Ideias de Chirico

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Estas Ideias de Chirico estão organizadas em três grandes eixos:

#arte #cotidiano #tecnologia

Fotografia do livro “Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond: Fotobiografias”. O livro está sobre um tapete vermelho, e em sua capa há o título do livro em letras garrafais interpolado por três pinturas dos três autores.

Leio “Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond: Fotobiografias” (Edições Alumbramento, 2000). Um belo calhamaço. Esse é um compêndio de cartas e escritos literários dos três autores, ilustrado com fotografias, manuscritos e desenhos autorais seus ― tudo em papel couché, caprichosamente diagramado, só vocês vendo. Foi um presente de um grande amigo meu da Serra Grande, o Nelson Cunha, que queria então se desfazer de sua biblioteca particular acumulada por mais de 30 anos ― e que, segundo ele, já não tinha razão de ser.

Enquanto leio o catatau, penso em como antigamente, até através das cartas e bilhetes, as pessoas faziam literatura. Alguns desses escritos não eram simples comunicação utilitária de boas novas, mas uma íntima, privada e ― por que não? ― egoísta literatura, pois de um para um. E aí vêm os biógrafos, vêm o Domínio Público, e é pura sorte nossa de leitores sabermos da beleza que esses autores cochichavam entre si por detrás das cortinas do mundo.

Não quero e nem posso me esticar neste comentário frente ao belo que são os escritos que irei compartilhar aqui. A seguir, duas cartas de Mário de Andrade para Carlos Drummond de Andrade. Na primeira delas, de 1925, Mário lamenta não poder ajudar a elevar a baixo autoestima de Carlos. Na segunda, de 1924, Mário fala sobre a importância de se pensar a cultura como um trabalho coletivo e a longo prazo.

“Não sou capaz de aconselhar você, Carlos. Tudo isso você já se disse. Estou convencido que é o grande desejo de ver você feliz que me deixa assim incapaz de fazer considerações sobre o assunto, de fazer literatura. Penso, repenso e não sai nada. Meu pensamento se resolve todo em afeição. O que vale talvez um pouco nisto tudo é o que eu disse atrás e repito: é certo que uma pessoa da sua sensibilidade e da sua volúpia de consciência não pode ter a felicidade comum que é feita de insensibilidade e de inconsciência. A felicidade de você tem de ser espiritual e a melhor maneira de alcançar isso é ter não a vaidade mas a coragem de si mesmo. O dia em que você sem se amolar com o que disse fulano e sem pensar no que fulano dirá, realizar você pra você o que quer dizer pros outros também, pois que o homem é social, virá a calma grande. Aliás, pois que consciente, sempre rajada de temores e inquietações. (...) É possível que estas filosostrias não adiantem nada pra você... Me perdoe. Já disse que me senti numa cruel incapacidade de responder à carta e pedido de você. Mas acredite? Carlos, alguém de S. Paulo está vivendo a tortura de você, as suas inquietações com profundo carinho e uma fraternidade que não pode ser maior. Talvez seja a vagueza de assunto tão vasto e particular que me deixa assim e não perco a esperança de pra outra vez ser mais útil para você. Se quiser que pensemos juntos me escrea contando tudo à medida que os problemas e os casos forem aparecendo na sua vida. Diante da vida eu jamais tenho o prazer dum espetáculo, eu vivo. Eu não contemplarei você, não tirarei de você motivos de literatura, eu viverei você.

― Carta de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, 1925 (grifos meus)

Eu não amo o Brasil espiritualmente mais que a França ou a Cochichina. Mas é no Brasil que me acontece viver e agora só no Brasil eu penso e por ele tudo sacrifiquei. A língua que escrevo, as ilusões que prezo, os modernismos que faço são pro Brasil. E isso nem sei se tem mérito porque me dá felicidade, que é a minha razão de ser da vida. Foi preciso coragem, confesso, porque as vaidades são muitas. Mas a gente tem a propriedade de substituir uma vaidade por outra. Foi o que fiz. A minha vaidade hoje é de ser transitório. Estraçalho a minha obra. Escrevo língua imbecil, penso ingênuo, só pra chamar atenção dos mais fortes do que eu pra este monstro mole e indeciso que é o Brasil. Os gênios nacionais não são de geração esportânea. Eles nascem porque um amontoado de sacrifícios humanos anteriores lhes preparou a altitude necessária de onde podem descortinar e revelar uma nação. Que me importa que a minha obra não fique? É uma vaidade idiota pensar em ficar, principalmente quando não se sente dentro do corpo aquela fatalidade inelutável que move a mão dos gênios*. O importante não é ficar, é viver. Eu vivo.

