Ideias de Chirico

cotidiano

Imagem: desenho de Kurt Vonnegut. Fonte: Flashbak.com.

A quick one.

No começo do ano, abri este espaço como uma forma de desencanar minha escrita.

Ávido por escrever, mas cansado de enviar textos para zero pessoas pelo Instagram ― uma rede hostil by-design ao texto ―, e cansado de fazer textos na faculdade para uma só pessoa ler ― meu professor ―, vi no Fediverso uma vazão para meus textos.

Devo assumir que não estou satisfeito com a maneira com a qual isto tem caminhado. Não penso tanto em temas, nem em frequência de postagens ― é natural que um blogue não publique assiduamente ―, mas em estilística.

Uma de minhas preocupações quanto à forma é o problema de alinhar meu estilo ― naturalmente academicista e prolixo ― a temas ordinários ― rotina, tecnologia e arte ― com texto direcionado ao maior número de pessoas possível.

Ao abrir estas Ideias, me inspirei em blogues como os de Rodrigo Ghedin, de Kris De Decker e de Lionel Dricot, tanto visualmente ― todos em html quase puro ―, quanto estilisticamente: apesar de terem um estilo de escrita bem polido, são capazes de escrever de forma interessante para o público geral sobre o seu assunto principal ― tecnologia. Não estou confiante ainda de que estou neste caminho.

Ao fim e ao cabo, não sei sequer porque escrevo este blogue! De início, meu propósito era escrever ensaios. No entanto, cada vez mais me vejo distante desse gênero textual. No meu último texto mesmo, a fim de “ensaiar um ensaio”, fiz uma trapaça tremenda quanto às citações que, se vocês soubessem, ficariam enojados...

Além disso, gostaria de promover um canal de comunicação para o leitor geral destas Ideias. O Fediverso é muito receptivo ao que escrevo, no entanto gostaria de saber também o que pessoas que vêm de outros lugares têm a dizer. Tenho pensado em fazer o e-mail ser este canal. Falta saber só como provê-lo com segurança dentro da estrutura deste blogue.

É tudo. Espero que compreendam minha necessidade de expôr o que tem me passado, e que a experiência lance luz sobre como o superar.

#cotidiano


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Capa de “Clássico anticlássico”, de Giulio Carlo Argan.

Dos tempos em que cursei arquitetura, pelos idos de 2017, ainda lembro de um livrinho que a professora de História da Arte e Arquitetura recomendou como leitura complementar sobre Maneirismo. Tratava-se de “Clássico anticlássico”, do historiador italiano Giulio Carlo Argan.

Como já diz o seu subtítulo ― “O Renascimento de Bruneleschi a Bruegel” ―, “Clássico anticlássico” contempla a arte e a arquitetura do Renascimento e também do Maneirismo ― o entr'acte entre o Renascimento e o Barroco.

Mas não é sobre arte propriamente que quero escrever, mas sim desse precioso paradigma que Argan inaugurou: “Clássico anticlássico”. Clássico anticlássico! A tradição que nega a si, mas que, ao mesmo tempo, gira em torno de si. A tese-antítese ― sem síntese. Isso me evoca quase que instantaneamente aquela figura do cachorro que corre atrás do próprio rabo sem, no entanto, mordê-lo.

Em um certo prisma, podemos ler o “Clássico anticlássico” como o establishment que, com propósitos mais ou menos escusos, surge em momentos de crise como antiestablishment a fim de se afirmar como solução prática e definitiva para um problema estrutural e complexo. São os Collors, os Bolsonaros e os Mileis da vida.

Mas também, por outro prisma, entrevemos no paradigma do “clássico anticlássico” a genialidade do criador que soube manobrar uma cultura remota ao tempo presente sem lançar mão da nostalgia ou do reacionarismo estético, mas sim captar “de um belo olho velho a flama invicta” ― como escrevia o poeta Ezra Pound em um de seus Cantos. São os Joyces, os Chomskys e os Andrades ― “Passado é lição para refletir, não repetir”, é uma frase atribuída a um dos modernistas de 1922.

Como não sei se essas possibilidades de leitura do paradigma arganiano estão claras para o leitor, vou ilustrá-lo a seguir com alguns exemplos nos quais substituo “clássico” por outra palavra, exemplos que tenho coletado com o passar dos anos ou que me ocorreram durante a escrita deste texto. Lembrem-se, porém, que este é um work in progress, logo, eventualmente irei atualizar esta lista à medida que mais exemplos surgirem...

Clássicos anticlássicos: 1. arte antiarte: Marcel Duchamp; 2. político antipolítico: Jair Bolsanaro ― um “clássico anticlássico” por excelência; 3. música antimúsica: John Cage; 4. trabalhador antitrabalhador: o pobre de direita; 5. poesia antipoesia: Décio Pignatari e os demais concretistas; 6. intelectual anti-intelectual: Olavo de Carvalho; 7. prosa antiprosa: James Joyce em seu “Finnegans”; 8. brasileiro antibrasileiro: o brasileiro; 9. Estado antiEstado: Javier Milei, Collor de Mello, Margaret Thatcher etc., etc., etc. 10. homem anti-homem, branco antibranco, hétero anti-hétero etc.: o esquerdomacho.

Durante os tempos de isolamento social da Covid-19, no período de atos contra o então presidente Bolsonaro, rolava pela internet um template da Ação Antifascista, no qual as pessoas escreviam qualquer profissão, ocupação livre ou identidade específica seguida de “antifascista”. Desse template surgiu uma infinitude de memes do tipo “calvos antifascistas”, “agiotas antifascistas” e coisas que tais. Ocasionalmente surgiu um “fascista antifascista”. Como não consegui pensar em alguém que se enquadrasse nesse exemplo de “clássico anticlássico”, convido vocês a pensarem em um “fascista antifascista”.

(Continua...)

#cotidiano


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Imagem em preto e branco de um campo de futebol visto de trás das grades.

Campo de futebol no bairro Messejana de Fortaleza

Nos últimos meses tenho fotografado em preto e branco através de um esmartefone Motorola e20. O aparelho funciona perfeitamente bem e as fotos não passam por filtros ou edições. Não a princípio. Apenas as vejo em primeira mão por uma tela sem cores. Tenho experimentado usar meu aparelho com as cores de sua tela desativadas. Que se tenha claro desde já que fazê-lo não interfere no arquivo final da fotografia. Somente a visualização das fotos pelo esmartefone fica em preto e branco ― seu arquivo permanece em cores.

