Ideias de Chirico

Em lembrança do pintor surrealista greco-italiano Giorgio de Chirico (1888 - 1978), o maior ilustrador de ideias de jerico ― e de Chirico! Um blogue sobre arte, cotidiano e tecnologia mantido por Arlon de Serra Grande.

Capa de ““Clássico anticlássico”, de Giulio Carlo Argan.

Dos tempos em que cursei arquitetura, pelos idos de 2017, ainda lembro de um livrinho que a professora de História da Arte e Arquitetura recomendou como leitura complementar sobre Maneirismo. Tratava-se de “Clássico anticlássico”, do historiador italiano Giulio Carlo Argan.

Como já diz o seu subtítulo ― “O Renascimento de Bruneleschi a Bruegel” ―, “Clássico anticlássico” contempla a arte e a arquitetura do Renascimento e também do Maneirismo ― o entr'acte entre o Renascimento e o Barroco.

Mas não é sobre arte propriamente que quero escrever, mas sim desse precioso paradigma que Argan inaugurou: “Clássico anticlássico”. Clássico anticlássico! A tradição que nega a si, mas que, ao mesmo tempo, gira em torno de si. A tese-antítese ― sem síntese. Isso me evoca quase que instantaneamente aquela figura do cachorro que corre atrás do próprio rabo sem, no entanto, mordê-lo.

Em um certo prisma, podemos ler o “Clássico anticlássico” como o establishment que, com propósitos mais ou menos escusos, surge em momentos de crise como antiestablishment a fim de se afirmar como solução prática e definitiva para um problema estrutural e complexo. São os Collors, os Bolsonaros e os Mileis da vida.

Mas também, por outro prisma, entrevemos no paradigma do “clássico anticlássico” a genialidade do criador que soube manobrar uma cultura remota ao tempo presente sem lançar mão da nostalgia ou do reacionarismo estético, mas sim captar “de um belo olho velho a flama invicta” ― como escrevia o poeta Ezra Pound em um de seus Cantos. São os Joyces, os Chomskys e os Andrades ― “Passado é lição para refletir, não repetir”, é uma frase atribuída a um dos modernistas de 1922.

Como não sei se essas possibilidades de leitura do paradigma arganiano estão claras para o leitor, vou ilustrá-lo a seguir com alguns exemplos nos quais substituo “clássico” por outra palavra, exemplos que tenho coletado com o passar dos anos ou que me ocorreram durante a escrita deste texto. Lembrem-se, porém, que este é um work in progress, logo, eventualmente irei atualizar esta lista à medida que mais exemplos surgirem...

Clássicos anticlássicos: 1. arte antiarte: Marcel Duchamp; 2. político antipolítico: Jair Bolsanaro ― um “clássico anticlássico” por excelência; 3. música antimúsica: John Cage; 4. trabalhador antitrabalhador: o pobre de direita; 5. poesia antipoesia: Décio Pignatari e os demais concretistas; 6. intelectual anti-intelectual: Olavo de Carvalho; 7. prosa antiprosa: James Joyce em seu “Finnegans”; 8. brasileiro antibrasileiro: o brasileiro; 9. Estado antiEstado: Javier Milei, Collor de Mello, Margaret Thatcher etc., etc., etc. 10. homem anti-homem, branco antibranco, hétero anti-hétero etc.: o esquerdomacho.

Durante os tempos de isolamento social da Covid-19, no período de atos contra o então presidente Bolsonaro, rolava pela internet um template da Ação Antifascista, no qual as pessoas escreviam qualquer profissão, ocupação livre ou identidade específica seguida de “antifascista”. Desse template surgiu uma infinitude de memes do tipo “calvos antifascistas”, “agiotas antifascistas” e coisas que tais. Ocasionalmente surgiu um “fascista antifascista”. Como não consegui pensar em alguém que se enquadrasse nesse exemplo de “clássico anticlássico”, convido vocês a pensarem em um “fascista antifascista”.

(Continua...)

#cotidiano


CC BY-NC 4.0Ideias de Chirico


Imagem em preto e branco de um campo de futebol visto de trás das grades.

Campo de futebol no bairro Messejana de Fortaleza

Nos últimos meses tenho fotografado em preto e branco através de um esmartefone Motorola e20. O aparelho funciona perfeitamente bem e as fotos não passam por filtros ou edições. Não a princípio. Apenas as vejo em primeira mão por uma tela sem cores. Tenho experimentado usar meu aparelho com as cores de sua tela desativadas. Que se tenha claro desde já que fazê-lo não interfere no arquivo final da fotografia. Somente a visualização das fotos pelo esmartefone fica em preto e branco ― seu arquivo permanece em cores.

No link acima citado, do Manual do Usuário, há algumas razões que me convenceram de não usar meu aparelho com tela colorida. Em uma publicação futura, detalharei todas elas e também os benefícios práticos que obtive. Neste texto me concentrarei apenas na vivência de fotografar com essa configuração.


Somente a visualização das fotos pelo esmartefone fica em preto e branco ― seu arquivo permanece em cores.


Meus companheiros do Fediverso sabem que tenho um espaço dedicado para compartilhar fotos dentro do protocolo Activity Pub. Por ora, no entanto, gostaria de, além de expôr as imagens, discutir alguns efeitos que a ausência de cor provoca no processo de suas capturas.

Processo de “revelação”

Foto em preto e branco de um homem barbudo, de toca e camiseta pretas fumando em uma varanda cuja visão dá para os edifícios altos de uma cidade.

Rafaboy fumando em uma varanda do bairro Meireles de Fortaleza. Os edifícios e os corpos humanos caem bem em preto e branco.

Alguns dos efeitos imediatos de não ver a foto colorida imediatamente após a captura são a ritualização do processo fotográfico e a valorização das cores ― ou de sua ausência.

Nos primeiros dias, ao tirar uma foto pelo celular, eu ficava ansioso para subi-la para a nuvem, a fim de ver por outro dispositivo como ela ficava em cores.

Essa vivência de fotografar “às cegas”, sem ter ideia imediata do resultado final, me lembrou daqueles que trabalham com equipamentos fotográficos analógicos, que só podem ver o produto de seus cliques após semanas, meses ou mesmo anos, através de uma revelação dos filmes em sala escura.

Claro, ao contrário da revelação de filmes analógicos, o meu processo de “revelação” é gratuito, rápido e prático, dependendo só de outro dispositivo com uma tela colorida e ligado à nuvem ― já que evito ao máximo recolocar as cores no esmartefone.

No entanto, esse simples processo de retardamento de “revelação” faz com que eu me engaje integralmente no processo de fotografar, sem me importar tanto com o modo em que saiu a foto, mas me concentrando totalmente na sorte de poder registrar um momento que nunca mais se repetirá.


Ao ver a fotografia integralmente por outro dispositivo, suas cores vinham para mim como coisas inéditas.


Ao ver a fotografia integralmente por outro dispositivo, suas cores chegavam para mim como coisas inéditas. A partir daí, me caberia saber se valeria mais a pena compartilhá-la em cores ou sem elas.

Estetização do real

Imagem de uma visão panorâmica de edifícios em Fortaleza.

Noturnos também são uma boa pedida para imagens em preto e branco. Em fotos monocromáticas, o branco se torna figura (recebendo mais destaque) e o preto se torna fundo.

Desde que comecei a utilizar o celular sem cores, a vinculação entre realidade e reprodução do real arrefeceu-se de todo. Percebe-se com muito esforço que a nossa experiência com o mundo através do olho não coincide com nossa experiência mundana através de algum veículo.

Não vejo nisso, no entanto, um demérito para as tecnologias. Marshall McLuhan, em seu “Understanding Media” (1964), chama a atenção para a especificidade que os aparelhos eletrônicos têm de funcionarem como amplificadores de nossas faculdades corporais e mentais.

Ver uma paisagem natural por, por exemplo, um aparelho televisivo não embota nossa experiência de vê-la a olho nu, mas faz com que percebamos, através desse “amplificador visual”, atributos que não seriam perceptíveis de outro modo.

Nos frustramos ao ver que as fotos que tiramos não ficaram nem um pouco parecidas com a imagem que vemos a olho nu ― o que acontece 90% das vezes. Ao desligar as cores, me dei conta de como elas impactavam na minha percepção da realidade.

Me dei conta também de que a reprodução do real não deveria, a priori, emulá-lo talqualmente, mas que poderia, em vez disso, “vesti-lo”.

Bem, passada aquela primeira fase de ansiedade e estranhamento pela falta de cores, pouco a pouco, no entanto, fui aceitando essa natureza da tela, e, ocasionalmente, vendo sua beleza. Eventualmente, quando a foto está muito boa em preto e branco, não quero sequer saber de como ficou a sua versão colorida.

Temas

Foto em preto e branco de um homem de dreads, regata e chapéu chinês dançando. Ao fundo, um grande edifício.

Novamente Rafaboy posando. Desta vez, no Parque do Cocó de Fortaleza.

Há todo um culto em torno da fotografia monocromática. No entanto, fotografar em preto e branco não resulta em puro glamour em todos os temas. Há aqueles em que as cores devem de ser forçosamente invocadas. Somente fotografando sem cores me dei conta de que não é frequente encontrar por aí fotografias monocromáticas de comida ou de naturezas-mortas — o. s., frutas, plantas, louças ou legumes organizados em uma composição de fotografia ou pintura. Isso porque grande parte da beleza de uma comida está em sua cor.

Lembro de certa vez em que fotografei um conjunto de pedras sobre um tanque de peixes. Tirei, então, sua saturação a fim de que ficasse em branco e preto. Ao publicá-lo, algumas pessoas pensaram que aquilo se tratasse de um prato com carne. Me pareceu naquele momento que a natureza não foi feita para ser fotografada sem cores.

Tenho a impressão de que, em geral, a fotografia em preto e branco cai bem sobretudo a tudo aquilo que é obra do homem, tudo o que é ortogonal, composicional, rítmico: edifícios, campos de futebol, automóveis ou o próprio corpo humano. Além disso, como a cor foi extraída da fotografia, cabe a esta revelar texturas, pondo à disposição do olho os valores táteis das coisas.

Downgrading

Foto em preto e branco de um emaranhado de fios elétricos ligados a um poste de luz. O ângulo da foto é de baixo para cima.

A desorganização parece ser enfatizada pela ausência de cor.

