O que pode a tecnologia, o que não pode a tecnologia e o que podemos fazer sobre ela
from Ideias de Chirico
Disclaimer: no último dia 15 de fevereiro, na aula de Estágio Supervisionado da minha graduação de Letras, minha professora-orientadora desenvolveu um debate sobre o papel da escola em torno do letramento digital. Quando elogiei o papel das tecnologias para a formação cultural dos indivíduos com acesso a elas, minha fala foi vista como romântica. Por conta da desordem de falas, coisa natural em sala de aula, não pude desenvolver uma tréplica.
No dia seguinte, a mesma professora convidou-me para articular em texto o meu ponto de vista, que não pôde ser exposto a tempo hábil em sala de aula. O texto deveria ser publicado no grupo de Whatsapp da turma. O Whatsapp, vocês sabem, não é o ambiente ideal para o debate. Decidi então redigir uma mensagem de texto e enviar-lhe por um e-mail, cujo assunto era “O que pode a tecnologia, o que não pode a tecnologia e o que podemos fazer sobre ela”. Ela gostou tanto da mensagem que decidiu convertê-la em pdf e compartilhar com meus colegas.
O debate seguiu por escrito e hoje mesmo recebi uma resposta sobre o que escrevi.
Segue aqui embaixo a reprodução da minha mensagem. Creio que esse texto resume minhas ideias (em geral mal interpretadas) a respeito de tecnologia e sua relação com cultura e educação.
O que pode a tecnologia, o que não pode a tecnologia e o que podemos fazer sobre ela
Bom dia, professora!
Desculpe-me por não ter lhe respondido no mesmo dia em que me perguntou. Acabei protelando este texto para uma hora em que eu pudesse sentar para escrever, e essa só chegou agora de manhã [dia 18 de fevereiro]. Além disso, preferi enviar esta mensagem durante o feriado porque é quando (provavelmente) você teria algum tempo para me ler. Envio o texto por e-mail porque não acho que o Whatsapp seja um bom lugar para o debate.
Primeiro de tudo, acho natural que você interprete as minhas loas à tecnologia como uma forma de romantização sobre ela. Essa interpretação é natural em um contexto universitário, já que estamos passando por um processo de anti-intelectualismo, que se concentra bastante na internet. Qualquer elogio à internet ou algo que lhe tangencie é visto como uma romantização, já que é por essa mesma internet que se ameaça as instituições, que se busca deslegitimar os cientistas e que se agregam grupos extremistas. No entanto, essa internet faz parte de uma internet comercial, monopolizada e centralizada, dominante sim, mas que não pode resumir o uso da tecnologia.
Deve-se ter consciência neste momento das diferenças entre forma e conteúdo, estrutura e evento, veículo e informação. Claro que em certos momentos, é impossível fazer essa separação; mas que há limites, há. Minha formação não é para a qualificação binária sobre as coisas, mas para o reconhecimento do continuum entre elas. Quando as pessoas criticam a tecnologia, fazem-no à tecnologia enquanto conteúdo, evento e informação. Quando elogio a tecnologia, me refiro à tecnologia-forma, à tecnologia-estrutura e à tecnologia-veículo. Vejo que acadêmicos e estudantes da área de humanidades têm uma grande dificuldade de separar essas duas áreas e perceber também onde há uma simbiose entre elas.
Mas isso é muito natural, já que, por conta do nosso próprio objeto de estudo ― o livro ―, tornamo-nos tecnofóbicos. A tecnofobia é uma reação natural de eruditos clássicos, ultraespecialistas e estudiosos conservadores. Polímatas, poliglotas, artistas, crianças e estudantes autodidatas não têm medo das novas tecnologias e com frequência se apropriam delas para impulsionar, expandir e publicar seus próprios projetos e experimentações, em uma espécie de antropofagia midiática.
Com frequência ouço de estudantes e profissionais de Letras que eles não se importam com forma, que estilo é firula, que “o que interessa é a mensagem do texto”. No entanto, estudando poesia concreta, estudando Bakhtin, estudando semiótica, entendi que forma é discurso. “O meio é a mensagem”, Marshall McLuhan. E, como dizia o poeta concreto Haroldo de Campos, parafraseando Olavo Bilac:
Não estamos mais em tempo de ”ouvir estrelas”, mas sim de ouvir estruturas.