No link acima citado, do Manual do Usuário, há algumas razões que me convenceram de não usar meu aparelho com tela colorida. Em uma publicação futura, detalharei todas elas e também os benefícios práticos que obtive. Neste texto me concentrarei apenas na vivência de fotografar com essa configuração.


Somente a visualização das fotos pelo esmartefone fica em preto e branco ― seu arquivo permanece em cores.


Meus companheiros do Fediverso sabem que tenho um espaço dedicado para compartilhar fotos dentro do protocolo Activity Pub. Por ora, no entanto, gostaria de, além de expôr as imagens, discutir alguns efeitos que a ausência de cor provoca no processo de suas capturas.

Processo de “revelação”

Foto em preto e branco de um homem barbudo, de toca e camiseta pretas fumando em uma varanda cuja visão dá para os edifícios altos de uma cidade.

Rafaboy fumando em uma varanda do bairro Meireles de Fortaleza. Os edifícios e os corpos humanos caem bem em preto e branco.

Alguns dos efeitos imediatos de não ver a foto colorida imediatamente após a captura são a ritualização do processo fotográfico e a valorização das cores ― ou de sua ausência.

Nos primeiros dias, ao tirar uma foto pelo celular, eu ficava ansioso para subi-la para a nuvem, a fim de ver por outro dispositivo como ela ficava em cores.

Essa vivência de fotografar “às cegas”, sem ter ideia imediata do resultado final, me lembrou daqueles que trabalham com equipamentos fotográficos analógicos, que só podem ver o produto de seus cliques após semanas, meses ou mesmo anos, através de uma revelação dos filmes em sala escura.

Claro, ao contrário da revelação de filmes analógicos, o meu processo de “revelação” é gratuito, rápido e prático, dependendo só de outro dispositivo com uma tela colorida e ligado à nuvem ― já que evito ao máximo recolocar as cores no esmartefone.

No entanto, esse simples processo de retardamento de “revelação” faz com que eu me engaje integralmente no processo de fotografar, sem me importar tanto com o modo em que saiu a foto, mas me concentrando totalmente na sorte de poder registrar um momento que nunca mais se repetirá.


Ao ver a fotografia integralmente por outro dispositivo, suas cores vinham para mim como coisas inéditas.


Ao ver a fotografia integralmente por outro dispositivo, suas cores chegavam para mim como coisas inéditas. A partir daí, me caberia saber se valeria mais a pena compartilhá-la em cores ou sem elas.

Estetização do real

Imagem de uma visão panorâmica de edifícios em Fortaleza.

Noturnos também são uma boa pedida para imagens em preto e branco. Em fotos monocromáticas, o branco se torna figura (recebendo mais destaque) e o preto se torna fundo.

Desde que comecei a utilizar o celular sem cores, a vinculação entre realidade e reprodução do real arrefeceu-se de todo. Percebe-se com muito esforço que a nossa experiência com o mundo através do olho não coincide com nossa experiência mundana através de algum veículo.

Não vejo nisso, no entanto, um demérito para as tecnologias. Marshall McLuhan, em seu “Understanding Media” (1964), chama a atenção para a especificidade que os aparelhos eletrônicos têm de funcionarem como amplificadores de nossas faculdades corporais e mentais.

Ver uma paisagem natural por, por exemplo, um aparelho televisivo não embota nossa experiência de vê-la a olho nu, mas faz com que percebamos, através desse “amplificador visual”, atributos que não seriam perceptíveis de outro modo.

Nos frustramos ao ver que as fotos que tiramos não ficaram nem um pouco parecidas com a imagem que vemos a olho nu ― o que acontece 90% das vezes. Ao desligar as cores, me dei conta de como elas impactavam na minha percepção da realidade.

Me dei conta também de que a reprodução do real não deveria, a priori, emulá-lo talqualmente, mas que poderia, em vez disso, “vesti-lo”.

Bem, passada aquela primeira fase de ansiedade e estranhamento pela falta de cores, pouco a pouco, no entanto, fui aceitando essa natureza da tela, e, ocasionalmente, vendo sua beleza. Eventualmente, quando a foto está muito boa em preto e branco, não quero sequer saber de como ficou a sua versão colorida.

Temas

Foto em preto e branco de um homem de dreads, regata e chapéu chinês dançando. Ao fundo, um grande edifício.

Novamente Rafaboy posando. Desta vez, no Parque do Cocó de Fortaleza.

Há todo um culto em torno da fotografia monocromática. No entanto, fotografar em preto e branco não resulta em puro glamour em todos os temas. Há aqueles em que as cores devem de ser forçosamente invocadas. Somente fotografando sem cores me dei conta de que não é frequente encontrar por aí fotografias monocromáticas de comida ou de naturezas-mortas — o. s., frutas, plantas, louças ou legumes organizados em uma composição de fotografia ou pintura. Isso porque grande parte da beleza de uma comida está em sua cor.

Lembro de certa vez em que fotografei um conjunto de pedras sobre um tanque de peixes. Tirei, então, sua saturação a fim de que ficasse em branco e preto. Ao publicá-lo, algumas pessoas pensaram que aquilo se tratasse de um prato com carne. Me pareceu naquele momento que a natureza não foi feita para ser fotografada sem cores.

Tenho a impressão de que, em geral, a fotografia em preto e branco cai bem sobretudo a tudo aquilo que é obra do homem, tudo o que é ortogonal, composicional, rítmico: edifícios, campos de futebol, automóveis ou o próprio corpo humano. Além disso, como a cor foi extraída da fotografia, cabe a esta revelar texturas, pondo à disposição do olho os valores táteis das coisas.

Downgrading

Foto em preto e branco de um emaranhado de fios elétricos ligados a um poste de luz. O ângulo da foto é de baixo para cima.

A desorganização parece ser enfatizada pela ausência de cor.

Diz-se que, quando há o embotamento de algum dos sentidos, há o fortalecimento dos demais. Por exemplo, caso uma pessoa perca um pouco de sua visão, sua sensibilidade auditiva, por uma questão de sobrevivência, é catapultada. Tive uma experiência similar a esta quando realizei esse “downgrading” do dispositivo e passei a fotografar sem cores. Tive uma melhora em meu senso de reconhecimento de enquadramento e de texturas, estes que são atributos que as cores distraem.

Entrementes, me tornei mais paciente, uma vez que tinha de esperar pela “revelação” da foto, sem contar que vivi mais os momentos sem me preocupar tanto com a finalização dos registros. Acima de tudo senti o mundo de uma maneira diversa da que eu vivia até então, percebendo novos padrões de beleza visual.