Diz-se que, quando há o embotamento de algum dos sentidos, há o fortalecimento dos demais. Por exemplo, caso uma pessoa perca um pouco de sua visão, sua sensibilidade auditiva, por uma questão de sobrevivência, é catapultada. Tive uma experiência similar a esta quando realizei esse “downgrading” do dispositivo e passei a fotografar sem cores. Tive uma melhora em meu senso de reconhecimento de enquadramento e de texturas, estes que são atributos que as cores distraem.

Entrementes, me tornei mais paciente, uma vez que tinha de esperar pela “revelação” da foto, sem contar que vivi mais os momentos sem me preocupar tanto com a finalização dos registros. Acima de tudo senti o mundo de uma maneira diversa da que eu vivia até então, percebendo novos padrões de beleza visual.

#cotidiano #tecnologia


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Imagem: Kris De Decker utilizando um de seus IBM Thinkpad, enquanto o recarrega através de seu projeto de captação de energia fotovoltaica.

Disclaimer: Minha nova ideia de Chirico foi traduzir um texto que já há algum tempo me encanta. Trata-se de “How and Why I Stopped Buying New Laptops”, do inventor belga — agora residente da Espanha —, militante ambientalista, anarquista, jornalista e escritor Kris De Decker.

Publicado em seu blogue Low-tech Magazine (LTM) ― hospedado em servidor do próprio autor e alimentado por energia solar ―, esse texto me fascina tanto pelas ideias antiestablishment sobre a tecnologia (para mim então inéditas), quanto pela forma clara de escrita, próprio de um autor acadêmico, sim, mas capaz de escrever numa linguagem acessível para o grande público.

Com traduções em francês, alemão, neerlandês, espanhol e polonês, notei que o texto não tinha ainda uma tradução em português, nem em seu site, nem em outro pela internet, deixando o texto fora dos meios lusófonos.

Procurei manter nesta tradução a organização e formatação textuais originais do texto de Decker, além de suas imagens. Também mantive os hyperlinks originais que, por na maioria das vezes direcionarem o leitor às outras publicações do LTM, abrem páginas em inglês. Além disso, também fiz uma conversão simples de euro para real, considerando somente a cotação atual, para que os leitores brasileiros tenham uma ideia básica do que Decker gastou em cada compra.

Espero que gostem de ler esta que talvez seja uma das melhores expressões da resistência contemporânea à obsolescência programada.

Como e por que parei de comprar novos notebooks

Publicado por Kris De Decker em 20 de dezembro de 2020. Tradução em português por Arlon de Serra Grande.

Como um jornalista freelancer ― ou um trabalhador de escritório, como queira ―, sempre acreditei que eu deveria comprar regularmente um novo notebook. Mas máquinas antigas oferecem mais qualidade por menos dinheiro

Imagem: Low-tech Magazine agora é escrito e publicado em um ThinkPad X60s dos anos 2006.

Enquanto jornalista independente ― ou trabalhador de escritório, como queira ― sempre pensei que eu precisava de um computador decente e que eu devia pagar por qualidade. Entre 2000 e 2017, usei três notebooks que comprei novos e que me custaram em torno de 5 mil euros (23 mil reais) ao todo ― mais ou menos 300 euros (1,5 mil reais) por ano durante todo o período. A média de vida útil dos meus três notebooks foi de 5,7 anos.

Em 2017, em algum momento ao conseguir meu escritório, decidi não mais comprar notebooks novos. Em vez disso, fiquei com uma máquina de segunda-mão dos anos 2006 que comprei pela internet por 50 euros (265 reais) e que faz tudo que quero e necessito. Incluindo uma nova bateria e um aprimoramento simples em hardware, investi menos do que 150 euros (795 reais).

Se meu notebook de 2006 durar tanto quanto minhas outras máquinas ― se ainda rodar por pouco mais de um ano e meio ― ele me custará só 26 euros (138 reais) ao ano. Isso é menos do que 1/10 do que custou meus notebooks anteriores. Neste artigo, explicarei meus motivos de não comprar mais notebooks novos, e como você poderia fazer o mesmo.

Uso de energia e materiais de um notebook

Não comprar notebooks novos economiza um bom dinheiro, mas também muitos recursos, e evita a destruição do meio-ambiente. De acordo com a mais recente análise do ciclo de vida, leva-se de 3 101 a 4 340 megajoules de energia primária para se produzir um notebook ― isso inclui a extração de materiais, a fabricação da máquina, e o frete até o mercado¹.

A cada ano, compramos entre 160 e 200 milhões notebooks. Usando os dados acima, isso significa que a produção de notebooks requer um consumo anual de energia de 480 a 868 petajoules, o que corresponde entre um quarto e quase a metade de toda a energia solar fotovoltaica produzida mundialmente em 2018 (2023 petajoules)². A fabricação de um notebook também envolve o alto consumo de materiais, que inclui uma ampla variedade de materiais que podem ser consideradas escassas devido a diferentes tipos de restrições: econômica, social, geoquímica e geopolítica³ ⁴.

A produção de microchips é um processo de uso intensivo de energia e de materiais, mas este não é o único problema. O alto uso de recursos dos notebooks ocorre também porque eles têm uma vida útil muito curta. A maior parte dos 160 a 200 milhões de notebooks vendidos a cada ano são compras para substituição. O notebook médio é substituído a cada três anos (em empresas) ou até cinco anos (em outros ambientes)³. Minha experiência de 5,7 anos para cada notebook não é excepcional.

Notebooks não mudam

O estudo acima citado é de 2011, e refere-se a uma máquina fabricada em 2001: um Dell Inspiron 2500. É compreensível que você pense que “o mais recente estudo de ciclo de vida de um notebook” está datado, mas não está. Um artigo científico de 2015 descobriu que a energia incorporada dos notebooks foi constante durante o tempo⁵.

Os pesquisadores desmontaram 11 notebooks de tamanho similar, produzidos entre 1999 e 2008, e pesaram seus diversos componentes. Além disso, mediram a área de matriz de silício de todas as placas-mãe e 30 cartões de memória DRAM produzidas mais ou menos no mesmo período (até 2011). Eles descubriram que a massa e o material de composição de todos os componentes principais ― bateria, placa-mãe, disco-rígido, memória ― não mudaram significativamente, ainda que os processos de produção tornaram-se mais eficientes no uso de energia e material.

A razão é simples: melhorias em funcionalidade equilibram os ganhos em eficiência obtidos no processo de produção. As massas da bateria, memória, e do disco-rígido decaíram por unidade de funcionalidade, mas apresentaram totais constantes por ano. A mesma dinâmica explica porque notebooks novos não apresentam consumo de eletricidade operacional menor comparados a notebooks mais antigos. Novos notebooks podem ter maior eficiência energética por potência computacional, mas esses ganhos são compensados com uma maior potência computacional. Não há lugar em que o paradoxo de Jevons seja tão evidente quanto na informática.

O desafio

Tudo isso significa que não há benefício ambiental ou financeiro qualquer que seja em substituir um notebook velho por um novo. Ao contrário, a única coisa que o consumidor pode fazer para melhorar a sustentabilidade ecológica e econômica de seu notebook é usá-lo o máximo possível. Isso é facilitado pelo fato de que os notebooks são agora tecnologicamente maduros e têm mais do que suficiente energia computacional. Há um problema, entretanto. Consumidores que tentam manter-se trabalhando em seus velhos notebooks tendem a acabar se frustrando. Vou explicar brevemente minhas frustrações abaixo, e estou bem convencido de que eles não são excepcionais.

Imagem: os três notebooks que usei entre 2000 e 2017.

Meu primeiro notebook: Apple iBook (2000-2005)

Em 2000, quando eu trabalhava como jornalista freelance de ciência e tecnologia na Bélgica, comprei meu primeiro notebook, um Apple iBook. Pouco mais do que dois ou três anos depois, meu carregador começou a dar problemas. Quando soube do preço de um novo carregador, tomei tanto desgosto pela prática de vendas da Apple ― carregadores são bem baratos de se produzir, mas a Apple os vende muito caros ―, que me recusei a comprar. Em vez disso, procurei manter o carregador funcionando por mais alguns anos, primeiro pondo-o debaixo do peso de livros e móveis, e, quando parou de funcionar, apertando-o firmemente com uma abraçadeira.

Meu segundo notebook: IBM Thinkpad R52 (2005-2013)

Quando meu carregador finalmente morreu de vez em 2005, decidi procurar por um novo notebook. Eu tinha só uma exigência: que ele deveria ter um carregador que durasse ou cuja troca ao menos fosse barata. Encontrei mais do que estava procurando. Comprei um IBM Thinkpad R52, e foi amor ao primeiro uso. Meu notebook IBM era a contrapartida do Apple iBook, não apenas em termos de design (uma caixa retangular disponível em todas as cores, desde que seja preto). Mais importante ainda, toda a máquina foi feita para durar, feita para ser segura e feita para ser reparável.

Produtos circulares e modulares estão em alta hoje em dia, sua vida útil poderia ser estendida intermitentemente por reparo e substituição graduais de cada parte da qual ele é constituído. A questão não é como a gente pode evoluir para uma economia circular, mas sim por que a gente continua a evoluir distante dela.


A questão não é como a gente pode evoluir para uma economia circular, mas sim por que a gente continua a evoluir distante dela.


Meu Thinkpad foi mais caro do que meu iBook, mas ao menos não investi todo o dinheiro em um design bonitinho mas sim em um computador decente. O carregador não deu problemas, e, quando o perdi durante uma viagem e tive de comprar um novo, pude adquirir por um preço justo. Pouco sabia que minha compra feliz viria a ser uma experiência única na vida.

Imagem: O IBM ThinkPad R52, de 2005.

Meu terceiro notebook: Lenovo Thinkpad T430 (2013-2017)

Corta para 2013. Agora moro na Espanha e mantenho o Low-tech Magazine. Ainda trabalho com o meu IBM Thinkpad R52, mas há alguns problemas à vista. Primeiro de tudo, a Microsoft vai em breve me forçar a atualizar meu sistema operacional, já que o suporte para Windows XP encerrará em 2014. Não estou a fim de gastar alguns centos de euros em um novo sistema operacional que, de qualquer modo, poderia demandar demais do meu velho notebook. Além disso, o notebook tem ficado um pouco lerdo, mesmo depois dele ter sido restaurado à sua configuração de fábrica. Em resumo, caí na cilada que as indústrias de hardware e software nos montaram e cometi o erro de pensar que eu precisava de um novo notebook.