No primeiro momento da minha fala na aula do último dia 15, falei que as tecnologias eletrônicas impulsionam as faculdades mentais das pessoas, e que ela nos impele a sermos menos especialistas e mais polímatas. Isso não é novidade. Os primeiros a expressá-lo foram os artistas do século passado. Se por um lado, durante o século XIX tínhamos a ideia do artista como um gênio, dono de sua própria obra, especialista de sua linguagem, na virada do século XX, com a invenção de uma parafernália de tecnologias eletrônicas, vemos cada vez mais os artistas interessando-se pelos veículos de comunicação em massa, agregando-se em grupos e coletivos, e ficando mais e mais interessados por outras linguagens.
Durante o século XX, vimos um poeta como um Stephane Mallarmé interessado em jornalismo, música e escultura; um compositor como Eric Satie interessado por arquitetura, teatro e pintura; um romancista do tipo de James Joyce interessado por música, cinema e teatro; um cineasta como Jean-Luc Godard interessado por quadrinhos, fotografia e música. Já dizia o tão amaldiçoado Oswald de Andrade: “Só me interessa o que não é meu”. Mais da relação entre a arte moderna e as novas tecnologias pode ser lido nos antológicos “Understanding media” do canadense Marshall McLuhan, e “Contracomunicação”, do poeta e ensaísta Décio Pignatari.
Diz o midiólogo Marshall McLuhan que as tecnologias, sejam elas analógicas ou eletrônicas, são extensões de nossas faculdades corporais. Para o autor canadense, a roda é a extensão do pé, a roupa é a extensão da pele, a casa é a extensão do corpo. Ainda McLuhan acredita que a eletricidade foi capaz de tornar o mundo uma “aldeia global”, não porque a conectou através da comunicação, mas porque para ele a eletricidade é uma extensão do sistema nervoso. Tecnologias potencializam também sensibilidades.
Não é de se admirar que foi no período da popularização do rádio, da televisão, do telefone, do avião e de outras tecnologias eletrônicas, que houve um bum de movimentos de minorias, entre elas o movimento negro, o movimento feminista e o surgimento da adolescência como transição entre a infância e a vida adulta. O homem pisou pela primeira vez na lua quase no mesmo momento em que o hippie pisou pela primeira vez em Woodstock. Eram dois mundos que se abriam, promovidos pelas possibilidades e sensibilidades da eletricidade. Se por um lado as tecnologias eletrônicas proporcionam a comunicação à velocidade da luz, por outra também agrega grupos minoritários e aproxima grupos distintos, distantes por questões geográficas e culturais.
Claro que existe um trade-off na tecnologia. Já Aristóteles alertava o risco da escrita reter as faculdades mnemônicas, e pôr em risco a cultura oral. Foi o que aconteceu a partir da invenção da máquina de imprensa. Pouco a pouco, conforme a escrita foi se tornando um meio mais confiável e um suporte mais seguro de comunicação e de registro, perdemos parte de nossa memória. Durante o período medieval, era comum que os escribas recitassem de cor livros inteiros. Mais dessa relação do homem com a invenção da escrita e a natureza do texto enquanto veículo de comunicação pode ser lida no livro “A galáxia Gutenberg”, também de Marshall McLuhan.
Alguns teóricos da filosofia da tecnologia, como o britânico Andy Clark, reconhecem que a fusão homem e natureza é natural ― ou biológica até. Em seu “Natural-born cyborgs” (“Ciborgues natos” em tradução livre), esse autor britânico chama atenção para o fato de que alguns processos humanos, como cálculos complexos e desenho, são impossíveis de serem realizadas sem um suporte material. Para Clark, o papel, a tela ou a calculadora são extensões de nossa mente.
Se por um lado os meios eletrônicos proporcionam expressão e a agregação de minorias, aprimoramento de alguns processos matemáticos e artísticos, por outra ela causa o sectarismo e o embotamento de alguns sentidos (como a memória ou a atenção).
Pulemos para o século XXI. Com o bum da internet (mesmo com o fracasso do estouro da bolha .com), criamos uma euforia sobre o computador como meio educativo. Vieram os mensageiros instantâneos (mIRC, MSN, e-mail, e o já dominante Whatsapp), as redes sociais (MySpace, Orkut, Facebook e esse Frankestein que é o Instagram) e outras tantas plataformas de entretenimento (blogues, Youtube e TikTok). Nesse ínterim, a escola lançou mão aqui e ali sobre alguns desses recursos.