#cotidiano #tecnologia


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Estas Ideias de Chirico estão organizadas em três grandes eixos:

#arte #cotidiano #tecnologia

Salvador, Cidade Baixa. Foto de Bárbara.

Salvador, Cidade Baixa. Foto de Bárbara.

Em plena era do avião e do veículo leve sobre trilhos, viajar longas distâncias por terra para alguns pode parecer uma bela de uma ideia de Chirico. Em minha condição de estudante e trabalhador em terra estrangeira, no entanto, viajar por esse meio era o que me estava à mão, já que sou contemplado pelo programa ID Jovem.

Por meio dele, pude viajar de Fortaleza para Salvador gratuitamente, tendo de pagar somente a taxa de embarque. Permaneci na capital baiana por duas semanas ― a última de janeiro e a primeira de fevereiro. Devi minha estadia ao querido casal de amigos soteropolitanos Bárbara, a “Bá”, e André, o “Dé”. Por ela ter uma redação de projeto de doutorado por fazer, ele é quem me acompanhou a maior parte dos dias.

Compartilho com vocês algumas impressões “a quente”, feitas no momento da viagem, que vêm de notas de um pequeno diário que levei na mochila. Depois, algumas impressões mais “a frio” de Salvador, percepções que escaparam durante a viagem, as quais não tive tempo de registrar ou que vieram com a distância do meu retorno. Intercalando-as, fotos que tirei pelo meu celular ou que Bárbara tirou em sua câmera digital, além de estáticos de vídeos que fiz pela cidade.

Notas a quente

24 de janeiro (quarta-feira): Em um ônibus Guanabara de dois andares, passo por Rio Grande do Norte, Paraíba, Sergipe. Nas três paradas consecutivas, sinto que a natureza e as gentes suas não são diferentes das do Ceará. Mesmo o sotaque da gente paraibana, da parte de onde parei, lembra um pouco o sotaque da Costa Norte, do oeste e norte cearenses. O Nordeste é tão diverso... Por que manter esse mito de unidade, de cactos e sóis imóveis?

25 de janeiro (quinta-feira): Em Salvador, no Parque da Cidade com Dé. Bárbara “Suei” ficou em casa enquanto passeamos. O tempo está nublado, e há na cidade um quê paulista.

26 de janeiro (sexta-feira): Em SESC Nazaré, ainda em Salvador. Dormi em casa de Alex Simões, um poeta local que eu conhecera em 2021, pelo curso de Poesia Expandida. Ontem fomos ao Pelourinho com Clarisse Lyra, outra poeta de Salvador, e apareceram também Augusto, um pesquisador de Jorge Amado ― gaúcho ―, Camila ― paulista ―, e Mateus ― carioca ―, também escritor. Tive de sair da casa de Alex, pois não poderia ficar comigo. Mato o tempo até as duas da tarde, quando Dé poderá me pegar.

27 de janeiro (sábado): Pelo Pelourinho com Carol. Era noite. Luzes quentes e baixas das tradicionais arandelas de rua. (...) Sobre as escadarias da Fundação Jorge Amado, falou de seu contínuo resgate a antepassados indígenas. Sua fala cantada ― brilhante. Falou a certa volta: “Não tenho medo de morrer (...), mas tenho medo de esquecer o que vivi” (...).

Post scriptum: Carol foi quem me recebeu na primeira vez em que fui a Salvador, em 2019. Nesta volta, levei-lhe alguns mimos cearenses, entre os quais Sequilhos ― biscoitos de leite em pó ―, pedaços de rapadura de amendoim, uma lata do refrigerante de caju São Geraldo, e um cartão-postal da Praia de Iracema, de Fortaleza.

28 de janeiro (domingo): Fui almoçar com Dé e Bá na UFBA. Lugar incrível. É inconcebível como são capazes de fornecer almoço aos domingos. (...)

29 de janeiro (segunda-feira): No Passeio Público com Dé. (...) À noite, saímos eu, Dé, Bá, Luísa e Pedro Sol para um restaurante indiano-árabe-oriental.

Post scriptum: Este restaurante chama-se Pasárgada e fica no bairro Rio Vermelho, próximo (ma non troppo) da Casa de Iemanjá, onde ocorre o famoso cortejo anual à Iemanjá, a todo 2 de fevereiro.

30 de janeiro (terça-feira): No Museu de Arte Contemporânea fui violentamente censurado por um turista (...) por eu ter tocado numa peça que era sonora. Isso, por habilidade de Dé, não acabou nosso passeio. Comemos uma empadinha de doce de leite numa padaria onde tivemos o melhor atendimento possível; conversamos em inglês com dois londrinos num bar de beco; descemos a Ladeira da Barra vendo a Baía de Todos-os-Santos bem na hora dourada, chegando às proximidades do Farol ao pôr-do-sol.

31 de janeiro (quarta-feira): Eu, Bá e Dé saímos em disparada para um cinema às 12:00, onde haveria a projeção de “Il sol dell'avvenire” às 13:00. Iríamos lhe assistir com Vinícius e Gabriel. Almoçamos de improviso algumas marmitas no Shopping Paseo. Dé quebrava as talheres [de plástico] de minuto a minuto. Comi à parmegiana ― saudades de meu pai. Mais tarde nós meninos fomos ao Lago dos Patos, em Pituba ― Bá ficara em casa para escrever. Logo depois, a pegamos e saímos a um restaurante chinês. Nos empanturramos de yakissoba!

1 de fevereiro (quinta-feira): Andei sozinho por um tempo durante a manhã. Pela tarde eu e Dé fomos ao Mercado Modelo ― lembra-me muito das feiras artesanais de Fortaleza. Lá comprei uma camiseta do Olodum e um ímã com uma gravura do Elevador Lacerda, por onde subimos até a Cidade Alta. Era já hora de pôr-do-sol. A Baía de Todos-os-Santos resplandescia. O céu partia-se em laranjas, amarelos e gris. Logo depois, o brilho das cidades ao horizonte. Por fim, tomamos uns copos de cerveja num Bar do Pelô. Dé é um grande amigo!

Crepúsculo a partir da Cidade Alta. Estático de um vídeo.

Crepúsculo a partir da Cidade Alta. Estático de um vídeo.

2 de fevereiro (sexta-feira): Festa de Iemanjá. Dé, Bá e eu acordamos cedinho. Não pudemos ver a partida do cortejo. (...) Pudemos fazer oferendas. Comemos. Almocei fora bem baratinho. Caminho um pouco sozinho. Voltei para casa ensopado e trombei com Vinícius e Gabriel, que saíam para a Barra, onde tomamos sorvete e coco! Pela noite nos encontramos no Rio Vermelho para comer acarajé. Por conta das festas profanas, lá estava um caos.

