Problemáticas e possibilidades dentro do veganismo: o veganismo é cristão?

Começo o texto me apresentando brevemente.

Sou Ana, 24 anos, (ovolacto)vegetariana desde 2018, vegana em alguns períodos dentro desse espaço de tempo (2018-2023). Antes que alguma pessoa vegana torça o nariz e diga que não há “ex-vegane”, apenas aqueles que não entenderam de fato os princípios éticos do veganismo, peço calma. Melhor ler o texto inteiro antes de julgar.

E por que eu dei uma “pausa” no veganismo?

O principal motivo foi a minha incapacidade de me organizar cotidianamente para cozinhar, fruto de uma disfunção executiva associada a um autismo identificado tardiamente, aliado ao desenvolvimento de um incipiente transtorno alimentar. O veganismo propõe a adoção do vegetarianismo estrito*, e dietas restritivas podem levar a episódios de compulsão alimentar. Em resumo, eu não estava comendo, e quando comia, comia alimentos de origem animal escondida em grandes quantidades. Não me orgulho disso; obviamente, minha experiência não deve ser basilar para justificar por que o veganismo não dá certo ou qualquer bobagem do tipo. Apenas relato minha experiência pessoal.

*O vegetarianismo estrito é uma dieta baseada apenas em produtos de origem vegetal. Como o veganismo prevê a não-exploração de animais em todas as esferas da vida humana, por consequência todos os veganos são vegetarianos estritos, mas é possível ser vegetariano estrito e não ser vegano.

Fora os aspectos práticos, posso dizer que durante a pandemia de COVID-19, o veganismo foi meu interesse especial. Dessa forma, eu dormia e acordava pensando em implicações éticas do veganismo; relato essa questão para que compreendam que não sou uma pessoa iniciante no assunto. Militei pela causa, participei de coletivos locais e nacionais, e mesmo assim, achei prudente me afastar. Alguma coisa havia estremecido minha no veganismo.

A essa altura, pessoas veganas que leem o texto já devem ter pensado: como assim você militava comendo coisas de origem animal escondida? A cara não queimava de vergonha? Pois é, queimava. Foi aí que eu comecei a perceber que alguma coisa não estava andando bem.

Por que algo que deveria me enriquecer eticamente, ser um modo de vida saudável e com compaixão, estava me trazendo um nível de stress significante ao ponto de me levar a um transtorno alimentar?

O uso da palavra “fé” alguns parágrafos atrás não foi por coincidência. A relação das pessoas veganas com o veganismo é similar a de uma fé professa, apesar do veganismo não ser uma religião, e os princípios éticos do veganismo esbarram muitas vezes em uma ética cristã.

Elaboro.

A ideia de que o veganismo está intrinsecamente ligado ao cristianismo não é minha, na verdade, ela foi cantada por indígenas (em retomada ou não) no Twitter alguns anos atrás. Gostaria de lembrar a pessoa que tocou nesse assunto para dar-lhe os devidos créditos, mas infelizmente já não me lembro exatamente quem foi.

Enfim, não é novidade que o veganismo, especialmente o veganismo praticado por pessoas brancas, está frequentemente em embates com culturas indígenas. Afinal de contas, se o veganismo é atravessado por uma ética animal que busca abolir a exploração animal, o vegano não pode relativizar o que julga ser exploração animal. Diversas culturas, indígenas ou não, utilizam de produtos animais e animais em si. Portanto, a interface entre veganos (especialmente brancos) e indígenas é permeada por racismo.

Aqui eu de forma alguma afirmo que o veganismo é necessariamente branco ou que indígenas não podem ser veganos. Qualquer pessoa pode ser vegana, e o veganismo conta com expoentes em diversas etnias. Entretanto, é importante reforçar os embates entre a ética vegana e os paradigmas culturais vigentes em sociedades.

A pessoa indígena em questão delimitou as aproximações entre veganismo e cristianismo enquanto uma parte cultural importante da sociedade em que vivemos, especialmente quando analisamos as origens do veganismo no Ocidente. É verdade que hoje em dia o veganismo praticado no sul global tem atravessamentos anti-capitalistas fortes, muito mais do que no norte global. Entretanto, as raízes epistemológicas do veganismo seguem com forte influência europeia, e cristã.

