groselhas

Ana, 25. Aqui eu escrevo minhas groselhas.

Considerações sobre o artigo “Positive and differential diagnosis of autism in verbal women of typical intelligence: A Delphi study [1]”

DISCLAIMER IMPORTANTE: o artigo fala principalmente de autismo de nível de suporte 1, apesar de não citar o termo, e eu também falo disso aqui. Mulheres com níveis de suporte mais alto também sofrem com demora em seus diagnósticos, mas as questões identitárias são sensivelmente diferentes às que eu experiencio.


Olá, sou Ana, uma pessoa autista adulta (25 anos), identificada socialmente como mulher e diagnosticada tardiamente (24 anos). Já escrevi anteriormente sobre minha experiência de diagnóstico tardio de autismo.

Recentemente, acabei me desvencilhando de acompanhar conteúdos e discussões acerca de autismo, em uma tentativa de me dar o espaço necessário para processar o diagnóstico sem intervenções de redes sociais. Entretanto, participo do grupo de WhatsApp “Autistas – UNICAMP”, minha alma mater, que reúne pessoas autistas da Unicamp e relacionadas. Algumas vezes, pessoas compartilham materiais acadêmicos sobre autismo por lá, e o artigo aqui citado em especial me chamou atenção.

Em “Positive and differential diagnosis of autism in verbal women of typical intelligence: A Delphi study” (CUMIN, PELAEZ, MOTTRON, 2022) ês autories reconhecem os critérios diagnósticos do espectro autista (de acordo com o DSM-V e o CID-11) vagos. Atualmente, nos EUA, um dos países com a maior documentação estatística acerca do assunto, a prevalência de autismo é de 1 para 36 crianças [2], o que pode estar relacionado a diversos fatores. Entretanto, a proporção entre meninos e meninas é de 4 para 1, o que reacende a discussão sobre o processo diagnóstico de TEA em meninas.

Historicamente, o processo diagnóstico de TEA em meninas vem sido prejudicado por preconceitos de gênero e enviesamento dos próprios critérios e testes diagnósticos. Principalmente no tocante a diagnósticos tardios femininos, há uma dificuldade em diferenciar o autismo, um transtorno biopsicossocial, de condições psiquiátricas, como o transtorno de personalidade limítrofe (borderline). O ponto do estudo, portanto, foi averiguar os critérios específicos de diferenciação diagnóstica para mulheres adultas com inteligência “normal”, por parte de especialistas em autismo envolvidos com esse perfil em sete países.

Foram 37 os critérios citados em comum por 20 profissionais entrevistades, separados nas seguintes categorias: fatores de complexidade no atendimento, como gerir esses fatores, sinais típicos de autismo em mulheres e diagnósticos diferenciais e comorbidades.

Entre os fatores de complexidade no atendimento, três coisas me chamaram a atenção: o auto-diagnóstico, condições de estigma relacionadas a transtornos comórbidos e reações negativas com o (não-)diagnóstico.

O autodiagnóstico de autismo é um tópico extremamente inflamado dentro da comunidade autista e arredores (como pais, profissionais de saúde, etc.). Grande parte des defensories de auto-diagnóstico estão de acordo que o autodiagnóstico é apenas a primeira parte do processo diagnóstico e não o ponto de chegada. Entretanto, principalmente entre adolescentes, cresce a quantidade de pessoas envolvidas em reconhecer transtornos por meio de listas superficiais em redes sociais com conteúdos cada vez mais pulverizados e até falsos. Cada vez mais, quando têm acesso ao processo diagnóstico oficial, adolescentes e adultes chegam cheies de certeza de seus diagnósticos, o que atrapalha substancialmente o próprio processo.

Qualquer pessoa que tenha o mínimo conhecimento acerca do DSM-V, um manual estadunidense e o principal manual utilizado no Brasil para orientação de processos diagnósticos psiquiátricos e afins, sabe o quanto pode ser sutil e política a diferença entre diagnósticos. É difícil de chegar a uma conclusão certeira até mesmo para profissionais, mas de alguma forma criou-se a narrativa de que qualquer um pode se autodiagnosticar autista, porque “ninguém conhece você melhor que você mesmo”. Essa parte é particularmente delicada porque muitas pessoas têm seus acessos a diagnósticos negados sistematicamente por diferenças raciais, econômicas e de gênero. Entretanto, o que deve ser envisionado aqui não é a banalização do diagnóstico e sim o questionamento das condições socioeconômicas degradantes a que nós pessoas marginalizadas somos expostas, e, por que não?, a própria categoria diagnóstica.

