Aprender muitas línguas não é ideia de Chirico! ― minha jornada como poliglota autodidata

Desde a infância me fascino pelo vário que é as línguas dos povos. Sempre me faltaram, no entanto, ferramentas para entendê-las. Por muito tempo tive por mim que aprender um idioma estrangeiro era para uma dada elite da qual nunca participei. Mas, depois de muita pesquisa, desde 2020 tenho aprendido inglês, espanhol e italiano. Em fins de 2023 comecei a estudar francês. Aprendi-os por conta própria, sem visitar aulas, nem receber tutoria particular.

Antes de relatar a minha experiência, quero explicar o título deste texto. Alguns de vocês devem ter torcido o nariz quando leram “poliglota” no topo. E com razão! “Poliglota” é um termo desses como “erudito”, “polímata”, “artista” ou alguma outra dessas palavras relativas e relativizadas, proibidas à autorreferenciação, já que só podem ser expressas por uma autoridade, mais “poliglota” ou mais “artista” do que aquele de quem se fala.

Ninguém é capaz de se olhar no espelho e falar seriamente de si para consigo, p. e., “sou um artista” sem que esboce um médio sorriso de autocomicidade ou cinismo contido (se você é capaz de fazê-lo sem rir, tenho uma má notícia, e, não, não tenho o contato de um bom psiquiatra). Segundo o nosso silencioso senso comum, ninguém pode ser por si um poliglota, alguém só pode aspirar a ser um poliglota.

Normas psicossociais à parte, “poliglota” não possui consenso de definição. Usemos um parâmetro quantitativo para o definir. Uma pessoa pode ser chamada de “poliglota” a partir do momento em que domina quantas línguas? Nos três dicionários que tenho em casa tem-se “pessoa que sabe várias línguas” e “pessoa que sabe ou fala muitas línguas”. O sítio do dicionário online Dicio, mais corajoso, diz que a partir do domínio de duas línguas estrangeiras é que alguém pode ser considerado um poliglota.

Evanildo Bechara, o famoso linguista brasileiro, costuma dizer que “devemos ser poliglotas em nossa própria língua”, isto é, termos consciência de nossa língua materna em toda a sua variedade por classe, por gênero, por idade etc. Essa é a definição de “poliglota” que endosso.

Para mim, há poliglotas que só falam uma língua estrangeira, porque a assumem em sua complexidade, em todas as suas variações, que percebem o peso que leva um sotaque ou uma palavra em um dado contexto.

A partir desse pressuposto, defendo que não é propriamente um poliglota aquele que vê as línguas como corpos estanques, entidade etérea de um povo, numa só variante, ou mesmo aquele que vê nelas uma mera utilidade: a língua para trabalhar no exterior, a língua para ler os papers para a pós-graduação, a língua para falar com parentes distantes etc. Para o poliglota a língua nunca é “para algo”, mas sim uma língua é sempre uma língua ― e basta.

O poliglota não tem uma competência, mas uma atitude. Ele é um curioso irremediável a respeito do estrangeiro, a ponto de querer apreender a fala deste em primeira mão ― e não o julga de modo algum. Um não poliglota separa as línguas entre “relevantes” ou “irrelevantes” por um parâmetro arbitrário, como o número de falantes ou a quantidade de artigos científicos numa plataforma acadêmica tal ou qual.

Para o meu irmão Anderson, é uma ideia de Chirico aprender o francês, pois esta tem poucos falantes, se a compararmos com o espanhol, p. e. Escapa-lhe, no entanto, a longeva história da língua francesa, sua influência sobre outros idiomas (inclusive sobre o português), ou mesmo a produção intelectual de seus falantes, sejam ex-colonizadores ou ex-colonizados, que faz com que ela seja não só uma língua de milhões no presente, mas de trilhões na história.

Encerrado este preâmbulo do qual eu não poderia correr, neste texto relatarei o meu percurso para aprender línguas, i. e., o método de aprendizado que adotei, os canais e os grupos que me auxiliaram, e a minha relação com elas antes, durante e depois da aquisição linguística. Espero que isto ajude àqueles que pretendem se aventurar no aprendizado de línguas ou àqueles que precisam de mais meios pelos quais estudá-las.

Inglês

Minha jornada com inglês inicia em 2019. Eu pelejava para aprendê-lo nesse período durante as horas vagas da minha graduação em Língua Portuguesa, com conversações entre colegas do curso de inglês. No entanto, a frequente correção de pronúncia (e sempre, sempre de pronúncia) me desanimava. Além disso, eu tinha uma implacável resistência ao inglês por não ter, naquele momento, o menor interesse pelos Estados Unidos (como se este fosse o único país anglófono!). Iria aprendê-la como passatempo e não tinha então um motivação razoável para seu estudo.