3 de fevereiro (sábado): Passo o dia sozinho. Bárbara e André ficam em suas casas a fim de finalizar os trabalhos dela. Decido ir à Avenida 7 de setembro para comprar sandálias (as minhas anteriores quebraram durante a Festa de Iemanjá), e “Capitães de Areia”. Compro as sandálias, mas não encontro um sebo aberto sequer. Como estava próximo ao Elevador Lacerda, decido descer à Cidade Baixa. Acabo comprando um chapeuzinho chinês.

Post scriptum: Este chapéu estava em moda naquele momento. Comprei-o porque tinha certeza de que não o encontraria outra vez com facilidade.

4 de fevereiro (domingo): Eu, Dé e Bá almoçamos no Shopping Salvador. (...) Lá haveria um encontro extraordinário do Clube Poliglota local. Falei em inglês com Suzy, em espanhol com Leandro, e em italiano com Gerlon. (...) Mais tarde, eu e Bá fomos ao Museu de Arte Moderna da Bahia. Visitamos a exposição de Walter Firmo e fotografamos o edifício.

Post scriptum: “extraordinário” aqui no sentido de “fora do programado”. Os encontros do CP de Salvador ordinariamente ocorrem aos sábados. No entanto, no primeiro sábado em que estive na cidade, caiu um toró, e no segundo, começavam os preparativos para o carnaval, o que inviabilizava qualquer outra coisa que não a folia.

Foto de Bárbara tiradas por mim na Praia da Gamboa, próxima ao Museu de Arte Moderna da Bahia.

Foto de Bárbara tiradas por mim na Praia da Gamboa, próxima ao Museu de Arte Moderna da Bahia.

5 de fevereiro (segunda-feira): Quando o carnaval está prestes, Salvador prepara tapumes defronte a suas fachadas e muros ― qual estivesse se preparando para uma batalha prevista. Tudo aqui é belo, e tudo aqui é interessante ― mesmo as favelas e mesmo os bairros nobres mais exclusivos ―, mas, (...) tudo é caro, (...) e não há o menor espaço para o ciclista. Não retornarei a Salvador enquanto eu for um estudante pobre.

6 de fevereiro (terça-feira): (...) O ônibus partiria às 8:30. Carol prometera estar lá às 8:00, mas seu metrô atrasou. Carol pisou na plataforma assim que o ônibus manobrava para partir. Sequer pude vê-la. (...) chorei (...). Carol prometeu viajar a Fortaleza em junho.

Notas a frio

Travessia

Brilhar pra sempre,/ brilhar como um farol,/ brilhar com brilho eterno,/ gente é pra brilhar

“Brilhar pra sempre,/ brilhar como um farol,/ brilhar com brilho eterno,/ gente é pra brilhar”, Vladímir Maiakóvski. Foto minha do Farol da Barra.

Lembro-me de uma certa anedota que ouvi do meu amigo serragrandense Nelson. Ele me falava de uma caravana de monges orientais que levavam sete dias na travessia entre uma montanha e outra. Ao fim dessa peregrinação, realizavam uma habitual missão espiritual.

Um engenheiro inglês que viajava pela região, vendo a situação de aparente dificuldade, ofereceu-se-lhes para construir uma ponte da última tecnologia europeia.

Com esse suporte, a peregrinação, que durava sete dias, agora poderia durar apenas dois. Os monges contestaram-no: “Mas de que outra forma poderemos conversar e meditar durante os cinco dias que nos restariam?” Para esses peregrinos, o que interessava não era o destino, mas a travessia.

A vantagem de se viajar por terra é que o atrito com o espaço faz com que se conheça mais do espaço pelo qual se viaja. Parece óbvio, mas em um trajeto por terra de uma hora partindo de um ponto A a um ponto B, um viajante conhece muito mais de A-B do que outro viajante que viaja pelo mesmo trajeto em um mágico tempo de ― digamos ― vinte minutos. Assim, a viagem é cômoda e conveniente, mas, por consequência, previsível.

Já por terra, há mais fricção. Diz algum teórico da comunicação (ou algum marxista): só há informação nas diferenças. Pela fricção, a dialética. Pela fricção, o outro. Pela fricção, o novo.

Na trajetória entre Fortaleza e Salvador, cruzei os estados do Rio Grande do Norte, Paraíba, Sergipe e, claro, Bahia. A cada parada dessa longa viagem de pouco mais de um dia de duração, eu ouvia um sotaque diferente, comia uma comida diversa, via uma paisagem distinta da anterior.

Cruzar o Brasil nordestino por terra é ver desabar o folclore forjado aqui e alhures de um Nordeste homogêneo. Claro, como foi registrado na nota “quente” do dia 24 de janeiro, vez ou outra eu (ou)via o meu povo em outro povo ― o que me surpreendia, pois eram semelhanças que eu não esperava encontrar. Mas mesmo essas semelhanças reforçam a diversidade nordestina, pois fogem das caricaturas de Nordeste.

Terra

Interior baiano. Estático de um vídeo meu.

Interior baiano. Estático de um vídeo.

Atravesso as matas baianas que, imagino, encontram-se próximas do litoral. Daí a algumas horas, chego a Salvador. Essa paisagem rural evoca aquela de “Grande Sertão: Veredas”, romance do mineiro João Guimarães Rosa. Não por acaso: se não falseio, aquela era a região ao sul de Bahia, fronteiriça com Minas Gerais, onde também acontece o romance rosiano.

De minha janela avultam buritizais, mata miúda e verde, eventualmente carnaubais, tortas veredas, cancelas branquinhas, pequenas casas de largos beirais. Emoldurando essa paisagem, um tempo extraordinariamente nublado, que durou os três primeiros dias em que estive em Salvador.

Cidade

Elevador Lacerda. Foto de Bárbara.

Elevador Lacerda. Foto de Bárbara.

Como relatado na nota “quente” do dia 25 de janeiro, havia àquele dia nessa cidade uma atmosfera paulista. Salvador é, contrariando desde 2019 minhas espectativas, uma cidade cosmopolita. Salvador é, como São Paulo, uma antena do mundo ― e também um porto do mundo. Não à toa, há um grande intercâmbio entre a gente paulistana e a gente baiana.