― Carta de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, 1924 (grifos meus).

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Capa do disco “São Mateus não é um lugar assim tão longe”. Nela está, em primeiro plano, a nuca de Rodrigo Campos, que observa um jogo de futebol de várzea ao fundo, em um campo de areia alaranjada.

Talvez porque a linguagem musical seja para nós mais um recurso de sublimação do que um recurso de imanência, o fato é que é raro encontrar no meio urbano uma música autóctone, “da terra”, que soe como a trilha sonora de sua paisagem, e que dê a ver e ouviver a “cor” de seu lugar de origem — sem, no entanto, mitificá-lo ou folclorizá-lo.

Difícil ouvir por aí peças como Las Cuatro Estaciones Porteñas de Astor Piazzola, que fazem imaginar as ruas vazias de Buenos Aires, ou como as Gymnopédies de Erik Satie que nos projeta a modorra de um boulevard parisiense ao crepúsculo, ou mesmo ouvir alguma das Bachianas de Villa-Lobos, que é capaz de recordar a lida dos trens cargueiros de café do período da Era Vargas. Esse caráter autóctone-musical possui “São Mateus não é um lugar assim tão longe”, um disco que ecoa o subúrbio de São Paulo.

“São Mateus...”, álbum de estreia do cantautor paulista Rodrigo Campos, neste ano completará 15 anos desde seu lançamento em CD, em 2009. Sem grande alcance do público mainstream no seu período de lançamento, mas um sucesso entre o público interessado, rendendo ao músico o prêmio Cata-Vento de “Melhor disco” do ano de 2009, “São Mateus...” é, com certeza, um dos discos mais criativos de sua geração, portador de uma consistência conceitual e sonora rara na música brasileira do século XXI.

Rodrigo Campos tem obras com Juçara Marçal e Romulo Fróes, e já tocou junto de Arnaldo Antunes, Vanessa da Mata e Céu ― através de quem Rodrigo conheceu Beto Villares, aquele que seria um dos futuros produtores de “São Mateus...”. É de Rodrigo Campos os versos que compõem o refrão de “Duas de cinco” (2013), do Criolo:

Compro uma pistola do vapor,
Visto o jaco califórnia azul.
Faço uma mandinga pro terror
— E vou.

Esses versos, sampleadas de “Califórnia Azul”, são ― creio ― a melhor introdução possível à obra de Rodrigo Campos. Está tudo aí: a temática cotidiana, o trabalho profundamente musical sobre a palavra, o suave dedilhado sobre a corda vocal, o canto minimalista nunca sozinho, sempre em diálogo com os demais instrumentos — uma herança da Bossa Nova que poucos artistas da atualidade praticam.

Nesse disco, 12 de das 14 faixas narram, com humanidade e sem o menor traço de estereótipos, a vida nas periferias da Grande São Paulo, a fim de montar um mosaico de retratos de uma classe trabalhadora em ascensão, que convive com a pobreza ao tempo que paulatinamente se intelectualiza e prospera.

Dentre esses retratos estão a carismática e focada professora de “Lúcia”; a doce infância de brincadeiras e de música de “Cavaquinho” em contraste com a amarga infância explorada e abusada de “Mangue e Fogo”; os afetos clandestinos de “Os olhos dela”, “Califórnia Azul” e “Amor na Vila Sônia” ― retratos ambientados na calçada de uma cena de crime, no campo de futebol, no bar da estação de trem, em uma construção, no funeral do antigo vizinho de portão...

Fotografia de Rodrigo Campos no período da gravação de “São Mateus...”. Rodrigo Campos é um homem branco de rosto barbeado e de cabelos pretos, vestindo um casaco de cor creme e de gola alta, e uma boina europeia também de cor creme.

Mas não é só por isso que esse disco pode ser visto como uma música autóctone, mas também por sua natureza sonora. A música de “São Mateus...” é ao mesmo tempo interessada nas lições do Samba, do Pagode e da Bossa Nova, mas também na pesquisa acústico-eletrônica do Rap e no sincopado do Jazz contemporâneo, sempre com aquele ímpeto de invenção propondo novas sensibilidades, própria de uma São Paulo antropofágica, em termos de Oswald de Andrade. “São Mateus...” desvela uma São Paulo ao mesmo tempo alicerçada no concreto das tradições, mas sintonizada na frequência do que há no presente do mundo.