Estando tão afeito ao meu Thinkpad, nada mais lógico do que adquirir um novo. Eis o problema: em 2005, pouco depois de eu ter comprado meu Thinkpad, a Lenovo, uma fábrica chinesa que agora é a maior produtora de computadores do mundo, comprou o negócio de computadores pessoais da IBM. Companhias chinesas não têm reputação em fazer produtos com qualidade, não especificamente naquele tempo. De qualquer modo, visto que a Lenovo seguia vendendo Thinkpads que pareciam quase idênticos aos fabricados pela IBM, decidi tentar a sorte e comprar um Lenovo Thinkpad T430 em abril de 2013. A um preço exorbitante, mas considerei que por qualidade se paga.

Meu erro estava claro desde o início. Tive de devolver o notebook novo de volta duas vezes porque a carcaça estava deformada. Quando finalmente consegui um que não ficava em falso sobre minha mesa, rapidamente me deparei com outro problema: as teclas começaram a quebrar. Ainda consigo lembrar da minha incredulidade quando isso aconteceu pela primeira vez. O Thinkpad da IBM é conhecido por seu teclado robusto. Se você quer quebrá-lo, precisa de um martelo. Lenovo obviamente não achou isso tão importante e sutilmente substituiu o teclado por um inferior. Veja, até posso digitar agressivamente, mas nunca quebrei nenhum outro teclado.

Aborrecido, pedi a substituição da tecla por 15 euros (80 reais). Meses depois disso, a substituição de teclas tornou-se um custo recorrente. Depois de gastar mais de 100 euros (530 reais) em teclas de plástico, que em breve poderiam se quebrar outra vez, calculei que meu teclado tinha 90 teclas e que substituí-las todas duma só vez me custaria 1350 euros (7155 reais). Parei de usar o teclado por completo, temporariamente tendo a solução em um teclado externo. De qualquer modo, isso era antiprático, especialmente para trabalhar fora de casa ― e por que mais eu iria querer um notebook?

Já não havia mais retorno: eu precisava de um novo notebook. Outra vez. Mas qual? Com certeza não poderia ser algum feito pela Lenovo ou Apple.

Imagem: substituir todas as teclas do meu Lenovo T430 teria me custado 1350 euros (7350 reais).

Meu quarto notebook: IBM Thinkpad X60s (2017-atualmente)

Não encontrando o que eu procurava, decidi voltar no tempo. Àquela altura, ficou claro que notebooks novos têm uma qualidade inferior se comparadas aos velhos, mesmo que carreguem etiquetas com preços mais altos. Soube que a Lenovo trocou os teclados por volta de 2011 e comecei a pesquisar sites de leilões de Thinkpads fabricados antes desse ano. Eu poderia voltar ao meu Thinkpad R52 de 2005, mas por ora, estava acostumado ao teclado espanhol, e o R52 tinha o bélgico.

Em abril de 2017, fiquei com um Thinkpad X60s usado, do ano 2006. A partir de dezembro de 2020, a máquina estará em operação por quase 4 anos e tem 14 anos ― de três a cinco vezes mais longevo do que um notebook médio. Se eu amei o meu Thinkpad R52 de 2005, sou doido pelo meu Thinkpad X60s de 2006. Ele é tão robusto quanto ― já sobreviveu a uma queda de uma mesa até um chão de concreto ― mas é ainda menor e também mais leve: 1,42 kg vs. 3,2 kg.

Meu Thinkpad X60s faz tudo o que quero que ele faça. Uso-o para escrever artigos, pesquisar, e manter sites. Tenho o utilizado também para dar palestras em auditórios, projetando imagens em uma tela grande. Só há uma única coisa que faz falta no meu notebook, especialmente hoje em dia, que é uma webcam. Resolvo isso ligando o maldito notebook de 2013 com as teclas quebradas sempre que necessito, feliz por dar-lhe um uso que não envolva o teclado. Isso poderia também ter sido resolvido mudando para um Thinkpad X200 de 2008, que é uma versão mais recente do mesmo modelo, mas com uma webcam.

Imagem: Meu Thinkpad X60s.

Como fazer um notebook velho rodar como se fosse novo

Nunca mais comprar notebooks novos não é tão simples quanto comprar um notebook usado. É recomendável que se aprimore o hardware, e é essencial que se reduza a versão de software. Eis duas coisas que você precisa fazer:

1. Usar software de abaixo consumo energético

Em meu computador roda Linux Lite, um dos vários sistemas operacionais de código aberto programados especialmente para funcionar em computadores antigos. O uso de um sistema operacional Linux não é mera sugestão. Não tem condições de você reviver um notebook velho se você se agarra a sistemas operacionais da Microsoft Windows ou da Apple, porque a máquina instantaneamente trava. Linux Lite não tem os efeitos visuais exuberantes das mais novas interfaces da Apple e da Windows, mas tem uma interface gráfica familiar e parece qualquer coisa que não obsoleta. Ele toma muito pouco espaço do disco rígido e demanda menos poder operacional. O resultado é que um notebook velho, independente de suas especificações, roda tranquilamente. Também uso navegadores leves: Vivaldi e Midori.

Tendo usado Microsoft Windows por tanto tempo, achei que sistemas operacionais Linux são notavelmente melhores, ainda mais porque são livres para serem baixados e instalados. Além do mais, sistemas operacionais Linux não roubam seus dados pessoais e não tentam lhe prender neles, que nem fazem os mais recentes sistemas operacionais tanto da Windows quanto da Apple. Dito isso, mesmo com Linux, a obsolescência não pode ser desconsiderada. Por exemplo, Linux Lite vai parar de dar suporte para máquinas de 32-bits em 2021, o que significa que em breve terei de procurar por um sistema operacional alternativo, ou comprar um notebook de 64-bits um pouco mais novo.

2. Trocar a unidade de disco rígido (HDD) por uma unidade de estado sólido (SSD)

Nos últimos anos, as unidades de estado sólido (SSD) ficaram disponíveis e adquiríveis, e são bem mais rápidas do que as de disco rígido (HDD). Embora você possa reviver um velho notebook simplesmente passando para um sistema operacional mais leve, se você também trocar a unidade de disco rígido por uma de estado sólido, você também terá uma máquina que é tão rápida quanto um notebook novo em folha. Dependendo da capacidade que você queira, um SSD custará a você entre 20 euros (106 reais) por 120 GB, e 100 euros (530 reais) por 960 GB.

A instalação é bastante prática e está bem documentada pela internet. Unidades de estado sólido rodam silenciosamente e têm uma resistência maior a impactos físicos, mas eles têm uma expectativa de vida mais curta do que as unidades de disco rígido. A minha tem funcionado por quase quatro anos. Me parece que, tanto do ponto de vista ambiental quanto do financeiro, um notebook velho com um SSD é uma escolha muito melhor do que comprar um notebook novo, mesmo que, vez ou outra, a unidade de estado sólido precise ser trocada.

Notebooks reservas

Nesse meio-tempo, minha estratégia tem mudado. Comprei dois modelos idênticos por um preço similar, em 2018 e no início de 2020, para usar como notebooks reservas. Agora planejo me manter trabalhando com essas máquinas por quanto tempo for possível, tendo mais do que o suficiente de peças reservas disponíveis. Desde que comprei o notebook, ele teve dois problemas técnicos. Depois de cerca de um ano de uso, a ventoinha morreu. Tive o conserto com entrega imediata em uma lojinha bagunçada de informática mantida por um chinês em Antwerp, na Bélgica. Ele me falou que minha ventoinha consertada poderia rodar por mais seis meses, mas ela tem funcionado mais de dois anos depois.

Daí, no último ano, meu X60s de repente parou de carregar sua bateria, um defeito que também surgiu no meu notebook desgraçado de 2013. Esse parece ser um problema comum com Thinkpads, mas que ainda não pude resolver. Nem precisaria, já que tenho um notebook reserva pronto, que comecei a usar sempre que preciso ou quero trabalhar fora de casa.

Imagem: três notebooks idênticos do ano de 2006, todas em funcionamente, por menos de 200 euros (1060 reais).

Imagem: Interior do Thinkpad X60s. Fonte: Manual de Manutenção de Hardware

O mágico cartão de memória SD

Agora, deixe-me lhe apresentar ao meu mágico cartão de memória SD, que é outro aprimoramento de hardware que facilita o uso de notebooks velhos (mas também novos). Muitas pessoas têm seus documentos pessais armazenados em seus discos rígidos e logo fazem becapes em um dispositivo de mídia externo se está tudo certo. Faço isso ao contrário.

Tenho todos os meus dados em um cartão de memória de 128 GB, que posso plugar em qualquer um dos Thinkpads que possuo. Então faço becapes mensais do cartão, que eu guardo em um dispositivo de armazenamento externo, bem como becapes regulares de documentos nos quais estou trabalhando, que eu temporariamente guardo na memória do computador em que estou trabalhando. Isso tem se provado bem confiável, ao menos para mim: parei de perder trabalho por conta de problemas computacionais e becapes insuficientes.

Outra vantagem é que posso trabalhar no computador que eu quiser e que não dependo de uma máquina em particular para acessar meu trabalho. Você pode ter vantagens similares ao manter todos os seus dados em uma nuvem, mas cartão de memória é a opção mais sustentável, e funciona sem acesso à internet.

Hipoteticamente, eu poderia ter dois erros de disco rígido no mesmo dia e me manter trabalhando como se nada tivesse acontecido. Uma vez que uso alternadamente dois notebooks – um com bateria, outro sem – posso também deixá-los em diferentes localidades e rodar por entre esses cantos enquanto carrego somente o meu cartão na minha carteira. Tente isso com seu notebook novinho e caro. Posso também usar meus notebooks juntos se preciso de uma tela extra.

Em combinação com uma unidade de disco rígido, o cartão SD também melhora a performance de um notebook velho e pode ser uma alternativa à instalação de uma unidade de estado sólido. Meu notebook reserva não tem um e ele pode ficar lerdo ao navegar por sites pesados. De qualquer modo, graças ao cartão SD, abrir um mapa ou um documento acontece quase instantaneamente, assim como rolar por um documento ou salvá-lo. O cartão SD também mantém o disco rígido rodando tranquilamente, já que está em geral vazio. Eu não sei o quão prático é usar um cartão SD em outros notebooks, mas todos os meus Thinkpads têm um eslote para isso.

