por essa forma, fica factível compreender porque o fenômeno da extrema direita no Brasil tem grande lastro popular, e isso afeta esses jogadores, mesmo os que atuam na Europa. É relativamente comum ver jogadores brasileiros de futebol masculino se manifestando politicamente do lado da extrema direita. Um dos mais conhecidos nesse sentido é o ex-volante com passagem marcante pelo Palmeiras, Felipe Melo. Felipe Melo, um simbolo dessa bravataria viril, naturalmente aplaudiu as declarações de “porrada nos argentinos” dadas pelo atacante da seleção Raphinha no podcast do ex-atacante e ídolo da seleção Romário. O resultado, vexatório para Raphinha e para o futebol brasileiro, veio na forma de porrada simbólica no futebol praticado pelos argentinos na partida.
Engajamento, likes e número de seguidores, nas regras atuais do futebol, não alteram o placar de uma partida, atualmente são os gols que fazem isso. Mas ao invés de se concentrar em realizar um trabalho pé no chão para que os gols aconteçam, toda a cadeia do futebol brasileira dobra a aposta na bravata. Tite, um técnico de personalidade mais pragmática, procurou montar o time de forma sólida, olhando para a realidade do futebol brasileiro no mundo, colocou a seleção de forma honrosa no lugar compatível com seu futebol praticado: quartas de finais nas últimas duas Copas do Mundo, ou seja, entre as oito melhores seleções do mundo, um lugar decepcionante se pensarmos na história do futebol brasileiro, mas bem ok, se pensarmos na desorganização e estrutura desse mesmo futebol na atualidade. Mas pragmatismo e realidade não geram engajamento com essa população que passa metade de sua vida no Instagram, e o técnico Tite até hoje é extremamente impopular, sendo que os representantes do futebol arte no imaginário comum ainda são os integrantes da seleção de 2006 cujos heróis mitológicos, pasmem, alcançaram o mesmo resultado de Tite na Copa: quartas de final. Essa parcela da população, que venera 2006, é a mesma que espera que o Tigrinho ou alguma BET traga o hexa para nós.
Após o término do contrato de Tite, em 2022, o Brasil se organizou atrás de uma promessa, a vinda de Carlo Ancelotti para o comando da seleção. Para aguardar o término de contrato do italiano, colocou dois técnicos interinos no comando da amarelinha: inicialmente Ramón Menezes e, posteriormente, Fernando Diniz, ambos com resultados catastróficos. Diante da realidade material da renovação de contrato de Ancelotti com o Real Madrid, Ednaldo Rodrigues contrata Dorival Júnior, que assume o posto mobilizando o discurso do resgate desse futebol mítico, com a famigerada e desgastada cartada de valorização dos atletas que atuam no território nacional. Aproveitando o fato de que infelizmetne citei o famigerado personagem Ednaldo Rodrigues, é bom lembrar que foi recentemente reeleito presidente da CBF com declarações denominando como “triunfo da democracia” o pleito em que foi candidato único. Voltando à Dorival, alguns meses antes, em setembro de 2024, o técnico prometeu o Brasil na final da Copa do Mundo.
A bravata, a promessa e a ilusão (des)estruturam e (des)organizam o futebol brasileiro atualmente, que chegou a um nível de aprofundamento de sua natureza no entretenimento e escapismo à condição radical de inimigo da realidade material. Bem na época em que o futebol se torna mais racional, científico, onde se consolida na metrópole comercial e econômica, a Europa, o futebol dos dados, estatísticas, scouts e profissionais com conhecimento científico. O Brasil confirma sua vocação vira-latas e vai ficando para trás nesse quesito, e esperneia com a bravata de que nosso jeito de fazer as coisas ainda é melhor, na base do improviso, do talento, das soluções fáceis e da resolução através de um herói mítico individual. Em uma terra fértil para o pensamento coach (que curiosamente significa treinador esporivo em inglês), a bravata se torna método em todas as etapas da cadeia de trabalho do futebol masculino, desde o seu presidente (que é quem deveria dar o exemplo) ao garoto que está ingressando na categoria de base de um clube com sonho de jogar na Europa, passando por jogadores profissionais e comissões técnicas, são todos aliados nessa guerra contra a realidade material.
Tenho convicção de que não há solução: podem convocar para a seleção brasileira masculina de futebol apenas jogadores que atuam no Brasil, ou jogadores que atuam na Europa. Podem convocar jogadores cascudos ou bailarinos. Podem convocar jogadores medalhões ou desconhecidos. Podem contratar um técnico estrangeiro renomado. Podem contratar até um técnico de outro planeta. O problema não será resolvido. Porque o problema é cultural e está entranhado em raízes do senso comum do povo brasileiro, que tem sua percepção de realidade moldada pela big tech. No cenário atual nos resta continuar acompanhando esse defunto vivo, chamado seleção brasileira masculina de futebol, que morreu em 2014 no Mineirão, mas que para nosso desespero continua nos assombrando a cada data FIFA.
Espero que este texto tenha sido útil, até a próxima!
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