O neoliberalismo cria as categorias médicas psiquiátricas e as explora enquanto identidades, em um ciclo retroalimentado. 10 anos atrás, quando eu ainda era adolescente e o autismo não era assunto muito comum em redes sociais brasileiras, já se colocava na biografia de sites como Twitter certos indicadores como “bipolar” ou “borderline”. Em outras palavras, não é exatamente um fenômeno pós-TikTok ou restrito a adolescentes nascides após 2003. Infelizmente, o que se observa é cada vez menos a denúncia das intrínsecas relações entre psiquiatria e neoliberalismo e cada vez mais o abraço em identidades. Eu entendo esse fenômeno como vizinho a outro típico do neoliberalismo: todos nós queremos ser úniques, e cada identidade que colocamos em nossas descrições nos ajuda a nos afirmarmos contra o mundo. Em um mundo adoecido de capitalismo tardio, dominado por relações precárias e expropriação de mais-valor extrema, todos sofremos . Aqui não se trata de dizer que “todo mundo é um pouco autista”, afinal de contas, todes sofremos, mas nossos sofrimentos podem ser distintos e o autismo é uma categoria definida. O que coloco em questionamento é a certeza adolescente e jovem-adulta de que sofremos mais do que ês outres e que somos especiais por isso, como se o ônus de sofrer estivesse vinculado necessariamente a um transtorno psiquiátrico... o que não deixa de ser uma postura individualista!

O gancho aqui exposto me leva ao segundo tópico: condições de estigma relacionadas a transtornos comórbidos. A depressão, o transtorno bipolar, o transtorno de ansiedade, o transtorno de personalidade limítrofe, todos eles carregam um pesado estigma social de serem questões puramente pessoais. Quem carrega esses transtornos o carrega por questões individuais, sendo a cura uma questão individual também. “Tem que ter a terapia em dia”, diz a massa jovem em relação a parceires afetivo-sexuais, como se a terapia fosse a panaceia dos problemas psicossociais. Ao contrário, a delimitação do conceito de neurodiversidade coloca no cérebro biológico a “culpa” de sermos quem somos. Não podemos ter culpa sobre nossos sofrimentos se é algo que nascemos com, ou seja, nos afastamos do estigma de sermos responsáveis por nosso próprio “fracasso”. Já não devemos algo à sociedade, ela quem nos deve algo, porque somos diferentes e a nossa diferença importa.

Note que eu definitivamente não concordo com essa leitura sobre os transtornos mentais, e também não afirmo que a vida de autista/neurodiverse é flores. Nós autistas sofremos sistematicamente com exclusão em vários aspectos sociais, mas aqui meu foco é outro: o uso da linguagem e da identidade para, individualmente, nos resguardarmos do sentimento desgraçado de ser uma falha. Ao abraçar a alcunha de “depressives”, nos indicamos individualmente doentes, e nos colocamos na terapia. Ainda que a depressão tenha também sido cerebralizada (um termo usado por Ortega, em “Somos Nosso Cérebro?”), o autismo é especialmente cerebralizado. No autismo, somos nosso cérebro, ele comanda todas as partes do nosso ser. Essa cerebralização de fenômenos psicossociais como se o cérebro fosse de fato uma CPU natural é uma visão neoliberal e colonizada. Desde quando uma parte do nosso corpo (o cérebro) recebeu uma importância desenfreada em nosso senso comum? A proliferação de abordagens neurocientíficas, que acrescentam o prefixo “neuro” em toda e qualquer coisa, gera a neurodiversidade, mas também a “neuroindividualização” (acabei de inventar esse termo). Nós autistas somos um corpo uno, nosso cérebro é apenas parte de nós. Quando compramos essa lógica cerebralizante, estamos também sumindo perante o capital. Em resumo, é meu cérebro que é assim, eu sou diferente e pronto e acabou.