Vem 2020, o ano um da pandemia de Covid-19, e, consigo, vêm a reclusão doméstica, o isolamento social e, também, muito tempo livre. Precisava ocupar a cabeça. Se não me deprimi durante a pandemia, foi graças ao estudo de inglês.

Com o passar dos meses, conheço outras referências de países anglófonos. Senti vontades de ler, p. e., o Understanding Media, do teórico em comunicação canadense Marshall McLuhan, um best-seller a respeito do efeito dos meios de comunicação sobre a sociedade. Senti vontades de ler Dubliners, livro de contos do irlandês James Joyce. Além desses, durante esse período eu quis reler ABC of Reading, um longo ensaio do poeta estadunidense Ezra Pound a respeito da literatura anglófona, que eu lera traduzido anos antes, e que, no entanto, apresentava a maioria dos poemas em inglês. Decidi aprender a língua para tentar lê-los em texto original.

Agora eu tinha um “porquê” de aprendê-la, faltava o “como”. E esse “como”, que era o “estímulo compreensível” (Comprehensible Input), me foi apresentado por um vídeo que conheci em um fórum de discussão. Em lugar de explicá-lo, prefiro que vocês assistam ao vídeo por si mesmos (possui legendas em português):

Focado mais na aquisição de vocabulário contextualizado do que na de vocabulário “em estado de dicionário”, mais no prazer do que na disciplina, Comprehensible Input é o método de aprendizado ideal para estudantes autodidatas. Como é mostrado no vídeo acima, ela parte de uma hípotese de aquisição de linguagem apontada pelo linguista estadunidense Stephen Krashen, e foi muito divulgada pelo poliglota e youtubeiro canadense Steven Kaufmann, quem viria a ser a minha maior referência para o aprendizado de inglês.

Com Steve aprendi que uma das coisas mais importantes para desenvolver bem a escuta de um idioma é ouvi-lo por um voz agradável. Enquanto ele ensinava como aprender línguas, eu aprendia inglês ouvindo sua dicção impecável ― aprendizagem com meta-aprendizagem. Também com ele aprendi que é possível aprender no que ele chama de lazy mode (ou como se diz no Brasil, “por osmose”), com atividades que não exigem tanto foco e que me agradem, como assistir a vídeos na internet ou ouvir podcasts, o que me foi importante, porque eu detestava estudos à moda escolar, como fazer exercícios de fixação e revisar conteúdo.

Além dos livros que li, e de muita escuta de Steve Kaufmann, para aprender inglês revi alguns filmes de que gostava, assisti bastante a séries, sempre com legendas em inglês, como manda a cartilha Comprehensible Input. Às vezes lhes assistia até a contragosto, porque não sou muito de série, mas ao fim acabava gostando. Twilight Zone, The Office estadunidense e The Office britânico são algumas delas (e vamos combinar aqui que The Office britânico é bem mais consistente e criativo do que o estadunidense). Cofcof... Sigamos.

Espanhol

Em 2022, quando vi que era capaz de ler um livro em língua inglesa sem engasgar, decidi que já era hora de estudar espanhol ― parada obrigatória para estudantes falantes de línguas neolatinas.

Ignorante que era da cultura hispânica ou latino-americana, esperava muito pouco do estudo de espanhol ― y entonces me mordí la lengua. O carro-chefe desse estudo foi novamente a literatura: queria ler os escritores do el boom latinoamericano ― García Marquez, Jorge Luiz Borges, Julio Cortázar etc.

No entanto, eu precisava de outra mídia fonte de estudo que não fosse o livro ou o vídeo online, uma vez que, pouco antes, eu começara a trabalhar, tendo de usar transporte público por duas horas diárias. Ler em movimento dentro de uma topique debaixo de sol a pino, vocês sabem, ninguém merece! Além disso, na maior parte do tempo eu estava sem internet móvel, impossibilitado de assistir a vídeos.

A solução: podcasts. Logo de cara, numa pesquisa sobre programas de áudio da América Latina, conheci dois dos meus favoritos até hoje: El Hilo e Radio Ambulante. Ambos são iniciativas da rádio estatal estadunidense NPR, cuja maior parte da equipe é argentina. O primeiro faz reportagens semanais aprofundadíssimas sobre temas quentes do continente, e o segundo conta crônicas latino-americanas. O trabalho de sonoplastia dos dois é impecável. Só de ouvir a introdução do episódio semanal de El Hilo já me arrepio da cabeça aos pés!