Somada à sua riqueza melódica, harmônica e textual, “São Mateus...” carrega um grande arsenal de timbres, verdadeiros comentadores não verbais das personagens sobre as quais as canções falam. Entre aqueles instrumentos que se destacam está a flutuante guitarra elétrica de “Fim da Cidade”, a prosa entre os sopros, o cavaco e o sintetizador em “Os olhos dela”, os gentis pitacos do acordeão e do cavaco em “Cavaquinho”, os golpes staccatti das cordas friccionadas em “Salve, Fabrício”, o malandro sete cordas de “Isac”. E nem se fale da maravilhosa voz de Luísa Maita em “Os olhos dela”, “Amor na Vila Sônia” e “Mangue e fogo”, talvez o instrumento musical melhor aplicado em todo o disco...

Tudo isso embalado na produção de som que funciona, não como um mero serviço técnico, mas como um instrumento musical per se, que participa ativamente na formulação do signo musical final, seja revestindo os sons acústicos com um belo tratamento eletrônico, seja acrescentando delays imensos às percussões ou fazendo uma boa distribuição binaural.

Conheci “São Mateus...” por ocasião do aniversário da cidade de São Paulo em 2022, quando o poeta e tradutor Arthur Lungov compartilhou em seu Instagram várias canções que, para ele, seriam cartões postais da capital. Entre elas estavam “Amor na Vila Sônia”, que recomendo como introdução ao disco. Recomendo ouvi-la durante uma viagem de ônibus metropolitano ao fim de uma tarde simples, talvez o cenário ideal para ouvir a música de Rodrigo Campos.

Como música autóctone que é, quando ouço o debut de Rodrigo Campos, ainda que eu esteja sendo sacolejado dentro de um micro-ônibus em Fortaleza, sinto que passeio por Perus, Pinheiros, São Mateus, Aricanduva, Vila Sônia e tantas outras cidades paulistanas e tantos outros bairros paulistas, aí vejo que São Paulo não é um lugar assim tão longe!

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Imagem: pintura de Giorgio de Chirico.

Sou Arlon de Serra Grande, i.e., meu nome é Arlon e Serra Grande é onde eu nasci. Sou graduando em Letras Vernáculas, tenho 28 anos, um livro de poesia e ensaio por publicar ― o “Estudando Poesia” ―, e também sou o responsável por estas Ideias de Chirico.

O título deste blogue vem de uma piada interna entre mim e eu mesmo envolvendo a idiomática “ideia de jerico” e Giorgio de Chirico, o famoso pintor surrealista italiano. Muita vez costumo dizer que algo é uma “ideia de Chirico” quando o que há em jogo é tão absurdo que chega a ser surrealista.

Giorgio de Chirico lhe olhando quando você o inspira!

Imagem: Giorgio de Chirico olhando para você quando você o inspira com alguma ideia de jerico!

Estimulado por colegas do Fediverso, que tiveram a corajosa iniciativa de abrir macroblogues em plena era do algoritmo e da microinformação, decidi também fazê-lo, uma vez que precisava escrever para alguém que não fossem meus professores e outra coisa que não fossem trabalhos curriculares.

Neste espaço publicarei textos a respeito de #arte, #cotidiano e #tecnologia, sempre a nível de usuário e amador. Mas aqui publicarei acima de tudo ideias, ideias de jerico ― ou melhor: ideias de Chirico!

Tive outros blogues de temas variados em um passado bem remoto, publicando desde quadrinhos até poesias, e cheguei inclusive a escrever ensaios sobre linguagens para o Instagram. No entanto, agora gostaria de experimentar escrever para o Fediverso, que parece ter uma dinâmica muito mais orgânica do que a internet plataformizada.

Como neste espaço posso ter liberdade ortográfica como nenhum outro lugar me proporciona, optarei por sempre aportuguesar termos estrangeiros. Acostumem-se a ler palavras como “blogue”, “becape”, “rumeite” e “esmartefone”.

Creio que o aportuguesamento, essa espécie de “antropofagia linguística”, é um bom caminho para enriquecer a nossa língua, visto que isso borra os limites entre o nacional e o estrangeiro. Assim, o estrangeirismo, em vez de ficar em estado de nicho técnico ou acadêmico, pode criar raízes e ramos no nosso idioma e, ocasionalmente, tornar-se parte da língua portuguesa de fato.

Se este blogue lhe interessar, você pode segui-lo via Fediverso por @ideiasdechirico@blog.ayom.media ou via feed RSS. Também estou no Mastodon. No mais, também posso ser contatado por este endereço eletrônico: arlon.alves@protonmail.com


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