Mas, afinal de contas, existem cérebros típicos? É a pergunta de milhões. Mesmo assim, diversos membros da comunidade autista parecem se segurar em uma premissa de que são um mundo à parte, com uma diversidade natural não vista em nenhuma outra parte da sociedade, e até mesmo colocam questões morais no meio, taxando ês “neurotípiques” de pessoas intrinsecamente ruins. Criamos uma divisão entre “nós” e “elus” que é completamente cinza, ou seja, não tem um critério claro. E mesmo que esse critério fosse claro, é justificado nos fecharmos em um círculo de pureza? Afinal de contas, como o próprio estudo aponta: “A diagnosis of autism can provide a feeling of belonging to a community, and some clinicians felt that the autism as a social identity resonated particularly with their female patients. Many clinicians indicated that autism was seen by their patients and clients as more socially acceptable than a mental health condition, which could complicate the process of making a differential diagnosis and receiving a stigmatizing label.”

A construção da identidade é algo importantíssimo para nosso reconhecimento junto à sociedade. Entretanto, é perceptível a monetização da identidade, e o autismo não deixa de ser uma das identidades que entram nesse balaio. Quando chegam aos consultórios agarrados à certeza de que “meu cérebro é diferente, não é minha culpa”, ês pacientes reagem (muito) mal à notícia de que não preenchem critérios diagnósticos para autismo. Voltam à estaca de “você pode ter outro transtorno, um que vai ser sua culpa”. O boom da procura por diagnósticos tardios de autismo também está relacionado, portanto, ao estigma de diagnósticos correlacionados que são duramente estigmatizados e individualizados (as próprias categorias diagnósticas de que fazem parte segundo o DSM-V são o estigma da loucura, levando as pessoas a não verem melhora substancial nos seus quadros, claro!)

Passando ao terceiro tópico, o de sinais típicos de autismo em mulheres adultas. São listados 11 sinais, dos quais destaco: “Autistic women, despite presenting as intelligent, had often failed to achieve expected levels of personal/professional success”, e “In autistic women, gender may be expressed more fluidly, with less attachment to the gender binary, or femininity may appear forced/rehearsed”.

A marca social da diferença está muito relacionada à questão diagnóstica do autismo e esses dois tópicos são sintomáticos. Primeiramente, o que é “alcançar níveis de sucesso profissional/pessoal” em um contexto em que sofremos brutalmente com o desemprego, o subemprego, a inflação, a substituição por tecnologias, entre outros? Algum des tides “neurotípiques”, por mais inteligentes que sejam, conseguem alcançar esses níveis de sucesso profissional/pessoal? O que é essa métrica do “sucesso”? Utilizar um critério associado ao sucesso de uma pessoa, atrelando-o ainda à noção de inteligência, é também um sintoma neoliberal por trás das avaliações neuropsicológicas e psiquiátricas. Parece, então, que ao observar ume indivídue que não responde adequadamente à pressão neoliberal, e juntarmos a um conjunto de características que se destacam em meio a uma pretensa normalidade, precisamos patologizá-le.

Ainda dentro da diferença, a aparição do critério de expressão de gênero fluida como atrelado ao autismo também é preocupante. Quantas mulheres e outras pessoas que desviam da norma de gênero foram internadas em sanatórios ao longo da história? Desvincular gênero e sexualidade de critérios patológicos é mandatório em um cenário antimanicomial. É verdade que nós autistas por sermos menos ligades a normas e convenções sociais, estamos mais propenses a nos expressarmos mais livremente. Entretanto, o desconforto e o rechaço a normas sociais de gênero e sexualidade é uma coisa perfeitamente normal em uma sociedade repressiva de desviantes. No grupo des autistas da Unicamp, mais de uma vez pessoas relatam seu desconforto com normas de gênero como se fosse um trejeito autístico. Na verdade, esse é um desconforto... humano. Tentar vincular as duas coisas como intrínsecas, além de problemático, volta ao assunto de buscar formas de nos colocarmos como especiais perante o resto da sociedade, uma conduta individualizante que nos isola e não nos une em torno da luta por uma sociedade melhor.