Nas duas cidades predomina o carro, a geografia acidentada e imprevisível desenha as ruas, viadutos e linhas de metrô arranham os arranha-céus. No entanto, em São Paulo é possível lobrigar, aos poucos, uma cidade feita para o pedestre, há uma presença considerável e a contrapelo da bicicleta, e uma reivindicação pelo transporte não motorizado e público.

Por outro lado, nada disso é visível em Salvador. Aqui, o carro engoliu por completo as ruas que, apesar de curvas e feitas inicialmente à medida do pé, acomodaram-se totalmente ao corpo do automóvel.

Em todos os meus trajetos por Salvador, percebo uma “costura” entre os edifícios e entre os bairros, que falta a maioria das grandes cidades que visitei ou morei, como Fortaleza. Nesta, há uma quebra brusca entre o que é, digamos, Messejana e Bairro de Fátima, ou Mucuripe e Meireles; entre todas há portais, sinais claros do término e do início de tudo. Por vezes, até a sensação de clima muda, as gentes mudam, e, ato contínuo, a cultura muda. Há Fortalezas em Fortaleza. E há, em Fortaleza, fortalezas ― semióticas.

Já não o é em Salvador. Há entre todas as regiões soteropolitanas uma firme coesão; uma mal anuncia a outra; sabe-se, quase que por mágica, quando o bairro Graça passa a ser o bairro Canela, ou quando o Pelourinho passa a ser Santo Antônio Além do Carmo ― uma sensibilidade que custa ao viajante assimilar. O fato de que, para cada bairro nobre, há uma periferia “pendurada” ― como me fez perceber André ―, auxilia nessa “costura” urbana.

Gente

Foliões próximo ao Museu de Arte Moderna da Bahia. Foto de Bárbara.

Foliões próximo ao Museu de Arte Moderna da Bahia. Foto de Bárbara.

Uma característica que me chamou muitíssima atenção na gente de Bahia nessa volta foi sua grande afeição ao eavesdrop, i.e., “ouvir de perto alguma conversa privada sem que os falantes notem” (dicionário Cambridge).

Fazê-lo, nesse caso, não é propriamente fofocar, mas estar atento ao entorno acústico, seja para se entreter, seja para se informar do espaço imediato. Os baianos, me parece, têm ouvidos apurados e facilidade de pegar as coisas no ar.

Dessa cultura, creio, é que nasce o melhor da literatura da Bahia. Gary Provost mesmo, autor do best-seller100 ways to improve your writing”, dedica uma bela seção só para falar dos benefícios do eavesdropping ao escritor.

Com frequência, enquanto eu conversava com alguns amigos soteropolitanos em um local fechado, eles acompanhavam mais de uma conversa que rolavam no mesmo recinto, sem entretanto perder o fio do que conversávamos ― e eu, que sou mais visual do que acústico, mal conseguia compreender o que acontecia em nossa mesa, tamanha a azáfama.

Por consequência, são gente de uma refinada educação oral. Interessam-se genuinamente pelo que alguém está falando, sem interrompê-lo. No Ceará, por outro lado, é comum a interrupção da fala do outro ou que mais de uma pessoa fale ao mesmo tempo. Isso é um traço cultural cearense e não tem nada a ver com educação. Mesmo em ambientes formais, é o que acontece.

Retorno

Detalhe de grade do Museu de Arte Moderna da Bahia. Foto de Bárbara.

Detalhe de grade do Museu de Arte Moderna da Bahia. Foto de Bárbara.

Fui a Salvador quase de improviso. Como viajar pelo ID Jovem não depende de minha vontade, mas sim da disponibilidade de vagas, tomei o primeiro ônibus que surgiu em novembro ― ingenuamente sem consultar Bárbara e André sobre suas disponibilidades.

O casal ― natural de Salvador, mas nessa cidade também de férias, como eu ― ocupava-se de outros afazeres, e tinha de muito heroicamente dividir a atenção a familiares, a mim e a outros amigos.

Seus sacrifícios eram notáveis e paulatinamente fizeram-se notar ainda mais. E como eu não estava a par de tudo, muitos desencontros e mal-entendidos surgiram. Pudemos, entretanto, sentar para conversar e acertar tudo. A partir dessa viagem tão longa, sinto que, só agora ― depois de adulto ―, aprendi o valor do diálogo, do amor, e da amizade.

Aprendi também a valorizar o andar sozinho em terra estrangeira. Não era toda a hora que eu poderia contar com a companhia de André. E havia lugares em que eu próprio gostaria de ir sozinho. O jeito, então, era tomar a minha própria mão e passear comigo mesmo.

O fato de se estar temporariamente em terra estrangeira, onde não tenho raízes e onde não sou conhecido, me deu uma sensação desafiadora de liberdade antes inconcebível.

O retorno me deu ganas de buscar explorar minha própria cidade, e me fez perceber que perdi o encanto que eu tinha por ela quando me mudei para cá em 2016, encanto que era ainda mais forte do que tive por Salvador durante esta viagem.

Durante a viagem de retorno decidi que, ao pôr os pés de volta na capital cearense, procuraria turistar como quando cheguei há oito anos. É inegável a dificuldade de ver novidade naquilo que nos é familiar. Como adverte o romancista francês Marcel Proust, “A imobilidade das coisas que nos cercam talvez lhes seja imposta (...) pela imobilidade de nosso pensamento perante elas”. Tudo em um átimo pode ser novo quando nos fazemos novos.

#cotidiano


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Desde a infância me fascino pelo vário que é as línguas dos povos. Sempre me faltaram, no entanto, ferramentas para entendê-las. Por muito tempo tive por mim que aprender um idioma estrangeiro era para uma dada elite da qual nunca participei. Mas, depois de muita pesquisa, desde 2020 tenho aprendido inglês, espanhol e italiano. Em fins de 2023 comecei a estudar francês. Aprendi-os por conta própria, sem visitar aulas, nem receber tutoria particular.

Antes de relatar a minha experiência, quero explicar o título deste texto. Alguns de vocês devem ter torcido o nariz quando leram “poliglota” no topo. E com razão! “Poliglota” é um termo desses como “erudito”, “polímata”, “artista” ou alguma outra dessas palavras relativas e relativizadas, proibidas à autorreferenciação, já que só podem ser expressas por uma autoridade, mais “poliglota” ou mais “artista” do que aquele de quem se fala.

Ninguém é capaz de se olhar no espelho e falar seriamente de si para consigo, p. e., “sou um artista” sem que esboce um médio sorriso de autocomicidade ou cinismo contido (se você é capaz de fazê-lo sem rir, tenho uma má notícia, e, não, não tenho o contato de um bom psiquiatra). Segundo o nosso silencioso senso comum, ninguém pode ser por si um poliglota, alguém só pode aspirar a ser um poliglota.