Os custos

Façamos um cálculo de custo completo, incluindo o investimento em notebooks reservas e cartões de memória, e os preços usuais tanto para unidades de estado sólido quanto para cartões de memória, que se tornaram ainda mais baratos desde que os comprei:

• ThinkPad X60s: 50 euros (265 reais) • Notebook reserva ThinkPad X60s: 60 euros (318 reais) • Notebook reserva ThinkPad X60: 75 euros (397,5 reais) • Duas trocas de bateria: 50 euros (265 reais) • Unidade de estado sólido (SSD) de 240 GB: 30 euros (159 reais) • Cartão de memória SD de 128 GB: 20 euros (106 reais) • Total: 285 euros (1510,5 reais)

Mesmo se você comprar tudo isso, gastará somente 285 euros. Por esse preço, você talvez possa comprar o computador novo mais capenga do mercado, mas isso certamente não te propiciará dois notebooks reservas. Se você planeja seguir trabalhando com esse arranjo por dez anos, seu notebook poderia custar 28.5 euros (151 reais) ao ano. Você talvez precise trocar algumas unidades de estado sólido e cartões de memória, mas isso não fará muita diferença. Além disso, você evita o dano ecológico que é causado pela produção de novos notebooks a cada 5,7 anos. As necessidades do meu notebook estão atendidas por um futuro previsto.

As necessidades do meu notebook estão atendidas por um futuro previsto.

Não exagere

Ainda que eu tenha usado meu Thinkpad X60s como exemplo, a mesma estratégia funcionaria com outros modelos de Thinkpad ― aqui há um panorama de todos os modelos históricos ― e notebooks de outras marcas (das quais não sei nada a respeito). Se você preferir não comprar em sites de leilão, pode ir à loja de usados mais próxima e arrumar um notebook de segunda mão com uma garantia. É provável que você não precise sequer comprar um, já que tem muita gente com notebooks velhos por aí.

Não há necessidade de voltar para uma máquina de 2006. Espero que esteja claro que estou tentando traçar um argumento aqui, e provavelmente fiquei bem atrás de onde se pode manter as coisas práticas. Minha primeira tentativa foi um Thinkpad X30 de 2002, mas ela foi um passo muito distante. Ele tem um tipo diferente de carregador, não tem eslote para cartão de memória, e eu não poderia manter a conexão de internet sem fio funcionando. Para muitas pessoas, talvez seja melhor escolher um notebook um pouco mais recente. Isso lhe proporcionaria uma webcam e uma arquitetura de 64-bits, o que torna as coisas mais fáceis. Claro, você também pode me superar e voltar aos anos 1990, mas aí você teria que se virar sem portas USB e internet sem fio.

A escolha de seu notebook também depende daquilo que você quer fazer com ele. Se você o usa sobretudo para escrever, navegar, se comunicar e se entreter, pode fazer o mesmo que fiz pelo mesmo preço baixo. Se você trabalha com visual ou audiovisual, fica mais complicado, porque neste caso você provavelmente seja um usuário de Apple. A mesma estratégia poderia funcionar em um notebook um pouco mais recente e mais caro, mas eu sugeriria a mudança de um Mac para um sistema operacional Linux. Quanto a aplicações para escritório, Linux é evidentemente melhor do que as alternativas comerciais. Por falta de experiência, não posso lhe relatar se o mesmo vale para outros softwares.

Isso é um truque, não um novo modelo econômico

Embora o capitalismo possa nos oferecer notebooks usados por décadas a fio, a estratégia descrita acima deve ser vista como um truque, não como um modelo econômico. É um modo de lidar ou de escapar de um sistema econômico que tenta forçar você e eu a consumir o máximo possível. É uma tentativa de romper esse sistema, mas não é uma solução em si mesma. Precisamos de um outro modelo econômico, no qual possamos fabricar todos os notebooks como os Thinkpad pré-2011. Como consequência, a venda de notebooks cairia, mas é especificamente disso que precisamos. Além disso, com a eficiência computacional de hoje, poderíamos reduzir significativamente o uso de energia operacional material de um laptop se revertermos a tendência de uma funcionalidade cada vez maior.

Claramente, mudanças em hardware e software levam a uma rápida obsolescência de computadores, mas o segundo tem sido o fator mais crucial. Um computador de 15 anos tem tudo de hardware que você precisa, mas não é compatível com o software (comercial) mais recente. Isso é verdade para sistemas operacionais e todo tipo de software, desde jogos, passando por aplicações para escritório, até sites. Consequentemente, para tornar o uso de notebooks mais sustentável, a indústria de software deveria começar a fazer cada nova versão de seus produtos mais leves em vez de mais pesados. Quanto mais leve for o software, mais duradouros serão nossos notebooks, e de menos energia precisaremos para usá-los e produzi-los.

Imagens: Jordi Manrique Corominas, Adriana Parra, Roel Roscam Abbing


  1. Deng, Liqiu, Callie W. Babbitt, and Eric D. Williams. “Economic-balance hybrid LCA extended with uncertainty analysis: case study of a laptop computer.” Journal of Cleaner Production 19.11 (2011): 1198-1206. https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0959652611000801
  2. International Renewable Energy Agency (IRENA). https://www.irena.org/solar
  3. André, Hampus, Maria Ljunggren Söderman, and Anders Nordelöf. “Resource and environmental impacts of using second-hand laptop computers: A case study of commercial reuse.” Waste Management 88 (2019): 268-279. https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0956053X19301825
  4. Kasulaitis, Barbara V., et al. “Evolving materials, attributes, and functionality in consumer electronics: Case study of laptop computers.” Resources, conservation and recycling 100 (2015): 1-10. https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0921344915000683
  5. Kasulaitis, Barbara V., et al. “Evolving materials, attributes, and functionality in consumer electronics: Case study of laptop computers.” Resources, conservation and recycling 100 (2015): 1-10. https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0921344915000683 

#tecnologia


CC BY-NC 4.0Ideias de Chirico


Salvador, Cidade Baixa. Foto de Bárbara.

Salvador, Cidade Baixa. Foto de Bárbara.

Em plena era do avião e do veículo leve sobre trilhos, viajar longas distâncias por terra para alguns pode parecer uma bela de uma ideia de Chirico. Em minha condição de estudante e trabalhador em terra estrangeira, no entanto, viajar por esse meio era o que me estava à mão, já que sou contemplado pelo programa ID Jovem.

Por meio dele, pude viajar de Fortaleza para Salvador gratuitamente, tendo de pagar somente a taxa de embarque. Permaneci na capital baiana por duas semanas ― a última de janeiro e a primeira de fevereiro. Devi minha estadia ao querido casal de amigos soteropolitanos Bárbara, a “Bá”, e André, o “Dé”. Por ela ter uma redação de projeto de doutorado por fazer, ele é quem me acompanhou a maior parte dos dias.

Compartilho com vocês algumas impressões “a quente”, feitas no momento da viagem, que vêm de notas de um pequeno diário que levei na mochila. Depois, algumas impressões mais “a frio” de Salvador, percepções que escaparam durante a viagem, as quais não tive tempo de registrar ou que vieram com a distância do meu retorno. Intercalando-as, fotos que tirei pelo meu celular ou que Bárbara tirou em sua câmera digital, além de estáticos de vídeos que fiz pela cidade.

Notas a quente

24 de janeiro (quarta-feira): Em um ônibus Guanabara de dois andares, passo por Rio Grande do Norte, Paraíba, Sergipe. Nas três paradas consecutivas, sinto que a natureza e as gentes suas não são diferentes das do Ceará. Mesmo o sotaque da gente paraibana, da parte de onde parei, lembra um pouco o sotaque da Costa Norte, do oeste e norte cearenses. O Nordeste é tão diverso... Por que manter esse mito de unidade, de cactos e sóis imóveis?

25 de janeiro (quinta-feira): Em Salvador, no Parque da Cidade com Dé. Bárbara “Suei” ficou em casa enquanto passeamos. O tempo está nublado, e há na cidade um quê paulista.

26 de janeiro (sexta-feira): Em SESC Nazaré, ainda em Salvador. Dormi em casa de Alex Simões, um poeta local que eu conhecera em 2021, pelo curso de Poesia Expandida. Ontem fomos ao Pelourinho com Clarisse Lyra, outra poeta de Salvador, e apareceram também Augusto, um pesquisador de Jorge Amado ― gaúcho ―, Camila ― paulista ―, e Mateus ― carioca ―, também escritor. Tive de sair da casa de Alex, pois não poderia ficar comigo. Mato o tempo até as duas da tarde, quando Dé poderá me pegar.

27 de janeiro (sábado): Pelo Pelourinho com Carol. Era noite. Luzes quentes e baixas das tradicionais arandelas de rua. (...) Sobre as escadarias da Fundação Jorge Amado, falou de seu contínuo resgate a antepassados indígenas. Sua fala cantada ― brilhante. Falou a certa volta: “Não tenho medo de morrer (...), mas tenho medo de esquecer o que vivi” (...).

Post scriptum: Carol foi quem me recebeu na primeira vez em que fui a Salvador, em 2019. Nesta volta, levei-lhe alguns mimos cearenses, entre os quais Sequilhos ― biscoitos de leite em pó ―, pedaços de rapadura de amendoim, uma lata do refrigerante de caju São Geraldo, e um cartão-postal da Praia de Iracema, de Fortaleza.

28 de janeiro (domingo): Fui almoçar com Dé e Bá na UFBA. Lugar incrível. É inconcebível como são capazes de fornecer almoço aos domingos. (...)

29 de janeiro (segunda-feira): No Passeio Público com Dé. (...) À noite, saímos eu, Dé, Bá, Luísa e Pedro Sol para um restaurante indiano-árabe-oriental.

Post scriptum: Este restaurante chama-se Pasárgada e fica no bairro Rio Vermelho, próximo (ma non troppo) da Casa de Iemanjá, onde ocorre o famoso cortejo anual à Iemanjá, a todo 2 de fevereiro.

30 de janeiro (terça-feira): No Museu de Arte Contemporânea fui violentamente censurado por um turista (...) por eu ter tocado numa peça que era sonora. Isso, por habilidade de Dé, não acabou nosso passeio. Comemos uma empadinha de doce de leite numa padaria onde tivemos o melhor atendimento possível; conversamos em inglês com dois londrinos num bar de beco; descemos a Ladeira da Barra vendo a Baía de Todos-os-Santos bem na hora dourada, chegando às proximidades do Farol ao pôr-do-sol.