Por fim, ainda no tópico de internação manicomial de mulheres e pessoas desviantes de normas de gênero em geral, o próprio estudo apresenta a histórica vinculação entre transtornos psiquiátricos e autismo, como diagnósticos facilmente trocados erroneamente. “Borderline Personality Disorder is highly present in autism assessment clinics as a past diagnosis and/or a potential differential diagnosis” e “Autistic women can superficially present with signs resembling Borderline Personality Disorder”. Isso porque, além de toda a problemática neoliberal apresentada, o gênero é uma camada de interpretação importante. Mulheres desviantes só podem ser loucas, atípicas, “com cérebro diferente”. O que está em jogo aqui é, de fato, a mudança de uma linguagem patologizante para outra que, apesar de parecer menos patologizante, ainda ressoa nas entrelinhas dentro da lógica capitalista.

“Ah, mas Ana, tudo para você é capitalismo? O autismo não ia existir no comunismo?” Isso (as condições de uma sociedade comunista existente) eu já não sei informar, mas a percepção de diagnósticos psiquiátricos e adjacentes está intimamente ligada com o desenvolvimento da medicina, que, oras, anda de mãos dadas com o capitalismo, o racismo e a misoginia, entre outros. Ao abraçar acriticamente identidades provenientes da lógica médica presente no DSM-V, de forma até mesmo agressiva, estamos nos deixando engolir.

Atenciosamente,

Uma autista possivelmente borderline possivelmente louca possivelmente... só humana.

Referências na ordem em que aparecem:

[1] Cumin, J., Pelaez, S., & Mottron, L. (2022). Positive and differential diagnosis of autism in verbal women of typical intelligence: A Delphi study. Autism, 26(5), 1153–1164. https://doi.org/10.1177/13623613211042719 [2] Data & Statistics on Autism Spectrum Disorder, por Centers for Disease Control and Prevention (2022): https://www.cdc.gov/ncbddd/autism/data.html

Ana, 25. Química. Estudante. Autista. Facilitadora de anarquia. Mas muito mais que tudo isso.

Problemáticas e possibilidades dentro do veganismo: o veganismo é cristão?

Começo o texto me apresentando brevemente.

Sou Ana, 24 anos, (ovolacto)vegetariana desde 2018, vegana em alguns períodos dentro desse espaço de tempo (2018-2023). Antes que alguma pessoa vegana torça o nariz e diga que não há “ex-vegane”, apenas aqueles que não entenderam de fato os princípios éticos do veganismo, peço calma. Melhor ler o texto inteiro antes de julgar.

E por que eu dei uma “pausa” no veganismo?

O principal motivo foi a minha incapacidade de me organizar cotidianamente para cozinhar, fruto de uma disfunção executiva associada a um autismo identificado tardiamente, aliado ao desenvolvimento de um incipiente transtorno alimentar. O veganismo propõe a adoção do vegetarianismo estrito*, e dietas restritivas podem levar a episódios de compulsão alimentar. Em resumo, eu não estava comendo, e quando comia, comia alimentos de origem animal escondida em grandes quantidades. Não me orgulho disso; obviamente, minha experiência não deve ser basilar para justificar por que o veganismo não dá certo ou qualquer bobagem do tipo. Apenas relato minha experiência pessoal.

*O vegetarianismo estrito é uma dieta baseada apenas em produtos de origem vegetal. Como o veganismo prevê a não-exploração de animais em todas as esferas da vida humana, por consequência todos os veganos são vegetarianos estritos, mas é possível ser vegetariano estrito e não ser vegano.

Fora os aspectos práticos, posso dizer que durante a pandemia de COVID-19, o veganismo foi meu interesse especial. Dessa forma, eu dormia e acordava pensando em implicações éticas do veganismo; relato essa questão para que compreendam que não sou uma pessoa iniciante no assunto. Militei pela causa, participei de coletivos locais e nacionais, e mesmo assim, achei prudente me afastar. Alguma coisa havia estremecido minha no veganismo.

A essa altura, pessoas veganas que leem o texto já devem ter pensado: como assim você militava comendo coisas de origem animal escondida? A cara não queimava de vergonha? Pois é, queimava. Foi aí que eu comecei a perceber que alguma coisa não estava andando bem.

Por que algo que deveria me enriquecer eticamente, ser um modo de vida saudável e com compaixão, estava me trazendo um nível de stress significante ao ponto de me levar a um transtorno alimentar?

O uso da palavra “fé” alguns parágrafos atrás não foi por coincidência. A relação das pessoas veganas com o veganismo é similar a de uma fé professa, apesar do veganismo não ser uma religião, e os princípios éticos do veganismo esbarram muitas vezes em uma ética cristã.