Normas psicossociais à parte, “poliglota” não possui consenso de definição. Usemos um parâmetro quantitativo para o definir. Uma pessoa pode ser chamada de “poliglota” a partir do momento em que domina quantas línguas? Nos três dicionários que tenho em casa tem-se “pessoa que sabe várias línguas” e “pessoa que sabe ou fala muitas línguas”. O sítio do dicionário online Dicio, mais corajoso, diz que a partir do domínio de duas línguas estrangeiras é que alguém pode ser considerado um poliglota.

Evanildo Bechara, o famoso linguista brasileiro, costuma dizer que “devemos ser poliglotas em nossa própria língua”, isto é, termos consciência de nossa língua materna em toda a sua variedade por classe, por gênero, por idade etc. Essa é a definição de “poliglota” que endosso.

Para mim, há poliglotas que só falam uma língua estrangeira, porque a assumem em sua complexidade, em todas as suas variações, que percebem o peso que leva um sotaque ou uma palavra em um dado contexto.

A partir desse pressuposto, defendo que não é propriamente um poliglota aquele que vê as línguas como corpos estanques, entidade etérea de um povo, numa só variante, ou mesmo aquele que vê nelas uma mera utilidade: a língua para trabalhar no exterior, a língua para ler os papers para a pós-graduação, a língua para falar com parentes distantes etc. Para o poliglota a língua nunca é “para algo”, mas sim uma língua é sempre uma língua ― e basta.

O poliglota não tem uma competência, mas uma atitude. Ele é um curioso irremediável a respeito do estrangeiro, a ponto de querer apreender a fala deste em primeira mão ― e não o julga de modo algum. Um não poliglota separa as línguas entre “relevantes” ou “irrelevantes” por um parâmetro arbitrário, como o número de falantes ou a quantidade de artigos científicos numa plataforma acadêmica tal ou qual.

Para o meu irmão Anderson, é uma ideia de Chirico aprender o francês, pois esta tem poucos falantes, se a compararmos com o espanhol, p. e. Escapa-lhe, no entanto, a longeva história da língua francesa, sua influência sobre outros idiomas (inclusive sobre o português), ou mesmo a produção intelectual de seus falantes, sejam ex-colonizadores ou ex-colonizados, que faz com que ela seja não só uma língua de milhões no presente, mas de trilhões na história.

Encerrado este preâmbulo do qual eu não poderia correr, neste texto relatarei o meu percurso para aprender línguas, i. e., o método de aprendizado que adotei, os canais e os grupos que me auxiliaram, e a minha relação com elas antes, durante e depois da aquisição linguística. Espero que isto ajude àqueles que pretendem se aventurar no aprendizado de línguas ou àqueles que precisam de mais meios pelos quais estudá-las.

Inglês

Minha jornada com inglês inicia em 2019. Eu pelejava para aprendê-lo nesse período durante as horas vagas da minha graduação em Língua Portuguesa, com conversações entre colegas do curso de inglês. No entanto, a frequente correção de pronúncia (e sempre, sempre de pronúncia) me desanimava. Além disso, eu tinha uma implacável resistência ao inglês por não ter, naquele momento, o menor interesse pelos Estados Unidos (como se este fosse o único país anglófono!). Iria aprendê-la como passatempo e não tinha então um motivação razoável para seu estudo.

Vem 2020, o ano um da pandemia de Covid-19, e, consigo, vêm a reclusão doméstica, o isolamento social e, também, muito tempo livre. Precisava ocupar a cabeça. Se não me deprimi durante a pandemia, foi graças ao estudo de inglês.

Com o passar dos meses, conheço outras referências de países anglófonos. Senti vontades de ler, p. e., o Understanding Media, do teórico em comunicação canadense Marshall McLuhan, um best-seller a respeito do efeito dos meios de comunicação sobre a sociedade. Senti vontades de ler Dubliners, livro de contos do irlandês James Joyce. Além desses, durante esse período eu quis reler ABC of Reading, um longo ensaio do poeta estadunidense Ezra Pound a respeito da literatura anglófona, que eu lera traduzido anos antes, e que, no entanto, apresentava a maioria dos poemas em inglês. Decidi aprender a língua para tentar lê-los em texto original.

Agora eu tinha um “porquê” de aprendê-la, faltava o “como”. E esse “como”, que era o “estímulo compreensível” (Comprehensible Input), me foi apresentado por um vídeo que conheci em um fórum de discussão. Em lugar de explicá-lo, prefiro que vocês assistam ao vídeo por si mesmos (possui legendas em português):

Focado mais na aquisição de vocabulário contextualizado do que na de vocabulário “em estado de dicionário”, mais no prazer do que na disciplina, Comprehensible Input é o método de aprendizado ideal para estudantes autodidatas. Como é mostrado no vídeo acima, ela parte de uma hípotese de aquisição de linguagem apontada pelo linguista estadunidense Stephen Krashen, e foi muito divulgada pelo poliglota e youtubeiro canadense Steven Kaufmann, quem viria a ser a minha maior referência para o aprendizado de inglês.

Com Steve aprendi que uma das coisas mais importantes para desenvolver bem a escuta de um idioma é ouvi-lo por um voz agradável. Enquanto ele ensinava como aprender línguas, eu aprendia inglês ouvindo sua dicção impecável ― aprendizagem com meta-aprendizagem. Também com ele aprendi que é possível aprender no que ele chama de lazy mode (ou como se diz no Brasil, “por osmose”), com atividades que não exigem tanto foco e que me agradem, como assistir a vídeos na internet ou ouvir podcasts, o que me foi importante, porque eu detestava estudos à moda escolar, como fazer exercícios de fixação e revisar conteúdo.

Além dos livros que li, e de muita escuta de Steve Kaufmann, para aprender inglês revi alguns filmes de que gostava, assisti bastante a séries, sempre com legendas em inglês, como manda a cartilha Comprehensible Input. Às vezes lhes assistia até a contragosto, porque não sou muito de série, mas ao fim acabava gostando. Twilight Zone, The Office estadunidense e The Office britânico são algumas delas (e vamos combinar aqui que The Office britânico é bem mais consistente e criativo do que o estadunidense). Cofcof... Sigamos.

Espanhol

Em 2022, quando vi que era capaz de ler um livro em língua inglesa sem engasgar, decidi que já era hora de estudar espanhol ― parada obrigatória para estudantes falantes de línguas neolatinas.