31 de janeiro (quarta-feira): Eu, Bá e Dé saímos em disparada para um cinema às 12:00, onde haveria a projeção de “Il sol dell'avvenire” às 13:00. Iríamos lhe assistir com Vinícius e Gabriel. Almoçamos de improviso algumas marmitas no Shopping Paseo. Dé quebrava as talheres [de plástico] de minuto a minuto. Comi à parmegiana ― saudades de meu pai. Mais tarde nós meninos fomos ao Lago dos Patos, em Pituba ― Bá ficara em casa para escrever. Logo depois, a pegamos e saímos a um restaurante chinês. Nos empanturramos de yakissoba!

1 de fevereiro (quinta-feira): Andei sozinho por um tempo durante a manhã. Pela tarde eu e Dé fomos ao Mercado Modelo ― lembra-me muito das feiras artesanais de Fortaleza. Lá comprei uma camiseta do Olodum e um ímã com uma gravura do Elevador Lacerda, por onde subimos até a Cidade Alta. Era já hora de pôr-do-sol. A Baía de Todos-os-Santos resplandescia. O céu partia-se em laranjas, amarelos e gris. Logo depois, o brilho das cidades ao horizonte. Por fim, tomamos uns copos de cerveja num Bar do Pelô. Dé é um grande amigo!

Crepúsculo a partir da Cidade Alta. Estático de um vídeo.

Crepúsculo a partir da Cidade Alta. Estático de um vídeo.

2 de fevereiro (sexta-feira): Festa de Iemanjá. Dé, Bá e eu acordamos cedinho. Não pudemos ver a partida do cortejo. (...) Pudemos fazer oferendas. Comemos. Almocei fora bem baratinho. Caminho um pouco sozinho. Voltei para casa ensopado e trombei com Vinícius e Gabriel, que saíam para a Barra, onde tomamos sorvete e coco! Pela noite nos encontramos no Rio Vermelho para comer acarajé. Por conta das festas profanas, lá estava um caos.

3 de fevereiro (sábado): Passo o dia sozinho. Bárbara e André ficam em suas casas a fim de finalizar os trabalhos dela. Decido ir à Avenida 7 de setembro para comprar sandálias (as minhas anteriores quebraram durante a Festa de Iemanjá), e “Capitães de Areia”. Compro as sandálias, mas não encontro um sebo aberto sequer. Como estava próximo ao Elevador Lacerda, decido descer à Cidade Baixa. Acabo comprando um chapeuzinho chinês.

Post scriptum: Este chapéu estava em moda naquele momento. Comprei-o porque tinha certeza de que não o encontraria outra vez com facilidade.

4 de fevereiro (domingo): Eu, Dé e Bá almoçamos no Shopping Salvador. (...) Lá haveria um encontro extraordinário do Clube Poliglota local. Falei em inglês com Suzy, em espanhol com Leandro, e em italiano com Gerlon. (...) Mais tarde, eu e Bá fomos ao Museu de Arte Moderna da Bahia. Visitamos a exposição de Walter Firmo e fotografamos o edifício.

Post scriptum: “extraordinário” aqui no sentido de “fora do programado”. Os encontros do CP de Salvador ordinariamente ocorrem aos sábados. No entanto, no primeiro sábado em que estive na cidade, caiu um toró, e no segundo, começavam os preparativos para o carnaval, o que inviabilizava qualquer outra coisa que não a folia.

Foto de Bárbara tiradas por mim na Praia da Gamboa, próxima ao Museu de Arte Moderna da Bahia.

Foto de Bárbara tiradas por mim na Praia da Gamboa, próxima ao Museu de Arte Moderna da Bahia.

5 de fevereiro (segunda-feira): Quando o carnaval está prestes, Salvador prepara tapumes defronte a suas fachadas e muros ― qual estivesse se preparando para uma batalha prevista. Tudo aqui é belo, e tudo aqui é interessante ― mesmo as favelas e mesmo os bairros nobres mais exclusivos ―, mas, (...) tudo é caro, (...) e não há o menor espaço para o ciclista. Não retornarei a Salvador enquanto eu for um estudante pobre.

6 de fevereiro (terça-feira): (...) O ônibus partiria às 8:30. Carol prometera estar lá às 8:00, mas seu metrô atrasou. Carol pisou na plataforma assim que o ônibus manobrava para partir. Sequer pude vê-la. (...) chorei (...). Carol prometeu viajar a Fortaleza em junho.

Notas a frio

Travessia

Brilhar pra sempre,/ brilhar como um farol,/ brilhar com brilho eterno,/ gente é pra brilhar

“Brilhar pra sempre,/ brilhar como um farol,/ brilhar com brilho eterno,/ gente é pra brilhar”, Vladímir Maiakóvski. Foto minha do Farol da Barra.

Lembro-me de uma certa anedota que ouvi do meu amigo serragrandense Nelson. Ele me falava de uma caravana de monges orientais que levavam sete dias na travessia entre uma montanha e outra. Ao fim dessa peregrinação, realizavam uma habitual missão espiritual.

Um engenheiro inglês que viajava pela região, vendo a situação de aparente dificuldade, ofereceu-se-lhes para construir uma ponte da última tecnologia europeia.

Com esse suporte, a peregrinação, que durava sete dias, agora poderia durar apenas dois. Os monges contestaram-no: “Mas de que outra forma poderemos conversar e meditar durante os cinco dias que nos restariam?” Para esses peregrinos, o que interessava não era o destino, mas a travessia.

A vantagem de se viajar por terra é que o atrito com o espaço faz com que se conheça mais do espaço pelo qual se viaja. Parece óbvio, mas em um trajeto por terra de uma hora partindo de um ponto A a um ponto B, um viajante conhece muito mais de A-B do que outro viajante que viaja pelo mesmo trajeto em um mágico tempo de ― digamos ― vinte minutos. Assim, a viagem é cômoda e conveniente, mas, por consequência, previsível.

Já por terra, há mais fricção. Diz algum teórico da comunicação (ou algum marxista): só há informação nas diferenças. Pela fricção, a dialética. Pela fricção, o outro. Pela fricção, o novo.

Na trajetória entre Fortaleza e Salvador, cruzei os estados do Rio Grande do Norte, Paraíba, Sergipe e, claro, Bahia. A cada parada dessa longa viagem de pouco mais de um dia de duração, eu ouvia um sotaque diferente, comia uma comida diversa, via uma paisagem distinta da anterior.

Cruzar o Brasil nordestino por terra é ver desabar o folclore forjado aqui e alhures de um Nordeste homogêneo. Claro, como foi registrado na nota “quente” do dia 24 de janeiro, vez ou outra eu (ou)via o meu povo em outro povo ― o que me surpreendia, pois eram semelhanças que eu não esperava encontrar. Mas mesmo essas semelhanças reforçam a diversidade nordestina, pois fogem das caricaturas de Nordeste.

Terra

Interior baiano. Estático de um vídeo meu.

Interior baiano. Estático de um vídeo.

Atravesso as matas baianas que, imagino, encontram-se próximas do litoral. Daí a algumas horas, chego a Salvador. Essa paisagem rural evoca aquela de “Grande Sertão: Veredas”, romance do mineiro João Guimarães Rosa. Não por acaso: se não falseio, aquela era a região ao sul de Bahia, fronteiriça com Minas Gerais, onde também acontece o romance rosiano.

De minha janela avultam buritizais, mata miúda e verde, eventualmente carnaubais, tortas veredas, cancelas branquinhas, pequenas casas de largos beirais. Emoldurando essa paisagem, um tempo extraordinariamente nublado, que durou os três primeiros dias em que estive em Salvador.

Cidade

Elevador Lacerda. Foto de Bárbara.

Elevador Lacerda. Foto de Bárbara.

Como relatado na nota “quente” do dia 25 de janeiro, havia àquele dia nessa cidade uma atmosfera paulista. Salvador é, contrariando desde 2019 minhas espectativas, uma cidade cosmopolita. Salvador é, como São Paulo, uma antena do mundo ― e também um porto do mundo. Não à toa, há um grande intercâmbio entre a gente paulistana e a gente baiana.

Nas duas cidades predomina o carro, a geografia acidentada e imprevisível desenha as ruas, viadutos e linhas de metrô arranham os arranha-céus. No entanto, em São Paulo é possível lobrigar, aos poucos, uma cidade feita para o pedestre, há uma presença considerável e a contrapelo da bicicleta, e uma reivindicação pelo transporte não motorizado e público.

Por outro lado, nada disso é visível em Salvador. Aqui, o carro engoliu por completo as ruas que, apesar de curvas e feitas inicialmente à medida do pé, acomodaram-se totalmente ao corpo do automóvel.

Em todos os meus trajetos por Salvador, percebo uma “costura” entre os edifícios e entre os bairros, que falta a maioria das grandes cidades que visitei ou morei, como Fortaleza. Nesta, há uma quebra brusca entre o que é, digamos, Messejana e Bairro de Fátima, ou Mucuripe e Meireles; entre todas há portais, sinais claros do término e do início de tudo. Por vezes, até a sensação de clima muda, as gentes mudam, e, ato contínuo, a cultura muda. Há Fortalezas em Fortaleza. E há, em Fortaleza, fortalezas ― semióticas.

Já não o é em Salvador. Há entre todas as regiões soteropolitanas uma firme coesão; uma mal anuncia a outra; sabe-se, quase que por mágica, quando o bairro Graça passa a ser o bairro Canela, ou quando o Pelourinho passa a ser Santo Antônio Além do Carmo ― uma sensibilidade que custa ao viajante assimilar. O fato de que, para cada bairro nobre, há uma periferia “pendurada” ― como me fez perceber André ―, auxilia nessa “costura” urbana.

Gente

Foliões próximo ao Museu de Arte Moderna da Bahia. Foto de Bárbara.

Foliões próximo ao Museu de Arte Moderna da Bahia. Foto de Bárbara.

Uma característica que me chamou muitíssima atenção na gente de Bahia nessa volta foi sua grande afeição ao eavesdrop, i.e., “ouvir de perto alguma conversa privada sem que os falantes notem” (dicionário Cambridge).

Fazê-lo, nesse caso, não é propriamente fofocar, mas estar atento ao entorno acústico, seja para se entreter, seja para se informar do espaço imediato. Os baianos, me parece, têm ouvidos apurados e facilidade de pegar as coisas no ar.

Dessa cultura, creio, é que nasce o melhor da literatura da Bahia. Gary Provost mesmo, autor do best-seller100 ways to improve your writing”, dedica uma bela seção só para falar dos benefícios do eavesdropping ao escritor.