Elaboro.

A ideia de que o veganismo está intrinsecamente ligado ao cristianismo não é minha, na verdade, ela foi cantada por indígenas (em retomada ou não) no Twitter alguns anos atrás. Gostaria de lembrar a pessoa que tocou nesse assunto para dar-lhe os devidos créditos, mas infelizmente já não me lembro exatamente quem foi.

Enfim, não é novidade que o veganismo, especialmente o veganismo praticado por pessoas brancas, está frequentemente em embates com culturas indígenas. Afinal de contas, se o veganismo é atravessado por uma ética animal que busca abolir a exploração animal, o vegano não pode relativizar o que julga ser exploração animal. Diversas culturas, indígenas ou não, utilizam de produtos animais e animais em si. Portanto, a interface entre veganos (especialmente brancos) e indígenas é permeada por racismo.

Aqui eu de forma alguma afirmo que o veganismo é necessariamente branco ou que indígenas não podem ser veganos. Qualquer pessoa pode ser vegana, e o veganismo conta com expoentes em diversas etnias. Entretanto, é importante reforçar os embates entre a ética vegana e os paradigmas culturais vigentes em sociedades.

A pessoa indígena em questão delimitou as aproximações entre veganismo e cristianismo enquanto uma parte cultural importante da sociedade em que vivemos, especialmente quando analisamos as origens do veganismo no Ocidente. É verdade que hoje em dia o veganismo praticado no sul global tem atravessamentos anti-capitalistas fortes, muito mais do que no norte global. Entretanto, as raízes epistemológicas do veganismo seguem com forte influência europeia, e cristã.

Venho repetindo a influência cristã no veganismo, mas por que afirmo isso?

O vegano não pode utilizar de animais, ou de seus derivados, porque, devido à senciência (capacidade de animais humanos ou não de sentirem sensações de forma consciente), seria imoral ser dono, explorar, utilizar, aproveitar-se, machucar, matar, qualquer outro ser senciente. O ponto de discordância mais crucial ocorre entre veganos e outras culturas que têm relações diversas com animais. Aqui, não me refiro à cultura pecuarista de dominação animal. Definitivamente, essa cultura é destrutiva, machista e cruel (para descrever isso, o livro A Política Sexual da Carne, de Carol J. Adams, é exemplar). Refiro-me, entretanto, a cosmovisões de pessoas que enxergam os animais como seus iguais, mas não têm essa premissa de que matar ou utilizar-se de produtos animais seja algo eticamente repreensível.

Lógico que não defendo que matar seja acriticamente correto. Aqui, o que está em jogo é o papel da morte em cada sociedade. A visão da morte enquanto algo carregado negativamente não é unanimidade em todas as culturas, nem todas as mortes são processos violentos. É nesse aspecto que o veganismo se aproxima do cristianismo: a máxima “não matarás” é o ponto principal do veganismo.

A esse ponto do texto, você talvez esteja se dizendo: “mas a relação de povos originários com animais não é a mesma que nós na sociedade ocidental temos”. E concordo com seu pensamento. A crueldade com que animais humanos e não-humanos são tratados em meio ao capitalismo tardio não tem precedentes, e deve ser combatida. Talvez nesse aspecto o termo “especismo*” seja importante para descrever a relação de superioridade, reafirmada na Bíblia cristã, entre humanos e animais não-humanos.

*O especismo é a noção de que humanos são superiores a outros animais não-humanos. Entretanto, esse conceito é atravessado por diversas questões: TODOS os humanos são vistos como superiores a outros animais, ou essa noção vale apenas para os brancos? E quais são as manifestações do especismo nas relações humanos-animais não-humanos?

Outro aspecto tipicamente cristão do veganismo é a relação de abstinência e culpabilização individual. Os veganos são esperados de se absterem de todos os produtos possíveis de origem animal, gerando um sentimento de culpa gigantesco naqueles que não o conseguem por razões múltiplas. Como eu ilustrei nos primeiros parágrafos do texto, a abstinência é um fardo pesado e pouco eficaz para a transformação de visão de mundo de uma pessoa. No veganismo, o adepto é tratado como um ex-dependente químico é tratado na igreja, falando muitas vezes da vida pecaminosa que levava antes de ser eticamente correto.