Venho repetindo a influência cristã no veganismo, mas por que afirmo isso?

O vegano não pode utilizar de animais, ou de seus derivados, porque, devido à senciência (capacidade de animais humanos ou não de sentirem sensações de forma consciente), seria imoral ser dono, explorar, utilizar, aproveitar-se, machucar, matar, qualquer outro ser senciente. O ponto de discordância mais crucial ocorre entre veganos e outras culturas que têm relações diversas com animais. Aqui, não me refiro à cultura pecuarista de dominação animal. Definitivamente, essa cultura é destrutiva, machista e cruel (para descrever isso, o livro A Política Sexual da Carne, de Carol J. Adams, é exemplar). Refiro-me, entretanto, a cosmovisões de pessoas que enxergam os animais como seus iguais, mas não têm essa premissa de que matar ou utilizar-se de produtos animais seja algo eticamente repreensível.

Lógico que não defendo que matar seja acriticamente correto. Aqui, o que está em jogo é o papel da morte em cada sociedade. A visão da morte enquanto algo carregado negativamente não é unanimidade em todas as culturas, nem todas as mortes são processos violentos. É nesse aspecto que o veganismo se aproxima do cristianismo: a máxima “não matarás” é o ponto principal do veganismo.

A esse ponto do texto, você talvez esteja se dizendo: “mas a relação de povos originários com animais não é a mesma que nós na sociedade ocidental temos”. E concordo com seu pensamento. A crueldade com que animais humanos e não-humanos são tratados em meio ao capitalismo tardio não tem precedentes, e deve ser combatida. Talvez nesse aspecto o termo “especismo*” seja importante para descrever a relação de superioridade, reafirmada na Bíblia cristã, entre humanos e animais não-humanos.

*O especismo é a noção de que humanos são superiores a outros animais não-humanos. Entretanto, esse conceito é atravessado por diversas questões: TODOS os humanos são vistos como superiores a outros animais, ou essa noção vale apenas para os brancos? E quais são as manifestações do especismo nas relações humanos-animais não-humanos?

Outro aspecto tipicamente cristão do veganismo é a relação de abstinência e culpabilização individual. Os veganos são esperados de se absterem de todos os produtos possíveis de origem animal, gerando um sentimento de culpa gigantesco naqueles que não o conseguem por razões múltiplas. Como eu ilustrei nos primeiros parágrafos do texto, a abstinência é um fardo pesado e pouco eficaz para a transformação de visão de mundo de uma pessoa. No veganismo, o adepto é tratado como um ex-dependente químico é tratado na igreja, falando muitas vezes da vida pecaminosa que levava antes de ser eticamente correto.

Como sou uma pessoa que se identifica como ateísta e que fugiu da(s) igreja(s) cristã(s) desde os 9 anos, todos esses aspectos foram muito pesados para mim, e o são para outras pessoas.

Obviamente, nada se compara ao sofrimento animal em tempos de capitalismo tardio, e eu concordo com isso. O que está em disputa aqui é: a existência de visões de mundo que permitem imaginar novas relações com animais indicam que não necessariamente precisamos passar pelo veganismo. Há outras possibilidades.

Não escrevo essas palavras para incentivar o consumo de produtos de origem animal ou o tratamento degradante de animais, na verdade, penso que o primeiro precisa ser reavaliado e o segundo, abolido. Escrevo para afirmar que o veganismo é um caminho muito cristão de resolver o problema que o próprio cristianismo ajudou a impor: a superioridade de humanos em relação a animais. Talvez outras formas de enxergar o mundo e de tratar respeitosamente os animais sejam possíveis.

Esse texto nem de longe esgota as problemáticas e possibilidades do veganismo, não cheguei nem a abordar a polêmica das questões climáticas e ambientais. Entretanto, espero ter contribuído para o debate dentro da comunidade vegana.

P.S.: estou aberta a críticas e sugestões e admito que meu conhecimento do cristianismo não é tão forte quanto poderia ser, então posso ter me equivocado em algum ponto. Fiquem à vontade para contribuir.

Ana, 25. Química. Estudante. Autista. Facilitadora de anarquia. Mas muito mais que tudo isso.