Com frequência, enquanto eu conversava com alguns amigos soteropolitanos em um local fechado, eles acompanhavam mais de uma conversa que rolavam no mesmo recinto, sem entretanto perder o fio do que conversávamos ― e eu, que sou mais visual do que acústico, mal conseguia compreender o que acontecia em nossa mesa, tamanha a azáfama.

Por consequência, são gente de uma refinada educação oral. Interessam-se genuinamente pelo que alguém está falando, sem interrompê-lo. No Ceará, por outro lado, é comum a interrupção da fala do outro ou que mais de uma pessoa fale ao mesmo tempo. Isso é um traço cultural cearense e não tem nada a ver com educação. Mesmo em ambientes formais, é o que acontece.

Retorno

Detalhe de grade do Museu de Arte Moderna da Bahia. Foto de Bárbara.

Detalhe de grade do Museu de Arte Moderna da Bahia. Foto de Bárbara.

Fui a Salvador quase de improviso. Como viajar pelo ID Jovem não depende de minha vontade, mas sim da disponibilidade de vagas, tomei o primeiro ônibus que surgiu em novembro ― ingenuamente sem consultar Bárbara e André sobre suas disponibilidades.

O casal ― natural de Salvador, mas nessa cidade também de férias, como eu ― ocupava-se de outros afazeres, e tinha de muito heroicamente dividir a atenção a familiares, a mim e a outros amigos.

Seus sacrifícios eram notáveis e paulatinamente fizeram-se notar ainda mais. E como eu não estava a par de tudo, muitos desencontros e mal-entendidos surgiram. Pudemos, entretanto, sentar para conversar e acertar tudo. A partir dessa viagem tão longa, sinto que, só agora ― depois de adulto ―, aprendi o valor do diálogo, do amor, e da amizade.

Aprendi também a valorizar o andar sozinho em terra estrangeira. Não era toda a hora que eu poderia contar com a companhia de André. E havia lugares em que eu próprio gostaria de ir sozinho. O jeito, então, era tomar a minha própria mão e passear comigo mesmo.

O fato de se estar temporariamente em terra estrangeira, onde não tenho raízes e onde não sou conhecido, me deu uma sensação desafiadora de liberdade antes inconcebível.

O retorno me deu ganas de buscar explorar minha própria cidade, e me fez perceber que perdi o encanto que eu tinha por ela quando me mudei para cá em 2016, encanto que era ainda mais forte do que tive por Salvador durante esta viagem.

Durante a viagem de retorno decidi que, ao pôr os pés de volta na capital cearense, procuraria turistar como quando cheguei há oito anos. É inegável a dificuldade de ver novidade naquilo que nos é familiar. Como adverte o romancista francês Marcel Proust, “A imobilidade das coisas que nos cercam talvez lhes seja imposta (...) pela imobilidade de nosso pensamento perante elas”. Tudo em um átimo pode ser novo quando nos fazemos novos.

#cotidiano


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Desde a infância me fascino pelo vário que é as línguas dos povos. Sempre me faltaram, no entanto, ferramentas para entendê-las. Por muito tempo tive por mim que aprender um idioma estrangeiro era para uma dada elite da qual nunca participei. Mas, depois de muita pesquisa, desde 2020 tenho aprendido inglês, espanhol e italiano. Em fins de 2023 comecei a estudar francês. Aprendi-os por conta própria, sem visitar aulas, nem receber tutoria particular.

Antes de relatar a minha experiência, quero explicar o título deste texto. Alguns de vocês devem ter torcido o nariz quando leram “poliglota” no topo. E com razão! “Poliglota” é um termo desses como “erudito”, “polímata”, “artista” ou alguma outra dessas palavras relativas e relativizadas, proibidas à autorreferenciação, já que só podem ser expressas por uma autoridade, mais “poliglota” ou mais “artista” do que aquele de quem se fala.

Ninguém é capaz de se olhar no espelho e falar seriamente de si para consigo, p. e., “sou um artista” sem que esboce um médio sorriso de autocomicidade ou cinismo contido (se você é capaz de fazê-lo sem rir, tenho uma má notícia, e, não, não tenho o contato de um bom psiquiatra). Segundo o nosso silencioso senso comum, ninguém pode ser por si um poliglota, alguém só pode aspirar a ser um poliglota.

Normas psicossociais à parte, “poliglota” não possui consenso de definição. Usemos um parâmetro quantitativo para o definir. Uma pessoa pode ser chamada de “poliglota” a partir do momento em que domina quantas línguas? Nos três dicionários que tenho em casa tem-se “pessoa que sabe várias línguas” e “pessoa que sabe ou fala muitas línguas”. O sítio do dicionário online Dicio, mais corajoso, diz que a partir do domínio de duas línguas estrangeiras é que alguém pode ser considerado um poliglota.

Evanildo Bechara, o famoso linguista brasileiro, costuma dizer que “devemos ser poliglotas em nossa própria língua”, isto é, termos consciência de nossa língua materna em toda a sua variedade por classe, por gênero, por idade etc. Essa é a definição de “poliglota” que endosso.

Para mim, há poliglotas que só falam uma língua estrangeira, porque a assumem em sua complexidade, em todas as suas variações, que percebem o peso que leva um sotaque ou uma palavra em um dado contexto.

A partir desse pressuposto, defendo que não é propriamente um poliglota aquele que vê as línguas como corpos estanques, entidade etérea de um povo, numa só variante, ou mesmo aquele que vê nelas uma mera utilidade: a língua para trabalhar no exterior, a língua para ler os papers para a pós-graduação, a língua para falar com parentes distantes etc. Para o poliglota a língua nunca é “para algo”, mas sim uma língua é sempre uma língua ― e basta.

O poliglota não tem uma competência, mas uma atitude. Ele é um curioso irremediável a respeito do estrangeiro, a ponto de querer apreender a fala deste em primeira mão ― e não o julga de modo algum. Um não poliglota separa as línguas entre “relevantes” ou “irrelevantes” por um parâmetro arbitrário, como o número de falantes ou a quantidade de artigos científicos numa plataforma acadêmica tal ou qual.

Para o meu irmão Anderson, é uma ideia de Chirico aprender o francês, pois esta tem poucos falantes, se a compararmos com o espanhol, p. e. Escapa-lhe, no entanto, a longeva história da língua francesa, sua influência sobre outros idiomas (inclusive sobre o português), ou mesmo a produção intelectual de seus falantes, sejam ex-colonizadores ou ex-colonizados, que faz com que ela seja não só uma língua de milhões no presente, mas de trilhões na história.

Encerrado este preâmbulo do qual eu não poderia correr, neste texto relatarei o meu percurso para aprender línguas, i. e., o método de aprendizado que adotei, os canais e os grupos que me auxiliaram, e a minha relação com elas antes, durante e depois da aquisição linguística. Espero que isto ajude àqueles que pretendem se aventurar no aprendizado de línguas ou àqueles que precisam de mais meios pelos quais estudá-las.

Inglês

Minha jornada com inglês inicia em 2019. Eu pelejava para aprendê-lo nesse período durante as horas vagas da minha graduação em Língua Portuguesa, com conversações entre colegas do curso de inglês. No entanto, a frequente correção de pronúncia (e sempre, sempre de pronúncia) me desanimava. Além disso, eu tinha uma implacável resistência ao inglês por não ter, naquele momento, o menor interesse pelos Estados Unidos (como se este fosse o único país anglófono!). Iria aprendê-la como passatempo e não tinha então um motivação razoável para seu estudo.

Vem 2020, o ano um da pandemia de Covid-19, e, consigo, vêm a reclusão doméstica, o isolamento social e, também, muito tempo livre. Precisava ocupar a cabeça. Se não me deprimi durante a pandemia, foi graças ao estudo de inglês.

Com o passar dos meses, conheço outras referências de países anglófonos. Senti vontades de ler, p. e., o Understanding Media, do teórico em comunicação canadense Marshall McLuhan, um best-seller a respeito do efeito dos meios de comunicação sobre a sociedade. Senti vontades de ler Dubliners, livro de contos do irlandês James Joyce. Além desses, durante esse período eu quis reler ABC of Reading, um longo ensaio do poeta estadunidense Ezra Pound a respeito da literatura anglófona, que eu lera traduzido anos antes, e que, no entanto, apresentava a maioria dos poemas em inglês. Decidi aprender a língua para tentar lê-los em texto original.

Agora eu tinha um “porquê” de aprendê-la, faltava o “como”. E esse “como”, que era o “estímulo compreensível” (Comprehensible Input), me foi apresentado por um vídeo que conheci em um fórum de discussão. Em lugar de explicá-lo, prefiro que vocês assistam ao vídeo por si mesmos (possui legendas em português):

Focado mais na aquisição de vocabulário contextualizado do que na de vocabulário “em estado de dicionário”, mais no prazer do que na disciplina, Comprehensible Input é o método de aprendizado ideal para estudantes autodidatas. Como é mostrado no vídeo acima, ela parte de uma hípotese de aquisição de linguagem apontada pelo linguista estadunidense Stephen Krashen, e foi muito divulgada pelo poliglota e youtubeiro canadense Steven Kaufmann, quem viria a ser a minha maior referência para o aprendizado de inglês.

Com Steve aprendi que uma das coisas mais importantes para desenvolver bem a escuta de um idioma é ouvi-lo por um voz agradável. Enquanto ele ensinava como aprender línguas, eu aprendia inglês ouvindo sua dicção impecável ― aprendizagem com meta-aprendizagem. Também com ele aprendi que é possível aprender no que ele chama de lazy mode (ou como se diz no Brasil, “por osmose”), com atividades que não exigem tanto foco e que me agradem, como assistir a vídeos na internet ou ouvir podcasts, o que me foi importante, porque eu detestava estudos à moda escolar, como fazer exercícios de fixação e revisar conteúdo.

Além dos livros que li, e de muita escuta de Steve Kaufmann, para aprender inglês revi alguns filmes de que gostava, assisti bastante a séries, sempre com legendas em inglês, como manda a cartilha Comprehensible Input. Às vezes lhes assistia até a contragosto, porque não sou muito de série, mas ao fim acabava gostando. Twilight Zone, The Office estadunidense e The Office britânico são algumas delas (e vamos combinar aqui que The Office britânico é bem mais consistente e criativo do que o estadunidense). Cofcof... Sigamos.

Espanhol

Em 2022, quando vi que era capaz de ler um livro em língua inglesa sem engasgar, decidi que já era hora de estudar espanhol ― parada obrigatória para estudantes falantes de línguas neolatinas.