A famigerada abertura aparece em 1:15.

Pelos dois programas gargalhei, chorei, me informei, até participei das enquetes de balanço de público, e só não contribuí com a iniciativa, porque, vocês sabem... estudante universitário etc. e tal. Mas acima de tudo me senti mais sintonizado com a minha “quebrada latino-americana” (como dizem os meninos do Xadrez Verbal, outro podcast de que gosto).

E o melhor desses programas é que oferecem as transcrições nos seus sites, que inclusive podem ser recebidos via RSS. No início, quando eu ainda não tinha me acostumado com a velocidade da fala hispânica e nem com o sotaque portenho, na maior parte do tempo estava lendo as transcrições enquando ouvia os episódios ― o que também faz parte da cartilha Comprehensible Input.

Dentre os youtubeiros que me auxiliaram no estudo de espanhol está o Spanish After Hours, canal da simpaticíssima, engraçadíssima, didática, carismática e (ai...) apaixonante Laura (seu nome fictício), que também segue o método Comprehensible Input, e cujos vídeos têm edições impecáveis. Infelizmente Laura tem publicado pouco desde o último ano. Mas o seu acervo já ajuda bastante estudantes iniciantes e intermediários.

Das séries em espanhol, assisti à Casa de Papel, a qual parei na segunda temporada (a sequência me pareceu indigerível), e também à Nada, série argentina de 2023 com participação de Robert De Niro.

A língua espanhola é hoje a língua estrangeira que mais utilizo, seja para me entreter ou me informar, seja para conversar com os imigrantes ou turistas hispanohablantes com que me esbarro nas ruas de Fortaleza.

Italiano

A língua italiana me foi um problema porque, apesar de ela me agradar muito, todas as minhas referências desse país eram não verbais: me agradava a sua arquitetura moderna e antiga, a sua pintura moderna e antiga e a sua música de concerto (instrumental). Seu cinema até poderia me auxiliar, mas ele é desde sempre muito sofisticado, e não o entender poderia me frustrar. Tentar ler livros sobre esses assuntos já no início do estudo seria precoce demais. E para completar, eu não conhecia de antemão nem um nome sequer da literatura italiana.

Ainda havia o agravante da Itália não ter uma grande cultura de compartilhamento na internet. Só para se ter ideia, encontrei o ensaio Saper vedere l'architettura, de Bruno Zevi, traduzido em todas as línguas por mim conhecidas: português, inglês e espanhol ― mas não em italiano.

Por muito tempo esse vácuo linguístico me atormentou. Até que um dia meu amigo Nelson me doou alguns gibis italianos traduzidos, como Tex Willer, Mágico Vento e Julia Kendall. Aí a ficha caiu: vi o quanto o trabalho quadrinista italiano era criativo! Olhei algumas reproduções dos quadrinhos originais. Seu texto era coloquial, mas não difícil de ser compreendido. Decidi então me concentrar nessa mídia para aprender italiano.

Pesquisei quadrinhos por alguns meses em portais de torrent. Como havia poucas sementes, encontrá-los exigiu um trabalho análogo ao da arqueologia e ao da agricultura (que vocês me perdoem o trocadilho). Dentre os disponíveis estavam Dylan Dog, Corto Maltese, além do já mencionado Tex. Além desses, em sebos encontrei uma edição caprichada de L'Uomo Ragno, versão italiana do Homem-Aranha.

Para fazer o “meio de campo” linguístico, segui o canal Learn Italian With Lucrezia, que não segue propriamente o Comprehensible Input, pois se concentra muito em gramática (Lucrezia é professora de formação), mas que publica vídeos em formato de vlog, em que mostra as cidades que ela visita, o que ajuda muitíssimo a agregar vocabulário.

Mais recentemente comecei também a acompanhar o canal do Youtube Daily Cogito e, pelo TikTok, o perfil @whitewhalecafe, dois canais em que se fala sobre filosofia ― aparentemente um dos temas preferidos da gente italiana. Dentre os filmes italinas dos quais gostei estão La Vitta è Bella e Cinema Paradiso.

Francês

Sinto que o aprendizado de francês será duro, mas fluido, uma vez que, desde muito cedo ouço falar da língua. Já no primeiro mês de estudo, eu era capaz de ler textos didáticos em francês sem engasgar. Além disso, conheço de antemão três outras muito influenciadas por ela: inglês, italiano e português. Quero ler Arthur Rimbaud, assistir ao Godard, folhear as Aventuras de Tintin, cantar as peças de Clément Janequin. Por enquanto, estou mais preocupado em adquirir vocabulário. Dois dos principais meios para tanto tem sido os vídeos de ensino de língua francesa, focados em vocabulário, com que me esbarro pelos reels do Instagram, e um canal do Youtube chamado French Comprehensible Input, do suiço Lucas.

