Autismo e outras drogas
Receber o diagnóstico de autismo aos 24 anos é estranho. É como receber a resposta de uma pergunta que você nunca perguntou, mas ao mesmo tempo, sempre (se) perguntou. Um gosto do sentimento de inadequação é normal na adolescência. Eu já não sou adolescente há alguns anos e esse sentimento não me abandonou. Era meu aniversário em uma noite gelada de junho de 2021, olhei para meu então namorado e falei: “acho que tem alguma coisa errada comigo”. Cinco anos antes, um amigo meu me deu uma bronca amigável: “falar com você é engraçado. Você não me olha no olho, parece que tá viajando”. Desde então, todas as interações com as pessoas vieram com um “será que estou olhando para essa pessoa?” Aos 20, trocando de psiquiatra, contei para a médica que em nenhum período da minha vida soube dizer que eu estava com sede antes de minha garganta estar pegando fogo, ou quando ir ao banheiro antes de sentir uma dor absurda. Ela achou engraçado que meus amigos me lembravam de fazer essas coisas, eu já achava uma humilhação. Ainda aos 20, um episódio com um professor orientador de auxiliar didático na faculdade fez eu desenvolver certo trauma. Ele chegou a afirmar que eu era a pior pessoa que ele havia conhecido. Tudo por causa de uma falha de comunicação, em que eu fui incapaz de entender o que era o correto socialmente. Aos 3, eu já lia e escrevia como uma criança de seis, sete anos. As pessoas achavam fofo, mas isso seria fatal para um destino marcado pelas grandes pressões colocadas em mim. Aos 13, a obsessão por aviões comerciais começou. Eu passava horas sem comer nem dormir apenas alimentando os conhecimentos de aviação, vendo programas e vídeos no YouTube, acompanhando mapas e planespotting. Mas foi só aos 23, em 2022, que os pratos que eu estava segurando em mãos, quentes demais, foram estilhaçados no chão. Precisei varrer a bagunça para fora da casa. Pedi demissão de um emprego que me remuneraria 5 mil reais por mês: eu era professora na rede estadual de São Paulo, um emprego nada fácil, mas que acabara de receber aumento salarial. Cada vez eu chegava em casa mais cansada, precisava dormir mais de 12 horas por dia, várias vezes perdia a hora por não conseguir ir ao trabalho sem passar mal de nervoso e querer me machucar. 40h por semana era, e ainda é, uma carga insuportável para mim. Minha casa estava um caos completo, a louça criando mofo, o banheiro cheirando a urina felina e as roupas, sem lavar por três semanas. Eu já estava quase reutilizando calcinhas. Eu não entendia por que mesmo medicada e tratada da depressão a bagunça reinava. Autista. Ana Paula necessita de suporte leve: tem dificuldades na comunicação, mas sem que isto limite sua interação social significativamente. Problemas de organização e planejamento podem prejudicar a independência. O processo diagnóstico está lento, caro e ainda em processo, entre a suspeita e o parecer da neuropsicóloga foram quase dois anos, e a psiquiatra ainda não fechou o laudo, pois está coletando pareceres com minha psicóloga. Mas, dentro de mim e com as profissionais que me acompanham, o quadro está desenhado. Ouvindo o podcast da Rádio Novelo sobre uma pessoa cega em processo de adaptação com seu cão-guia, senti-me abraçada. A moça relatou a dificuldade que foi aceitar-se enquanto uma pessoa com deficiência: em um dia, ela era normal, no outro, após relatório médico, deficiente. Hoje eu entendo que o autismo é uma deficiência biopsicossocial e que muito provavelmente já se nasce autista. Então, eu sempre fui uma pessoa com deficiência, apesar de apenas aos 24 encontrar palavras para descrever a minha condição. Minha psiquiatra ficou com certo receio de que eu fosse levar o diagnóstico para o lado negativo, ou pior, tomar a identidade como algo fechado em si. Como se ser autista fosse a única coisa que eu pudesse ser, e alguns profissionais ruins e autistas recém-diagnosticados acabam pensando assim. Eu entendo esses autistas: quando algo tão caro para nós chega com tanto atraso, nós queremos ficar abraçados à tábua da identidade. Ela explica com nomes médicos para a sociedade o porquê de não gostarmos que nos toquem, explica porque nós geralmente vamos embora mais cedo das festas ou porque temos movimentos repetitivos estranhos. Eu sou autista, entretanto, sou muito mais do que isso. Vários adjetivos e títulos se aplicam a mim e autista é apenas um deles. Não apaguem isso da minha identidade, mas também não me resumam a ela, e aqui também cabe um tom de autocrítica. Porque às vezes, na ânsia de comprovar para eu mesma um diagnóstico extremamente subjetivo apesar de clínico, acabo me autossabotando. Onde é que já se viu um autista estar feliz (contém ironia)? Por um tempo, tive medo de falar sobre o assunto publicamente e ser julgada por pessoas que não entendem a complexidade da situação. Só que escrever sempre foi uma válvula de escape para mim, desde que, aos seis anos, escrevia um diário com palavras como “pisina” (piscina). Compartilhar faz parte desse processo, receber um retorno das pessoas que se importam comigo é importante. Por isso, obrigada por ler esse texto. Outros virão.
Ana, 25. Química. Estudante. Autista. Facilitadora de anarquia. Mas muito mais que tudo isso.