Ignorante que era da cultura hispânica ou latino-americana, esperava muito pouco do estudo de espanhol ― y entonces me mordí la lengua. O carro-chefe desse estudo foi novamente a literatura: queria ler os escritores do el boom latinoamericano ― García Marquez, Jorge Luiz Borges, Julio Cortázar etc.

No entanto, eu precisava de outra mídia fonte de estudo que não fosse o livro ou o vídeo online, uma vez que, pouco antes, eu começara a trabalhar, tendo de usar transporte público por duas horas diárias. Ler em movimento dentro de uma topique debaixo de sol a pino, vocês sabem, ninguém merece! Além disso, na maior parte do tempo eu estava sem internet móvel, impossibilitado de assistir a vídeos.

A solução: podcasts. Logo de cara, numa pesquisa sobre programas de áudio da América Latina, conheci dois dos meus favoritos até hoje: El Hilo e Radio Ambulante. Ambos são iniciativas da rádio estatal estadunidense NPR, cuja maior parte da equipe é argentina. O primeiro faz reportagens semanais aprofundadíssimas sobre temas quentes do continente, e o segundo conta crônicas latino-americanas. O trabalho de sonoplastia dos dois é impecável. Só de ouvir a introdução do episódio semanal de El Hilo já me arrepio da cabeça aos pés!

A famigerada abertura aparece em 1:15.

Pelos dois programas gargalhei, chorei, me informei, até participei das enquetes de balanço de público, e só não contribuí com a iniciativa, porque, vocês sabem... estudante universitário etc. e tal. Mas acima de tudo me senti mais sintonizado com a minha “quebrada latino-americana” (como dizem os meninos do Xadrez Verbal, outro podcast de que gosto).

E o melhor desses programas é que oferecem as transcrições nos seus sites, que inclusive podem ser recebidos via RSS. No início, quando eu ainda não tinha me acostumado com a velocidade da fala hispânica e nem com o sotaque portenho, na maior parte do tempo estava lendo as transcrições enquando ouvia os episódios ― o que também faz parte da cartilha Comprehensible Input.

Dentre os youtubeiros que me auxiliaram no estudo de espanhol está o Spanish After Hours, canal da simpaticíssima, engraçadíssima, didática, carismática e (ai...) apaixonante Laura (seu nome fictício), que também segue o método Comprehensible Input, e cujos vídeos têm edições impecáveis. Infelizmente Laura tem publicado pouco desde o último ano. Mas o seu acervo já ajuda bastante estudantes iniciantes e intermediários.

Das séries em espanhol, assisti à Casa de Papel, a qual parei na segunda temporada (a sequência me pareceu indigerível), e também à Nada, série argentina de 2023 com participação de Robert De Niro.

A língua espanhola é hoje a língua estrangeira que mais utilizo, seja para me entreter ou me informar, seja para conversar com os imigrantes ou turistas hispanohablantes com que me esbarro nas ruas de Fortaleza.

Italiano

A língua italiana me foi um problema porque, apesar de ela me agradar muito, todas as minhas referências desse país eram não verbais: me agradava a sua arquitetura moderna e antiga, a sua pintura moderna e antiga e a sua música de concerto (instrumental). Seu cinema até poderia me auxiliar, mas ele é desde sempre muito sofisticado, e não o entender poderia me frustrar. Tentar ler livros sobre esses assuntos já no início do estudo seria precoce demais. E para completar, eu não conhecia de antemão nem um nome sequer da literatura italiana.

Ainda havia o agravante da Itália não ter uma grande cultura de compartilhamento na internet. Só para se ter ideia, encontrei o ensaio Saper vedere l'architettura, de Bruno Zevi, traduzido em todas as línguas por mim conhecidas: português, inglês e espanhol ― mas não em italiano.

Por muito tempo esse vácuo linguístico me atormentou. Até que um dia meu amigo Nelson me doou alguns gibis italianos traduzidos, como Tex Willer, Mágico Vento e Julia Kendall. Aí a ficha caiu: vi o quanto o trabalho quadrinista italiano era criativo! Olhei algumas reproduções dos quadrinhos originais. Seu texto era coloquial, mas não difícil de ser compreendido. Decidi então me concentrar nessa mídia para aprender italiano.

Pesquisei quadrinhos por alguns meses em portais de torrent. Como havia poucas sementes, encontrá-los exigiu um trabalho análogo ao da arqueologia e ao da agricultura (que vocês me perdoem o trocadilho). Dentre os disponíveis estavam Dylan Dog, Corto Maltese, além do já mencionado Tex. Além desses, em sebos encontrei uma edição caprichada de L'Uomo Ragno, versão italiana do Homem-Aranha.

Para fazer o “meio de campo” linguístico, segui o canal Learn Italian With Lucrezia, que não segue propriamente o Comprehensible Input, pois se concentra muito em gramática (Lucrezia é professora de formação), mas que publica vídeos em formato de vlog, em que mostra as cidades que ela visita, o que ajuda muitíssimo a agregar vocabulário.

Mais recentemente comecei também a acompanhar o canal do Youtube Daily Cogito e, pelo TikTok, o perfil @whitewhalecafe, dois canais em que se fala sobre filosofia ― aparentemente um dos temas preferidos da gente italiana. Dentre os filmes italinas dos quais gostei estão La Vitta è Bella e Cinema Paradiso.

Francês

Sinto que o aprendizado de francês será duro, mas fluido, uma vez que, desde muito cedo ouço falar da língua. Já no primeiro mês de estudo, eu era capaz de ler textos didáticos em francês sem engasgar. Além disso, conheço de antemão três outras muito influenciadas por ela: inglês, italiano e português. Quero ler Arthur Rimbaud, assistir ao Godard, folhear as Aventuras de Tintin, cantar as peças de Clément Janequin. Por enquanto, estou mais preocupado em adquirir vocabulário. Dois dos principais meios para tanto tem sido os vídeos de ensino de língua francesa, focados em vocabulário, com que me esbarro pelos reels do Instagram, e um canal do Youtube chamado French Comprehensible Input, do suiço Lucas.

O Clube Poliglota

O meu esforço contínuo durante meus estudos era de manter uma boa variedade de mídias de estudos, buscando meios de ler, ouvir e assistir em um idioma estrangeiro sobre os mais diversos temas. Falar em outra língua nunca foi uma prioridade para mim, até porque, como defende Steve Kaufmann, não é sequer necessário falar em outros idiomas para ser um poliglota ― basta compreendê-los. Mas assim era também porque, como estudante autodidata, eu não tinha incentivo externo para praticá-los.

Essa foi a situação até meados de 2023. Enquanto estava de férias na Serra Grande em julho daquele ano, pelo grupo de Whatsapp da minha graduação, recebo um print de uma notícia do jornal O Povo a respeito do Clube Poliglota, um encontro gratuito e não institucional para conversação em idiomas estrangeiros. Decido que, ao retornar a Fortaleza, faria uma visita a um de encontros que ocorriam semanalmente nas noites de sábado, numa praça de um bairro nobre fortalezense.

Desde então, os encontros semanais se tornaram um programa obrigatório para mim. Por conta da socialização com pessoas de todas as idades e nacionalidades, além de aprender organicamente durante os encontros, tenho recebido mais referências das línguas que estudo, e me sentido cada vez mais motivado a estudá-las.

Mais recentemente soube com coordenadores do Clube Poliglota que este é um projeto voluntário e internacional. A maioria das metrópoles brasileiras são contempladas com uma célula do CP, entre as quais estão São Luís, Salvador, Natal, São Paulo, Belo Horizonte, além de Fortaleza, cidade pioneira do projeto no Brasil, se não a primeira no país. Caso queira saber se a sua cidade possui uma célula ou pretende iniciar uma, entre em contato com alguns desses perfis de Instagram acima linkados.

So what? ¿Y ahora? Che cosa fare?

Ainda penso em aprender outras, as mais diferentonas que há: uma língua artificial, como esperanto; uma língua morta ou antiga, como o latim ou o grego antigo; e uma língua sem alfabeto romano, como o russo ou o chinês-mandarim. No entanto, pelo método que adotei, me esbarro na limitação de só poder estudar línguas verbais e com registro midiático. Pelo Comprehensible Input, eu enfrentaria sérios obstáculos se partisse para o estudo de uma língua não verbal, como LIBRAS, ou uma língua minoritária, como o tupi-guarani. Espero que com a experiência dos anos esta dúvida se sane, e os caminhos de novas línguas se abram para mim.

Decidi escrever este texto tanto como uma forma de introduzir aos interessados em aprendizado em línguas ou de auxiliar aqueles que necessitam de mais recursos de estudo. Mas também o escrevi para fazer uma homenagem a esta que tem sido minha atividade favorita dos últimos anos.

Por conta do estudo de línguas, me aprimorei como pessoa: eu que era tão introvertido, passei a me comunicar mais; criei novos hábitos, como assistir a séries, ler quadrinhos e ouvir podcasts; passei a valorizar mais as tecnologias de comunicação, que tem incentivado cada vez mais pessoas a aprender as coisas em geral, e os idiomas estrangeiros em especial; aprendi mais sobre a minha própria língua materna; ampliei minha perspectiva sobre o mundo por conta dos contatos que tive com estrangeiros etc., etc., etc.

Além disso gostaria ainda de fazer loas àqueles que, de longe, sem me conhecer e sem pedir nada em troca, mais me incentivaram a estudar idiomas estrangeiros. Thanks, Steve! Gracias, Laura! Ti ringrazio, Lucrezia! Merci, Lucas!

Colagem em grade 2x2 com quatro imagens. Na primeira, está o canadense Steve, um homem idoso branco e sem barba, de cabelo branco, vestindo casaco azul de zíper. Na segunda está a espanhola Laura, uma mulher jovem e branca, de cabelos castanhos curtos, vestindo uma regata cinza de alças. Na terceira, está a italiana Lucrezia, uma mulher jovem e branca, de cabelos longos e pretos, vestindo óculos de grau e uma camisa longa e branca com colarinho em detalhe preto. Na quarta está o suiço Lucas, um homem jovem branco e com barba rala, vestindo touca cinza e camiseta preta, e está segurando com as duas mãos uma página de folha onde está manuscrito “Lucas”. Todas as imagens são reproduções de vídeos de seus canais no Youtube.

#cotidiano


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Fotografia do livro “Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond: Fotobiografias”. O livro está sobre um tapete vermelho, e em sua capa há o título do livro em letras garrafais interpolado por três pinturas dos três autores.