Como sou uma pessoa que se identifica como ateísta e que fugiu da(s) igreja(s) cristã(s) desde os 9 anos, todos esses aspectos foram muito pesados para mim, e o são para outras pessoas.

Obviamente, nada se compara ao sofrimento animal em tempos de capitalismo tardio, e eu concordo com isso. O que está em disputa aqui é: a existência de visões de mundo que permitem imaginar novas relações com animais indicam que não necessariamente precisamos passar pelo veganismo. Há outras possibilidades.

Não escrevo essas palavras para incentivar o consumo de produtos de origem animal ou o tratamento degradante de animais, na verdade, penso que o primeiro precisa ser reavaliado e o segundo, abolido. Escrevo para afirmar que o veganismo é um caminho muito cristão de resolver o problema que o próprio cristianismo ajudou a impor: a superioridade de humanos em relação a animais. Talvez outras formas de enxergar o mundo e de tratar respeitosamente os animais sejam possíveis.

Esse texto nem de longe esgota as problemáticas e possibilidades do veganismo, não cheguei nem a abordar a polêmica das questões climáticas e ambientais. Entretanto, espero ter contribuído para o debate dentro da comunidade vegana.

P.S.: estou aberta a críticas e sugestões e admito que meu conhecimento do cristianismo não é tão forte quanto poderia ser, então posso ter me equivocado em algum ponto. Fiquem à vontade para contribuir.

Ana, 25. Química. Estudante. Autista. Facilitadora de anarquia. Mas muito mais que tudo isso.

Melodrama

Quem é essa pessoa dirigindo o carro? Quem é essa pessoa olhando o motorista? Você manteve os olhos fixos no semáforo, mas o semáforo já estava amarelo. Os tendões brancos em torno do volante, o pé semicontrolado no acelerador. Entra, a casa é sua; Da janela, a vista era cor de rubi. Meus lábios, já secos, procuraram os seus, mas um beijo não é um beijo se de volta os outros lábios não te beijam. Difícil saber o que fiz de errado, mais difícil ainda o que fiz de certo. Você não se dá bem com minha família, disse-me; Nem minhas crias sua barriga quer carregar. O que temos em comum, então? Nada além de um grande fio verde, mas a tesoura estava em tuas mãos. Essa é a fita mais dolorida, saiu pela porta mais escura, não sem antes um afago, mas o gato já não estava lá para observar. Gosto de me abraçar em noites assim, seus braços não estão aqui para sentir as lágrimas grossas, escarlates, a cair. Seria eu digna de ser amada ou apenas um lampejo de ser humano escrevendo suas querelas tristes no meio da madrugada?

Ana, 25. Química. Estudante. Autista. Facilitadora de anarquia. Mas muito mais que tudo isso.

Reminiscência

Reminiscência é uma recordação do passado.

O filme Her (Spike Jonze, 2013) ensinou que “o passado é apenas uma história que nós nos contamos”. O passado existe em nossa mente como um eco, encantado com um filtro que assume a cor que decidimos colocar nele.

Se meu passado tivesse uma cor, ela certamente seria azul escuro. Não aquele azul bonito que nos tira o fôlego ao olhar para o céu, mas um azul escuro, um azul apático. Quem colocaria essa cor por lá teria sido eu mesma.

Acho que sempre fui uma criança melancólica, e na adolescência não foi diferente. Minha incapacidade de me ligar emocionalmente com meus amigos de escola me levou, anos mais tarde, a passar algumas noites de sono sonhando com o que poderia ter sido, mas não foi. O bullying que sofri no começo da adolescência foi um motor para eu querer pintar minhas experiências de azul escuro. Eu não entendia por que tanta gente não gostava de mim, e ativamente se movimentava para me machucar. Longe de eu ter sido perfeita ou não-problemática, com certeza participei de processos que machucavam outros. Mas é claro, para mim, que a balança pesava contra minha existência.