Ignorante que era da cultura hispânica ou latino-americana, esperava muito pouco do estudo de espanhol ― y entonces me mordí la lengua. O carro-chefe desse estudo foi novamente a literatura: queria ler os escritores do el boom latinoamericano ― García Marquez, Jorge Luiz Borges, Julio Cortázar etc.

No entanto, eu precisava de outra mídia fonte de estudo que não fosse o livro ou o vídeo online, uma vez que, pouco antes, eu começara a trabalhar, tendo de usar transporte público por duas horas diárias. Ler em movimento dentro de uma topique debaixo de sol a pino, vocês sabem, ninguém merece! Além disso, na maior parte do tempo eu estava sem internet móvel, impossibilitado de assistir a vídeos.

A solução: podcasts. Logo de cara, numa pesquisa sobre programas de áudio da América Latina, conheci dois dos meus favoritos até hoje: El Hilo e Radio Ambulante. Ambos são iniciativas da rádio estatal estadunidense NPR, cuja maior parte da equipe é argentina. O primeiro faz reportagens semanais aprofundadíssimas sobre temas quentes do continente, e o segundo conta crônicas latino-americanas. O trabalho de sonoplastia dos dois é impecável. Só de ouvir a introdução do episódio semanal de El Hilo já me arrepio da cabeça aos pés!

A famigerada abertura aparece em 1:15.

Pelos dois programas gargalhei, chorei, me informei, até participei das enquetes de balanço de público, e só não contribuí com a iniciativa, porque, vocês sabem... estudante universitário etc. e tal. Mas acima de tudo me senti mais sintonizado com a minha “quebrada latino-americana” (como dizem os meninos do Xadrez Verbal, outro podcast de que gosto).

E o melhor desses programas é que oferecem as transcrições nos seus sites, que inclusive podem ser recebidos via RSS. No início, quando eu ainda não tinha me acostumado com a velocidade da fala hispânica e nem com o sotaque portenho, na maior parte do tempo estava lendo as transcrições enquando ouvia os episódios ― o que também faz parte da cartilha Comprehensible Input.

Dentre os youtubeiros que me auxiliaram no estudo de espanhol está o Spanish After Hours, canal da simpaticíssima, engraçadíssima, didática, carismática e (ai...) apaixonante Laura (seu nome fictício), que também segue o método Comprehensible Input, e cujos vídeos têm edições impecáveis. Infelizmente Laura tem publicado pouco desde o último ano. Mas o seu acervo já ajuda bastante estudantes iniciantes e intermediários.

Das séries em espanhol, assisti à Casa de Papel, a qual parei na segunda temporada (a sequência me pareceu indigerível), e também à Nada, série argentina de 2023 com participação de Robert De Niro.

A língua espanhola é hoje a língua estrangeira que mais utilizo, seja para me entreter ou me informar, seja para conversar com os imigrantes ou turistas hispanohablantes com que me esbarro nas ruas de Fortaleza.

Italiano

A língua italiana me foi um problema porque, apesar de ela me agradar muito, todas as minhas referências desse país eram não verbais: me agradava a sua arquitetura moderna e antiga, a sua pintura moderna e antiga e a sua música de concerto (instrumental). Seu cinema até poderia me auxiliar, mas ele é desde sempre muito sofisticado, e não o entender poderia me frustrar. Tentar ler livros sobre esses assuntos já no início do estudo seria precoce demais. E para completar, eu não conhecia de antemão nem um nome sequer da literatura italiana.

Ainda havia o agravante da Itália não ter uma grande cultura de compartilhamento na internet. Só para se ter ideia, encontrei o ensaio Saper vedere l'architettura, de Bruno Zevi, traduzido em todas as línguas por mim conhecidas: português, inglês e espanhol ― mas não em italiano.

Por muito tempo esse vácuo linguístico me atormentou. Até que um dia meu amigo Nelson me doou alguns gibis italianos traduzidos, como Tex Willer, Mágico Vento e Julia Kendall. Aí a ficha caiu: vi o quanto o trabalho quadrinista italiano era criativo! Olhei algumas reproduções dos quadrinhos originais. Seu texto era coloquial, mas não difícil de ser compreendido. Decidi então me concentrar nessa mídia para aprender italiano.

Pesquisei quadrinhos por alguns meses em portais de torrent. Como havia poucas sementes, encontrá-los exigiu um trabalho análogo ao da arqueologia e ao da agricultura (que vocês me perdoem o trocadilho). Dentre os disponíveis estavam Dylan Dog, Corto Maltese, além do já mencionado Tex. Além desses, em sebos encontrei uma edição caprichada de L'Uomo Ragno, versão italiana do Homem-Aranha.

Para fazer o “meio de campo” linguístico, segui o canal Learn Italian With Lucrezia, que não segue propriamente o Comprehensible Input, pois se concentra muito em gramática (Lucrezia é professora de formação), mas que publica vídeos em formato de vlog, em que mostra as cidades que ela visita, o que ajuda muitíssimo a agregar vocabulário.

Mais recentemente comecei também a acompanhar o canal do Youtube Daily Cogito e, pelo TikTok, o perfil @whitewhalecafe, dois canais em que se fala sobre filosofia ― aparentemente um dos temas preferidos da gente italiana. Dentre os filmes italinas dos quais gostei estão La Vitta è Bella e Cinema Paradiso.

Francês

Sinto que o aprendizado de francês será duro, mas fluido, uma vez que, desde muito cedo ouço falar da língua. Já no primeiro mês de estudo, eu era capaz de ler textos didáticos em francês sem engasgar. Além disso, conheço de antemão três outras muito influenciadas por ela: inglês, italiano e português. Quero ler Arthur Rimbaud, assistir ao Godard, folhear as Aventuras de Tintin, cantar as peças de Clément Janequin. Por enquanto, estou mais preocupado em adquirir vocabulário. Dois dos principais meios para tanto tem sido os vídeos de ensino de língua francesa, focados em vocabulário, com que me esbarro pelos reels do Instagram, e um canal do Youtube chamado French Comprehensible Input, do suiço Lucas.

O Clube Poliglota

O meu esforço contínuo durante meus estudos era de manter uma boa variedade de mídias de estudos, buscando meios de ler, ouvir e assistir em um idioma estrangeiro sobre os mais diversos temas. Falar em outra língua nunca foi uma prioridade para mim, até porque, como defende Steve Kaufmann, não é sequer necessário falar em outros idiomas para ser um poliglota ― basta compreendê-los. Mas assim era também porque, como estudante autodidata, eu não tinha incentivo externo para praticá-los.