Leio “Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond: Fotobiografias” (Edições Alumbramento, 2000). Um belo calhamaço. Esse é um compêndio de cartas e escritos literários dos três autores, ilustrado com fotografias, manuscritos e desenhos autorais seus ― tudo em papel couché, caprichosamente diagramado, só vocês vendo. Foi um presente de um grande amigo meu da Serra Grande, o Nelson Cunha, que queria então se desfazer de sua biblioteca particular acumulada por mais de 30 anos ― e que, segundo ele, já não tinha razão de ser.

Enquanto leio o catatau, penso em como antigamente, até através das cartas e bilhetes, as pessoas faziam literatura. Alguns desses escritos não eram simples comunicação utilitária de boas novas, mas uma íntima, privada e ― por que não? ― egoísta literatura, pois de um para um. E aí vêm os biógrafos, vêm o Domínio Público, e é pura sorte nossa de leitores sabermos da beleza que esses autores cochichavam entre si por detrás das cortinas do mundo.

Não quero e nem posso me esticar neste comentário frente ao belo que são os escritos que irei compartilhar aqui. A seguir, duas cartas de Mário de Andrade para Carlos Drummond de Andrade. Na primeira delas, de 1925, Mário lamenta não poder ajudar a elevar a baixo autoestima de Carlos. Na segunda, de 1924, Mário fala sobre a importância de se pensar a cultura como um trabalho coletivo e a longo prazo.

“Não sou capaz de aconselhar você, Carlos. Tudo isso você já se disse. Estou convencido que é o grande desejo de ver você feliz que me deixa assim incapaz de fazer considerações sobre o assunto, de fazer literatura. Penso, repenso e não sai nada. Meu pensamento se resolve todo em afeição. O que vale talvez um pouco nisto tudo é o que eu disse atrás e repito: é certo que uma pessoa da sua sensibilidade e da sua volúpia de consciência não pode ter a felicidade comum que é feita de insensibilidade e de inconsciência. A felicidade de você tem de ser espiritual e a melhor maneira de alcançar isso é ter não a vaidade mas a coragem de si mesmo. O dia em que você sem se amolar com o que disse fulano e sem pensar no que fulano dirá, realizar você pra você o que quer dizer pros outros também, pois que o homem é social, virá a calma grande. Aliás, pois que consciente, sempre rajada de temores e inquietações. (...) É possível que estas filosostrias não adiantem nada pra você... Me perdoe. Já disse que me senti numa cruel incapacidade de responder à carta e pedido de você. Mas acredite? Carlos, alguém de S. Paulo está vivendo a tortura de você, as suas inquietações com profundo carinho e uma fraternidade que não pode ser maior. Talvez seja a vagueza de assunto tão vasto e particular que me deixa assim e não perco a esperança de pra outra vez ser mais útil para você. Se quiser que pensemos juntos me escrea contando tudo à medida que os problemas e os casos forem aparecendo na sua vida. Diante da vida eu jamais tenho o prazer dum espetáculo, eu vivo. Eu não contemplarei você, não tirarei de você motivos de literatura, eu viverei você.

― Carta de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, 1925 (grifos meus)

Eu não amo o Brasil espiritualmente mais que a França ou a Cochichina. Mas é no Brasil que me acontece viver e agora só no Brasil eu penso e por ele tudo sacrifiquei. A língua que escrevo, as ilusões que prezo, os modernismos que faço são pro Brasil. E isso nem sei se tem mérito porque me dá felicidade, que é a minha razão de ser da vida. Foi preciso coragem, confesso, porque as vaidades são muitas. Mas a gente tem a propriedade de substituir uma vaidade por outra. Foi o que fiz. A minha vaidade hoje é de ser transitório. Estraçalho a minha obra. Escrevo língua imbecil, penso ingênuo, só pra chamar atenção dos mais fortes do que eu pra este monstro mole e indeciso que é o Brasil. Os gênios nacionais não são de geração esportânea. Eles nascem porque um amontoado de sacrifícios humanos anteriores lhes preparou a altitude necessária de onde podem descortinar e revelar uma nação. Que me importa que a minha obra não fique? É uma vaidade idiota pensar em ficar, principalmente quando não se sente dentro do corpo aquela fatalidade inelutável que move a mão dos gênios*. O importante não é ficar, é viver. Eu vivo.

― Carta de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, 1924 (grifos meus).

#arte


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Capa do disco “São Mateus não é um lugar assim tão longe”. Nela está, em primeiro plano, a nuca de Rodrigo Campos, que observa um jogo de futebol de várzea ao fundo, em um campo de areia alaranjada.

Talvez porque a linguagem musical seja para nós mais um recurso de sublimação do que um recurso de imanência, o fato é que é raro encontrar no meio urbano uma música autóctone, “da terra”, que soe como a trilha sonora de sua paisagem, e que dê a ver e ouviver a “cor” de seu lugar de origem — sem, no entanto, mitificá-lo ou folclorizá-lo.

Difícil ouvir por aí peças como Las Cuatro Estaciones Porteñas de Astor Piazzola, que fazem imaginar as ruas vazias de Buenos Aires, ou como as Gymnopédies de Erik Satie que nos projeta a modorra de um boulevard parisiense ao crepúsculo, ou mesmo ouvir alguma das Bachianas de Villa-Lobos, que é capaz de recordar a lida dos trens cargueiros de café do período da Era Vargas. Esse caráter autóctone-musical possui “São Mateus não é um lugar assim tão longe”, um disco que ecoa o subúrbio de São Paulo.

“São Mateus...”, álbum de estreia do cantautor paulista Rodrigo Campos, neste ano completará 15 anos desde seu lançamento em CD, em 2009. Sem grande alcance do público mainstream no seu período de lançamento, mas um sucesso entre o público interessado, rendendo ao músico o prêmio Cata-Vento de “Melhor disco” do ano de 2009, “São Mateus...” é, com certeza, um dos discos mais criativos de sua geração, portador de uma consistência conceitual e sonora rara na música brasileira do século XXI.

Rodrigo Campos tem obras com Juçara Marçal e Romulo Fróes, e já tocou junto de Arnaldo Antunes, Vanessa da Mata e Céu ― através de quem Rodrigo conheceu Beto Villares, aquele que seria um dos futuros produtores de “São Mateus...”. É de Rodrigo Campos os versos que compõem o refrão de “Duas de cinco” (2013), do Criolo:

Compro uma pistola do vapor,
Visto o jaco califórnia azul.
Faço uma mandinga pro terror
— E vou.

Esses versos, sampleadas de “Califórnia Azul”, são ― creio ― a melhor introdução possível à obra de Rodrigo Campos. Está tudo aí: a temática cotidiana, o trabalho profundamente musical sobre a palavra, o suave dedilhado sobre a corda vocal, o canto minimalista nunca sozinho, sempre em diálogo com os demais instrumentos — uma herança da Bossa Nova que poucos artistas da atualidade praticam.

Nesse disco, 12 de das 14 faixas narram, com humanidade e sem o menor traço de estereótipos, a vida nas periferias da Grande São Paulo, a fim de montar um mosaico de retratos de uma classe trabalhadora em ascensão, que convive com a pobreza ao tempo que paulatinamente se intelectualiza e prospera.

Dentre esses retratos estão a carismática e focada professora de “Lúcia”; a doce infância de brincadeiras e de música de “Cavaquinho” em contraste com a amarga infância explorada e abusada de “Mangue e Fogo”; os afetos clandestinos de “Os olhos dela”, “Califórnia Azul” e “Amor na Vila Sônia” ― retratos ambientados na calçada de uma cena de crime, no campo de futebol, no bar da estação de trem, em uma construção, no funeral do antigo vizinho de portão...

Fotografia de Rodrigo Campos no período da gravação de “São Mateus...”. Rodrigo Campos é um homem branco de rosto barbeado e de cabelos pretos, vestindo um casaco de cor creme e de gola alta, e uma boina europeia também de cor creme.

Mas não é só por isso que esse disco pode ser visto como uma música autóctone, mas também por sua natureza sonora. A música de “São Mateus...” é ao mesmo tempo interessada nas lições do Samba, do Pagode e da Bossa Nova, mas também na pesquisa acústico-eletrônica do Rap e no sincopado do Jazz contemporâneo, sempre com aquele ímpeto de invenção propondo novas sensibilidades, própria de uma São Paulo antropofágica, em termos de Oswald de Andrade. “São Mateus...” desvela uma São Paulo ao mesmo tempo alicerçada no concreto das tradições, mas sintonizada na frequência do que há no presente do mundo.

Somada à sua riqueza melódica, harmônica e textual, “São Mateus...” carrega um grande arsenal de timbres, verdadeiros comentadores não verbais das personagens sobre as quais as canções falam. Entre aqueles instrumentos que se destacam está a flutuante guitarra elétrica de “Fim da Cidade”, a prosa entre os sopros, o cavaco e o sintetizador em “Os olhos dela”, os gentis pitacos do acordeão e do cavaco em “Cavaquinho”, os golpes staccatti das cordas friccionadas em “Salve, Fabrício”, o malandro sete cordas de “Isac”. E nem se fale da maravilhosa voz de Luísa Maita em “Os olhos dela”, “Amor na Vila Sônia” e “Mangue e fogo”, talvez o instrumento musical melhor aplicado em todo o disco...

Tudo isso embalado na produção de som que funciona, não como um mero serviço técnico, mas como um instrumento musical per se, que participa ativamente na formulação do signo musical final, seja revestindo os sons acústicos com um belo tratamento eletrônico, seja acrescentando delays imensos às percussões ou fazendo uma boa distribuição binaural.

Conheci “São Mateus...” por ocasião do aniversário da cidade de São Paulo em 2022, quando o poeta e tradutor Arthur Lungov compartilhou em seu Instagram várias canções que, para ele, seriam cartões postais da capital. Entre elas estavam “Amor na Vila Sônia”, que recomendo como introdução ao disco. Recomendo ouvi-la durante uma viagem de ônibus metropolitano ao fim de uma tarde simples, talvez o cenário ideal para ouvir a música de Rodrigo Campos.

Como música autóctone que é, quando ouço o debut de Rodrigo Campos, ainda que eu esteja sendo sacolejado dentro de um micro-ônibus em Fortaleza, sinto que passeio por Perus, Pinheiros, São Mateus, Aricanduva, Vila Sônia e tantas outras cidades paulistanas e tantos outros bairros paulistas, aí vejo que São Paulo não é um lugar assim tão longe!

#arte


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