Entrei no ensino médio em 2013 e passei alguns dos anos mais desgraçados da minha vida. Eu não me identificava com a maioria dos meus colegas de turma, que tinham condições econômicas diferentes e assuntos que não me contemplavam; os poucos com quem eu tinha algum assunto, mais uma vez eu não conseguia manter laços emocionais com eles. Outros, ainda, eram amigos que eram incapazes de manter relações saudáveis comigo, enquanto eu era incapaz de fazer o caminho contrário. Fiquei conhecida no máximo como a menina invocada, a bravinha, ou, na maioria das vezes, invisível. As vantagens de ser invisível...

Quando entrei na faculdade, fiz uma escolha deliberada de inventar uma personagem diferente, dessa vez eu não seria a pessoa chata, eu ia ser querida e legal. Hoje entendo esse processo como parte do masking do autismo, mas não vou focar nesse assunto, pois entendo esse viés como menos importante aqui. De qualquer forma, tentei muito ser a pessoa que todos gostavam, só para descobrir que ninguém se deixou enganar pela minha máscara, minha nova personagem. Criei inúmeros desafetos durante meus anos de graduação. Dos 013 aos 019, todos os anos têm assunto para lembrar de mim como uma insuportável. Mas eu era realmente insuportável?

Talvez eu tenha feito escolhas erradas durante meus anos de graduação, escolhas que me levaram a descontar os pesos de ser uma farsa ambulante em pessoas que não tinham nada a ver com o assunto. Mais de uma vez, ativamente machuquei pessoas com minhas palavras. Mas eu não fui especialmente insuportável, ou deliberadamente uma pessoa ruim, eu só queria ser querida. Na ânsia de ser vista como uma pessoa legal, as pessoas me viram como ridícula. Como disse um amigo meu, as pessoas não riam comigo. Elas riam de mim.

Felizmente, eu consegui fazer amigos queridos durante os anos de graduação. Muitos já se afastaram e se perderam pela vida, talvez nunca mais nos falemos. Sobraram uns cinco para contar história, e está ótimo. Porque o fardo do masking, de ser uma farsa, é muito pesado para carregar, e ele não durou muito tempo. Eu só posso ser eu. E meu eu é, assumidamente, insuportável para muitas pessoas. Talvez aquilo que eu mais tenha aprendido durante os últimos anos tenha sido que, não importa o que façamos ou quem sejamos, nunca vamos agradar a todos. É possível que não agrademos nem metade das pessoas com quem interagimos. Eu sou, de fato, uma pessoa difícil de lidar em diversos aspectos. Mas quem convive comigo sabe das delícias que podem aproveitar estando próximos de mim, também. Mais uma pessoa como qualquer outra, porque todos têm altos e baixos.

O resumo dessa história e a moral eu não sei. Olho para trás com certa dor em perceber que fiz tantas inimizades e desafetos durante minha trajetória, devido à minha personalidade difícil e pouco convidativa, mesmo (e principalmente) quando eu tentava esconder isso e ser querida. Ainda hoje sofro com esses problemas de comunicação, também no ambiente de trabalho. Só que, ao mesmo tempo, estou ativamente ciente de que ser querida por todos é, também, uma farsa. Por isso, já não busco esse estado de ser. Ainda bem.

Meu eu do passado teria orgulho de quem eu sou hoje e isso é o que importa.

Cheers.

Ana, 25. Química. Estudante. Autista. Facilitadora de anarquia. Mas muito mais que tudo isso.