Essa foi a situação até meados de 2023. Enquanto estava de férias na Serra Grande em julho daquele ano, pelo grupo de Whatsapp da minha graduação, recebo um print de uma notícia do jornal O Povo a respeito do Clube Poliglota, um encontro gratuito e não institucional para conversação em idiomas estrangeiros. Decido que, ao retornar a Fortaleza, faria uma visita a um de encontros que ocorriam semanalmente nas noites de sábado, numa praça de um bairro nobre fortalezense.

Desde então, os encontros semanais se tornaram um programa obrigatório para mim. Por conta da socialização com pessoas de todas as idades e nacionalidades, além de aprender organicamente durante os encontros, tenho recebido mais referências das línguas que estudo, e me sentido cada vez mais motivado a estudá-las.

Mais recentemente soube com coordenadores do Clube Poliglota que este é um projeto voluntário e internacional. A maioria das metrópoles brasileiras são contempladas com uma célula do CP, entre as quais estão São Luís, Salvador, Natal, São Paulo, Belo Horizonte, além de Fortaleza, cidade pioneira do projeto no Brasil, se não a primeira no país. Caso queira saber se a sua cidade possui uma célula ou pretende iniciar uma, entre em contato com alguns desses perfis de Instagram acima linkados.

So what? ¿Y ahora? Che cosa fare?

Ainda penso em aprender outras, as mais diferentonas que há: uma língua artificial, como esperanto; uma língua morta ou antiga, como o latim ou o grego antigo; e uma língua sem alfabeto romano, como o russo ou o chinês-mandarim. No entanto, pelo método que adotei, me esbarro na limitação de só poder estudar línguas verbais e com registro midiático. Pelo Comprehensible Input, eu enfrentaria sérios obstáculos se partisse para o estudo de uma língua não verbal, como LIBRAS, ou uma língua minoritária, como o tupi-guarani. Espero que com a experiência dos anos esta dúvida se sane, e os caminhos de novas línguas se abram para mim.

Decidi escrever este texto tanto como uma forma de introduzir aos interessados em aprendizado em línguas ou de auxiliar aqueles que necessitam de mais recursos de estudo. Mas também o escrevi para fazer uma homenagem a esta que tem sido minha atividade favorita dos últimos anos.

Por conta do estudo de línguas, me aprimorei como pessoa: eu que era tão introvertido, passei a me comunicar mais; criei novos hábitos, como assistir a séries, ler quadrinhos e ouvir podcasts; passei a valorizar mais as tecnologias de comunicação, que tem incentivado cada vez mais pessoas a aprender as coisas em geral, e os idiomas estrangeiros em especial; aprendi mais sobre a minha própria língua materna; ampliei minha perspectiva sobre o mundo por conta dos contatos que tive com estrangeiros etc., etc., etc.

Além disso gostaria ainda de fazer loas àqueles que, de longe, sem me conhecer e sem pedir nada em troca, mais me incentivaram a estudar idiomas estrangeiros. Thanks, Steve! Gracias, Laura! Ti ringrazio, Lucrezia! Merci, Lucas!

Colagem em grade 2x2 com quatro imagens. Na primeira, está o canadense Steve, um homem idoso branco e sem barba, de cabelo branco, vestindo casaco azul de zíper. Na segunda está a espanhola Laura, uma mulher jovem e branca, de cabelos castanhos curtos, vestindo uma regata cinza de alças. Na terceira, está a italiana Lucrezia, uma mulher jovem e branca, de cabelos longos e pretos, vestindo óculos de grau e uma camisa longa e branca com colarinho em detalhe preto. Na quarta está o suiço Lucas, um homem jovem branco e com barba rala, vestindo touca cinza e camiseta preta, e está segurando com as duas mãos uma página de folha onde está manuscrito “Lucas”. Todas as imagens são reproduções de vídeos de seus canais no Youtube.

#cotidiano


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Imagem: pintura de Giorgio de Chirico.

Sou Arlon de Serra Grande, i.e., meu nome é Arlon e Serra Grande é onde eu nasci. Sou graduando em Letras Vernáculas, tenho 28 anos, um livro de poesia e ensaio por publicar ― o “Estudando Poesia” ―, e também sou o responsável por estas Ideias de Chirico.

O título deste blogue vem de uma piada interna entre mim e eu mesmo envolvendo a idiomática “ideia de jerico” e Giorgio de Chirico, o famoso pintor surrealista italiano. Muita vez costumo dizer que algo é uma “ideia de Chirico” quando o que há em jogo é tão absurdo que chega a ser surrealista.

Giorgio de Chirico lhe olhando quando você o inspira!

Imagem: Giorgio de Chirico olhando para você quando você o inspira com alguma ideia de jerico!

Estimulado por colegas do Fediverso, que tiveram a corajosa iniciativa de abrir macroblogues em plena era do algoritmo e da microinformação, decidi também fazê-lo, uma vez que precisava escrever para alguém que não fossem meus professores e outra coisa que não fossem trabalhos curriculares.

Neste espaço publicarei textos a respeito de #arte, #cotidiano e #tecnologia, sempre a nível de usuário e amador. Mas aqui publicarei acima de tudo ideias, ideias de jerico ― ou melhor: ideias de Chirico!

Tive outros blogues de temas variados em um passado bem remoto, publicando desde quadrinhos até poesias, e cheguei inclusive a escrever ensaios sobre linguagens para o Instagram. No entanto, agora gostaria de experimentar escrever para o Fediverso, que parece ter uma dinâmica muito mais orgânica do que a internet plataformizada.

Como neste espaço posso ter liberdade ortográfica como nenhum outro lugar me proporciona, optarei por sempre aportuguesar termos estrangeiros. Acostumem-se a ler palavras como “blogue”, “becape”, “rumeite” e “esmartefone”.

Creio que o aportuguesamento, essa espécie de “antropofagia linguística”, é um bom caminho para enriquecer a nossa língua, visto que isso borra os limites entre o nacional e o estrangeiro. Assim, o estrangeirismo, em vez de ficar em estado de nicho técnico ou acadêmico, pode criar raízes e ramos no nosso idioma e, ocasionalmente, tornar-se parte da língua portuguesa de fato.

Se este blogue lhe interessar, você pode segui-lo via Fediverso por @ideiasdechirico@blog.ayom.media ou via feed RSS. Também estou no Mastodon. No mais, também posso ser contatado por este endereço eletrônico: arlon.alves@protonmail.com


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