O Clube Poliglota

O meu esforço contínuo durante meus estudos era de manter uma boa variedade de mídias de estudos, buscando meios de ler, ouvir e assistir em um idioma estrangeiro sobre os mais diversos temas. Falar em outra língua nunca foi uma prioridade para mim, até porque, como defende Steve Kaufmann, não é sequer necessário falar em outros idiomas para ser um poliglota ― basta compreendê-los. Mas assim era também porque, como estudante autodidata, eu não tinha incentivo externo para praticá-los.

Essa foi a situação até meados de 2023. Enquanto estava de férias na Serra Grande em julho daquele ano, pelo grupo de Whatsapp da minha graduação, recebo um print de uma notícia do jornal O Povo a respeito do Clube Poliglota, um encontro gratuito e não institucional para conversação em idiomas estrangeiros. Decido que, ao retornar a Fortaleza, faria uma visita a um de encontros que ocorriam semanalmente nas noites de sábado, numa praça de um bairro nobre fortalezense.

Desde então, os encontros semanais se tornaram um programa obrigatório para mim. Por conta da socialização com pessoas de todas as idades e nacionalidades, além de aprender organicamente durante os encontros, tenho recebido mais referências das línguas que estudo, e me sentido cada vez mais motivado a estudá-las.

Mais recentemente soube com coordenadores do Clube Poliglota que este é um projeto voluntário e internacional. A maioria das metrópoles brasileiras são contempladas com uma célula do CP, entre as quais estão São Luís, Salvador, Natal, São Paulo, Belo Horizonte, além de Fortaleza, cidade pioneira do projeto no Brasil, se não a primeira no país. Caso queira saber se a sua cidade possui uma célula ou pretende iniciar uma, entre em contato com alguns desses perfis de Instagram acima linkados.

So what? ¿Y ahora? Che cosa fare?

Ainda penso em aprender outras, as mais diferentonas que há: uma língua artificial, como esperanto; uma língua morta ou antiga, como o latim ou o grego antigo; e uma língua sem alfabeto romano, como o russo ou o chinês-mandarim. No entanto, pelo método que adotei, me esbarro na limitação de só poder estudar línguas verbais e com registro midiático. Pelo Comprehensible Input, eu enfrentaria sérios obstáculos se partisse para o estudo de uma língua não verbal, como LIBRAS, ou uma língua minoritária, como o tupi-guarani. Espero que com a experiência dos anos esta dúvida se sane, e os caminhos de novas línguas se abram para mim.

Decidi escrever este texto tanto como uma forma de introduzir aos interessados em aprendizado em línguas ou de auxiliar aqueles que necessitam de mais recursos de estudo. Mas também o escrevi para fazer uma homenagem a esta que tem sido minha atividade favorita dos últimos anos.

Por conta do estudo de línguas, me aprimorei como pessoa: eu que era tão introvertido, passei a me comunicar mais; criei novos hábitos, como assistir a séries, ler quadrinhos e ouvir podcasts; passei a valorizar mais as tecnologias de comunicação, que tem incentivado cada vez mais pessoas a aprender as coisas em geral, e os idiomas estrangeiros em especial; aprendi mais sobre a minha própria língua materna; ampliei minha perspectiva sobre o mundo por conta dos contatos que tive com estrangeiros etc., etc., etc.

Além disso gostaria ainda de fazer loas àqueles que, de longe, sem me conhecer e sem pedir nada em troca, mais me incentivaram a estudar idiomas estrangeiros. Thanks, Steve! Gracias, Laura! Ti ringrazio, Lucrezia! Merci, Lucas!

Colagem em grade 2x2 com quatro imagens. Na primeira, está o canadense Steve, um homem idoso branco e sem barba, de cabelo branco, vestindo casaco azul de zíper. Na segunda está a espanhola Laura, uma mulher jovem e branca, de cabelos castanhos curtos, vestindo uma regata cinza de alças. Na terceira, está a italiana Lucrezia, uma mulher jovem e branca, de cabelos longos e pretos, vestindo óculos de grau e uma camisa longa e branca com colarinho em detalhe preto. Na quarta está o suiço Lucas, um homem jovem branco e com barba rala, vestindo touca cinza e camiseta preta, e está segurando com as duas mãos uma página de folha onde está manuscrito “Lucas”. Todas as imagens são reproduções de vídeos de seus canais no Youtube.

#cotidiano


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