Somos 1,8 milhões de macumbeiros
Peço licença povaria!
A BBC News Brasil publicou uma matéria da jornalista Thais Carrança, analisando os dados do Censo 2022 relativos à religião. A manchete destaca o arrefecimento do crescimento evangélico, inédito desde 1960. Ao longo da matéria podemos também constatar que o Brasil nunca foi um país tão religiosamente diverso como no momento.
Mas a grande notícia para o povo do asé, é que as religiões de matriz africana (umbanda e o candomblé) mais do que triplicaram seu tamanho em relação ao censo anterior, obtendo o maior crescimento percentual dentre todas as religiões no Brasil. Se em 2010 éramos 525,6 mil, em 2022 subimos nosso número para 1,8 milhões, representando 1% da população brasileira. Trata-se de um número ainda pequeno, se comparado aos cristãos por exemplo (só de católicos são 100 milhões), mas não se trata de um número desprezível. 1,8 milhões de pessoas está num patamar parecido com a população da cidade de Curitiba e de países como Letônia, Kosovo e Bahrein.
Ao olhar com mais calma a matéria e os dados trazidos por ela, alguns pontos que me chamam a atenção:
Muitas pessoas que eram adeptas de religiões de matriz africana, mas antes se declaravam como católicas ou espíritas, passaram a afirmar sua religiosidade e ancestralidade. A própria matéria fala sobre isso no item 2, e o declínio no número de espíritas e católicos pode ser um indício que fortaleça esse argumento. Acho esse ponto particularmente positivo, pois apesar de todo o preconceito, racismo e intolerância religiosa que sofremos, as pessoas estão perdendo o medo de assumir suas identidades, o que é muito positivo. É muito provável que o número de adeptos de religiões de matriz africana não era de 525,6 mil na realidade concreta de 2010, certamente esse número estava subestimado;
No item 8 a matéria discute a escolaridade dos grupos religiosos. Os espíritas são de longe os mais escolarizados, 48% possuem nível superior, porém os adeptos de candomblé e umbanda vêm logo atrás, com 25,5%. Acredito que isso seja um reflexo da política de cotas raciais nas últimas décadas. Uma parcela da população passou a acessar a universidade pública, e passou a produzir discurso oficial. Muitas dessas pessoas encontraram um ambiente hostil nessas instituições, e precisaram se reconectar com suas negritudes justamente no espaço do terreiro. Formou-se uma nova classe média negra e parda, intelectualizada, que produz e consome conhecimento, informação e cultura afro-centradas. Esse engajamento intelectual e religioso da classe média negra nos terreiros acaba emprestando legitimidade e respaldo à causa, criando um ambiente em que mesmo as pessoas que não pertencem a essas classes médias negras passem a perder o medo de assumir sua religiosidade. Creio que esse mesmo fenômeno esteja conectado ao aumento de pessoas que se declaram como pretas e pardas, já que o debate em torno do letramento racial ganhou popularidade e capilaridade nos últimos anos;
Acredito que o número de adeptos de religiões de matriz africana pode até estar subestimado, já que existe uma grande zona cinzenta que é a categoria “Outras”, onde estão 7 milhões de brasileiros. Creio que muita gente pode ter se declarado como pertencente a religiosidades afro-brasileiras menos numerosas que o candomblé e a umbanda, como por exemplo: o culto tradicional iorubá Esin Orisa Ibilé (ao qual pertenço), o Terecô maranhense, a vertente cubana do culto de Ifá, entre muitas outras expressões espirituais africanas, afro-brasileiras e afro-indígenas. Por essa matéria, não conseguimos ainda dados mais precisos da categoria “Outros”, talvez valha a pena aguardar novas divulgações do IBGE com mais dados, para fazer uma nova análise.
Na condição de devoto do orixá, fico extremamente feliz com o crescimento, espero que seja um pequeno indício de que, apesar de tantos retrocessos que estamos passando com o avanço mundial da extrema direita, a semente de um mundo com maior diversidade cultural e religiosa começou a brotar.
Asé!
Espero que este texto tenha sido útil, até a próxima! Felipe Siles é pesquisador musical, educador e produtor cultural. Escrevo esta coluna voluntariamente, mas se quiser me pagar um cafezinho e contribuir para que eu escreva mais, segue minha chave pix: felipesilespix@protonmail.com
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