A partir dessas tentativas, observou-se o fracasso que era a aplicação de tecnologias eletrônicas em sala de aula. O jornalista e empresário David Sax dedica uma seção sobre escola em seu livro “A vingança dos analógicos: ou porque os objetos ainda importam”. Pouco a pouco fornecendo telefones inteligentes para crianças, viu-se um decréscimo da interação social entre elas. Aqui cito o autor:
A recomendação amplamente feita por pediatras de todo o mundo para evitar que crianças com menos de dois anos sejam expostas a telas não vem da preocupação de que o conteúdo destas telas possa danificar seu cérebro, mas do medo de que elas poderão substituir atividades sensoriais valiosas, como colocar suas mãos em uma caixa de areia ou comer um pote de massinha de modelar.
A escola é um espaço de conhecimento, mas sobretudo é um espaço de interação social. É o lugar onde o estudante modelará o seu eu e reconhecerá o espaço no mundo que lhe cabe. As telas, por si só, já obstruem essa fase.
Outro malefício das telas é que elas como veículo de comunicação, não permitem a participação do usuário no processo de significação e entregam a informação completa (são, o que McLuhan chamaria de “meio quente”). Essa natureza das tecnologias eletrônicas modernas podem pôr em risco a cognição das crianças. Aponta também Sax que
Os melhores brinquedos, em comparação, são 10% brinquedo e 90% criança: tinta, papelão, areia. O cérebro da criança faz o trabalho pesado e, no processo, aprende.
A escola pode ser importante para o estudante porque, sendo um espaço primariamente analógico, pode promover processos semióticos de primeiro grau (imaginação) e a criação a partir de um marco zero, com poucos recursos. Quando se lhe põe a tela, corta-se o caule da imaginação, porque através da linguagem audiovisual, tudo é definido, tudo está dado. Novamente: isso não tem nada a ver com o seu conteúdo, mas com a estrutura desse veículo.
Apesar disso, não sou contra o uso de tecnologias eletrônicas como meio de aprendizado. É possível aprender através do computador e do telefone. Pela minha própria experiência, eu não teria lido tantos livros e textos marcantes e conhecido tantas pessoas que me ensinaram se não tivesse acesso à internet; foi através sobretudo do Youtube que aprendi quatro línguas estrangeiras; é pelo meu telefone que escuto uma infinidade de podcasts que me ensinam sobre ciência, história e geopolítica.
Mas saliento: isso tudo me aconteceu nos últimos dez anos, quando eu já tinha saído da escola. Tive uma educação profissionalizante que, apesar de ter sido na área da informática, 70% das aulas eram realizadas só à base de lousa, livro e caderno. A partir da biblioteca escolar, de alguns professores e de alguns amigos, passei a valorizar o estudo, e nele anos depois me encontrei.
Tecnologias são extensões de nossos corpos e mentes. Se quero estender o poder do meu punho, uso um martelo; se quero ampliar o poder de minha unha, uso uma faca; se quero potencializar meu raciocínio lógico, uso uma calculadora ou um computador para programar; se quero estender a minha voz, gravo um podcast, publico nas redes, abro um site. Uma faca pode tanto cortar uma cebola para fazer o almoço para minha família, quanto pode cortar o dedo do meu maior inimigo. O mal está não no veículo faca, mas no seu “conteúdo”, a violência.
Percebo que a maior parte das críticas às tecnologias, não vem de uma leitura de sua natureza estrutural, mas do “conteúdo” delas: extremismo político, bullying, pressão de padrões de beleza inatingíveis. Ora, quem tem feito a curadoria desse conteúdo não são mais os usuários dessas tecnologias, mas as empresas que promovem as redes sociais e as plataformas de entretenimento. Não estamos mais na época de uma internet descentralizada e organizada pelos indivíduos, mas de uma internet monopolizada, muralizada e curada através de algoritmos de recomendação de conteúdo.
Está mais do que provado que as mídias algoritmizadas privilegiam discursos extremistas, não porque são relevantes, mas porque proporcionam mais engajamento, logo, mais lucro. E o pior de tudo: caso um filho tenha contato com alguma informação danosa, a plataforma não se lhe responsabiliza ― o culpado é o pai ou a mãe que o permitiu ter um telefone.
Por um lado, as tecnologias promoveram o interesse nas mais diversas áreas e o acesso ininterrupto e descentralizado de informações; por outro sua centralização sob a guarda de corporações de informática que ganham sobre a economia de atenção as infectou. A esta altura deste capitalismo de vigilância, temos de reconhecer nosso real inimigo: temos de combater não o uso de celular, mas sim a Big-Tech. Temos de regularizar as redes sociais.
#tecnologia