Brasil é um dos países que mais passa tempo nas telas porque a vida real aqui é insuportável
“Estou vendo que você, assim como tantos outros, descobriu os prazeres do Espelho de Ojesed. Imagino, que a essa altura, já sabe o que ele faz. Deixe-me lhe dar uma pista. O homem mais feliz do mundo iria olhar para o espelho e veria a si próprio, exatamente como ele é. (...) Ele nos mostra, nada mais, nada menos, do que os desejos mais profundos e desesperados dos nossos corações. (...) Lembre-se de uma coisa, Harry! Esse espelho não nos dá o conhecimento, nem a verdade. Muitos homens definharam diante dele, até enlouqueceram”. (Alvo Dumbledore no filme Harry Potter e a Pedra Filosofal, da famigerada e devidamente cancelada escritora transfóbica J.K.Rowling. Antes que me cancelem também, eu só gostaria de lembrar que até mesmo o relógio parado acerta a hora duas vezes ao dia.)
Já é sabido, por diversas fontes, que o Brasil é um país cujos habitantes passam horas e horas com o nariz metido em frente às telas. Seja pela simples observação cotidiana, no transporte público, espaços públicos ou até num círculo de amigos; ou seja recorrendo a fontes mais robustas de informação, conseguimos chegar facilmente a essa conclusão. Segundo matéria do Jornal da USP de 2023, o brasileiro passa em média 56% do seu tempo acordado em frente a telas. Já essa matéria do Metrópoles, de 2024, coloca o Brasil como segundo colocado do ranking mundial em relação a países que passam mais tempo online. Uma média de 9h13min, atrás apenas da África do Sul, com 9h24. Além disso, segundo reportagens, o Brasil é o segundo país que mais consome streaming no mundo (Metrópoles, 2021), o terceiro maior consumidor de redes sociais (Metrópoles, 2023) e o maior mercado gamer da América Latina (Techtudo, 2023).
Até agora vejo a questão ser interpretada numa chave moralista, do tipo: “o brasileiro não gosta de ler, não quer saber de estudos, só quer saber de celular” ou paternalista, no sentido de que “esse é o entretenimento que o povo gosta, a intelectualidade é que precisa se render aos hábitos populares e falar com a galera criando seu canal de divulgação científica no Instagram (nada contra, nada a favor também)”. O que eu venho propor é mais uma chave interpretativa: será que o fato de tantos rankings apontarem para uma convergência, que é o tempo médio gasto em escapismo digital, seja na verdade o sintoma e não a doença em si?
Estamos em uma sociedade profundamente e historicamente desigual. Durante muito tempo, o estudo e o trabalho foram a promessa de mobilidade social para uma população marginalizada. Gerações cresceram vendo seus avós, pais e tios se matando de estudar e trabalhar, sem alcançarem a promessa. Eles, no fundo sabem, que essa promessa contempla pouquíssimos, e sabem que o Estado brasileiro e as instituições em geral não estão nem aí para eles.
Soma-se a isso todas as camadas de violências contra alguns segmentos marginalizados. A título de exemplo e indício nesse sentido, existe uma matéria de 2023 do TechTudo, que informa que o maior percentual de gamers no Brasil são pessoas negras e pardas. A matéria supracitada no começo do texto sobre streamings, informa que o maior percentual de assinantes é de mulheres. Um episódio anedótico, mas quando estive em uma aldeia indígena em São Paulo, em idos de 2019, me chamou a atenção uma forte adesão dos jovens indígenas ao jogo de celular Free Fire, mas enfim, carece de dados mais detalhados e estudos mais aprofundados. Os idosos, que também são marginalizados e tiveram sua vida precarizada pelos ajustes e reformas na Previdência Social, são o público alvo preferido das milícias digitais, e é sabido que passam muito tempo no Whatsapp e Telegram, consumindo e disseminando conteúdos de extrema direita. Extrema direita essa conhecida por sua estética que flerta com o entretenimento de gosto duvidoso e seu discurso descolado da realidade material, ou seja, escapista.
O cenário brasileiro é tão desolador e o processo de precarização da vida está em estágios tão avançados, que eu acredito que essa tendência tende a se agravar. Esse cenário distópico é o paraíso para a extrema direita, e para os bravateiros e oportunistas de plantão, que vendem sonhos e ilusões, sejam promessas de emagrecimento, corpo perfeito, chip da beleza, enriquecimento através de esquemas de pirâmides, BETs, empreendedorismo e todo tipo de picaretagem e malandragem já conhecida por aí.
Para os governos e oligarquias é muito cômoda essa situação. Você não precisa gastar dinheiro com cultura, com parques, com entretenimento saudável, com segurança pública, se o jovem periférico está enfurnado em casa jogando Fortnite e rolando Reels do Instagram. Para a mãe desse garoto é melhor ele em casa no celular do que na rua correndo o risco de ser morto pelo tráfico, pela milícia ou pela polícia. O escapismo brasileiro não é questão de escolha, para algumas pessoas, é questão de vida ou morte.
Espero que este texto tenha sido útil, até a próxima! Felipe Siles é pesquisador musical, educador e produtor cultural. Escrevo esta coluna voluntariamente, mas se quiser me pagar um cafezinho e contribuir para que eu escreva mais, segue minha chave pix: felipesilespix@protonmail.com
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