Autismo e outras drogas

Receber o diagnóstico de autismo aos 24 anos é estranho. É como receber a resposta de uma pergunta que você nunca perguntou, mas ao mesmo tempo, sempre (se) perguntou. Um gosto do sentimento de inadequação é normal na adolescência. Eu já não sou adolescente há alguns anos e esse sentimento não me abandonou. Era meu aniversário em uma noite gelada de junho de 2021, olhei para meu então namorado e falei: “acho que tem alguma coisa errada comigo”. Cinco anos antes, um amigo meu me deu uma bronca amigável: “falar com você é engraçado. Você não me olha no olho, parece que tá viajando”. Desde então, todas as interações com as pessoas vieram com um “será que estou olhando para essa pessoa?” Aos 20, trocando de psiquiatra, contei para a médica que em nenhum período da minha vida soube dizer que eu estava com sede antes de minha garganta estar pegando fogo, ou quando ir ao banheiro antes de sentir uma dor absurda. Ela achou engraçado que meus amigos me lembravam de fazer essas coisas, eu já achava uma humilhação. Ainda aos 20, um episódio com um professor orientador de auxiliar didático na faculdade fez eu desenvolver certo trauma. Ele chegou a afirmar que eu era a pior pessoa que ele havia conhecido. Tudo por causa de uma falha de comunicação, em que eu fui incapaz de entender o que era o correto socialmente. Aos 3, eu já lia e escrevia como uma criança de seis, sete anos. As pessoas achavam fofo, mas isso seria fatal para um destino marcado pelas grandes pressões colocadas em mim. Aos 13, a obsessão por aviões comerciais começou. Eu passava horas sem comer nem dormir apenas alimentando os conhecimentos de aviação, vendo programas e vídeos no YouTube, acompanhando mapas e planespotting. Mas foi só aos 23, em 2022, que os pratos que eu estava segurando em mãos, quentes demais, foram estilhaçados no chão. Precisei varrer a bagunça para fora da casa. Pedi demissão de um emprego que me remuneraria 5 mil reais por mês: eu era professora na rede estadual de São Paulo, um emprego nada fácil, mas que acabara de receber aumento salarial. Cada vez eu chegava em casa mais cansada, precisava dormir mais de 12 horas por dia, várias vezes perdia a hora por não conseguir ir ao trabalho sem passar mal de nervoso e querer me machucar. 40h por semana era, e ainda é, uma carga insuportável para mim. Minha casa estava um caos completo, a louça criando mofo, o banheiro cheirando a urina felina e as roupas, sem lavar por três semanas. Eu já estava quase reutilizando calcinhas. Eu não entendia por que mesmo medicada e tratada da depressão a bagunça reinava. Autista. Ana Paula necessita de suporte leve: tem dificuldades na comunicação, mas sem que isto limite sua interação social significativamente. Problemas de organização e planejamento podem prejudicar a independência. O processo diagnóstico está lento, caro e ainda em processo, entre a suspeita e o parecer da neuropsicóloga foram quase dois anos, e a psiquiatra ainda não fechou o laudo, pois está coletando pareceres com minha psicóloga. Mas, dentro de mim e com as profissionais que me acompanham, o quadro está desenhado. Ouvindo o podcast da Rádio Novelo sobre uma pessoa cega em processo de adaptação com seu cão-guia, senti-me abraçada. A moça relatou a dificuldade que foi aceitar-se enquanto uma pessoa com deficiência: em um dia, ela era normal, no outro, após relatório médico, deficiente. Hoje eu entendo que o autismo é uma deficiência biopsicossocial e que muito provavelmente já se nasce autista. Então, eu sempre fui uma pessoa com deficiência, apesar de apenas aos 24 encontrar palavras para descrever a minha condição. Minha psiquiatra ficou com certo receio de que eu fosse levar o diagnóstico para o lado negativo, ou pior, tomar a identidade como algo fechado em si. Como se ser autista fosse a única coisa que eu pudesse ser, e alguns profissionais ruins e autistas recém-diagnosticados acabam pensando assim. Eu entendo esses autistas: quando algo tão caro para nós chega com tanto atraso, nós queremos ficar abraçados à tábua da identidade. Ela explica com nomes médicos para a sociedade o porquê de não gostarmos que nos toquem, explica porque nós geralmente vamos embora mais cedo das festas ou porque temos movimentos repetitivos estranhos. Eu sou autista, entretanto, sou muito mais do que isso. Vários adjetivos e títulos se aplicam a mim e autista é apenas um deles. Não apaguem isso da minha identidade, mas também não me resumam a ela, e aqui também cabe um tom de autocrítica. Porque às vezes, na ânsia de comprovar para eu mesma um diagnóstico extremamente subjetivo apesar de clínico, acabo me autossabotando. Onde é que já se viu um autista estar feliz (contém ironia)? Por um tempo, tive medo de falar sobre o assunto publicamente e ser julgada por pessoas que não entendem a complexidade da situação. Só que escrever sempre foi uma válvula de escape para mim, desde que, aos seis anos, escrevia um diário com palavras como “pisina” (piscina). Compartilhar faz parte desse processo, receber um retorno das pessoas que se importam comigo é importante. Por isso, obrigada por ler esse texto. Outros virão.

Ana, 25. Química. Estudante. Autista. Facilitadora de anarquia. Mas muito mais que tudo isso.