São Paulo não é um lugar assim tão longe! — 15 anos do debut solo de Rodrigo Campos

Capa do disco “São Mateus não é um lugar assim tão longe”. Nela está, em primeiro plano, a nuca de Rodrigo Campos, que observa um jogo de futebol de várzea ao fundo, em um campo de areia alaranjada.

Talvez porque a linguagem musical seja para nós mais um recurso de sublimação do que um recurso de imanência, o fato é que é raro encontrar no meio urbano uma música autóctone, “da terra”, que soe como a trilha sonora de sua paisagem, e que dê a ver e ouviver a “cor” de seu lugar de origem — sem, no entanto, mitificá-lo ou folclorizá-lo.

Difícil ouvir por aí peças como Las Cuatro Estaciones Porteñas de Astor Piazzola, que fazem imaginar as ruas vazias de Buenos Aires, ou como as Gymnopédies de Erik Satie que nos projeta a modorra de um boulevard parisiense ao crepúsculo, ou mesmo ouvir alguma das Bachianas de Villa-Lobos, que é capaz de recordar a lida dos trens cargueiros de café do período da Era Vargas. Esse caráter autóctone-musical possui “São Mateus não é um lugar assim tão longe”, um disco que ecoa o subúrbio de São Paulo.

“São Mateus...”, álbum de estreia do cantautor paulista Rodrigo Campos, neste ano completará 15 anos desde seu lançamento em CD, em 2009. Sem grande alcance do público mainstream no seu período de lançamento, mas um sucesso entre o público interessado, rendendo ao músico o prêmio Cata-Vento de “Melhor disco” do ano de 2009, “São Mateus...” é, com certeza, um dos discos mais criativos de sua geração, portador de uma consistência conceitual e sonora rara na música brasileira do século XXI.

Rodrigo Campos tem obras com Juçara Marçal e Romulo Fróes, e já tocou junto de Arnaldo Antunes, Vanessa da Mata e Céu ― através de quem Rodrigo conheceu Beto Villares, aquele que seria um dos futuros produtores de “São Mateus...”. É de Rodrigo Campos os versos que compõem o refrão de “Duas de cinco” (2013), do Criolo:

Compro uma pistola do vapor,
Visto o jaco califórnia azul.
Faço uma mandinga pro terror
— E vou.

Esses versos, sampleadas de “Califórnia Azul”, são ― creio ― a melhor introdução possível à obra de Rodrigo Campos. Está tudo aí: a temática cotidiana, o trabalho profundamente musical sobre a palavra, o suave dedilhado sobre a corda vocal, o canto minimalista nunca sozinho, sempre em diálogo com os demais instrumentos — uma herança da Bossa Nova que poucos artistas da atualidade praticam.

Nesse disco, 12 de das 14 faixas narram, com humanidade e sem o menor traço de estereótipos, a vida nas periferias da Grande São Paulo, a fim de montar um mosaico de retratos de uma classe trabalhadora em ascensão, que convive com a pobreza ao tempo que paulatinamente se intelectualiza e prospera.

Dentre esses retratos estão a carismática e focada professora de “Lúcia”; a doce infância de brincadeiras e de música de “Cavaquinho” em contraste com a amarga infância explorada e abusada de “Mangue e Fogo”; os afetos clandestinos de “Os olhos dela”, “Califórnia Azul” e “Amor na Vila Sônia” ― retratos ambientados na calçada de uma cena de crime, no campo de futebol, no bar da estação de trem, em uma construção, no funeral do antigo vizinho de portão...

Fotografia de Rodrigo Campos no período da gravação de “São Mateus...”. Rodrigo Campos é um homem branco de rosto barbeado e de cabelos pretos, vestindo um casaco de cor creme e de gola alta, e uma boina europeia também de cor creme.

Mas não é só por isso que esse disco pode ser visto como uma música autóctone, mas também por sua natureza sonora. A música de “São Mateus...” é ao mesmo tempo interessada nas lições do Samba, do Pagode e da Bossa Nova, mas também na pesquisa acústico-eletrônica do Rap e no sincopado do Jazz contemporâneo, sempre com aquele ímpeto de invenção propondo novas sensibilidades, própria de uma São Paulo antropofágica, em termos de Oswald de Andrade. “São Mateus...” desvela uma São Paulo ao mesmo tempo alicerçada no concreto das tradições, mas sintonizada na frequência do que há no presente do mundo.

Somada à sua riqueza melódica, harmônica e textual, “São Mateus...” carrega um grande arsenal de timbres, verdadeiros comentadores não verbais das personagens sobre as quais as canções falam. Entre aqueles instrumentos que se destacam está a flutuante guitarra elétrica de “Fim da Cidade”, a prosa entre os sopros, o cavaco e o sintetizador em “Os olhos dela”, os gentis pitacos do acordeão e do cavaco em “Cavaquinho”, os golpes staccatti das cordas friccionadas em “Salve, Fabrício”, o malandro sete cordas de “Isac”. E nem se fale da maravilhosa voz de Luísa Maita em “Os olhos dela”, “Amor na Vila Sônia” e “Mangue e fogo”, talvez o instrumento musical melhor aplicado em todo o disco...

Tudo isso embalado na produção de som que funciona, não como um mero serviço técnico, mas como um instrumento musical per se, que participa ativamente na formulação do signo musical final, seja revestindo os sons acústicos com um belo tratamento eletrônico, seja acrescentando delays imensos às percussões ou fazendo uma boa distribuição binaural.

Conheci “São Mateus...” por ocasião do aniversário da cidade de São Paulo em 2022, quando o poeta e tradutor Arthur Lungov compartilhou em seu Instagram várias canções que, para ele, seriam cartões postais da capital. Entre elas estavam “Amor na Vila Sônia”, que recomendo como introdução ao disco. Recomendo ouvi-la durante uma viagem de ônibus metropolitano ao fim de uma tarde simples, talvez o cenário ideal para ouvir a música de Rodrigo Campos.

Como música autóctone que é, quando ouço o debut de Rodrigo Campos, ainda que eu esteja sendo sacolejado dentro de um micro-ônibus em Fortaleza, sinto que passeio por Perus, Pinheiros, São Mateus, Aricanduva, Vila Sônia e tantas outras cidades paulistanas e tantos outros bairros paulistas, aí vejo que São Paulo não é um lugar assim tão longe!

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