Globalização e Crioulização

Graças ao engenheiro americano George Spencer-Brown temos uma teoria rigorosa da forma. Toda forma tem dois lados: o marcado e o não marcado.

A forma é produzida por uma distinção que tem dois movimentos: a observação e a indicação. A distinção é observada e um de seus lados é indicado.

Toda observação bifurca o espaço em lados distintos. Isso vem do fato de que não é possível observar todo espaço ao mesmo tempo. Para que algo seja observado, algo também precisa ficar fora da observação. A operação da observação separa esses dois lados como campos distintos, marcado e não marcado.

Se hoje nos dizem que a economia foi globalizada, isso significa que a globalização é sua forma contemporânea. Mas, como toda forma, ela deve ter dois lados. Chamamos esse outro lado de “crioulização”.

A teoria decolonial diz que a colonização é o outro lado (não marcado) da modernidade. A distinção, portanto, é modernidade/colonialidade. Se a globalização é a forma contemporânea da modernidade, a crioulização é o seu lado não marcado.

A teoria da crioulização nasceu na América Latina caribenha, e é uma teoria da linguagem. Infelizmente, no Brasil, o termo “crioulo” foi racializado. A palavra “creòle”, no entanto, originalmente vem do latim “creare”, criar. São crioulas as línguas criadas a partir da transformação da língua do colonizador, seja pelas populações ameríndias nativas, ou pelos escravos deslocados forçosamente da África.

A crioulização transfigura a língua do colonizador não num modo de aculturação, mas de apropriação. Os colonizados transformam a língua para seu próprio uso.

George Spencer-Brown também cunhou o termo “reentrada”, que é uma generalização do conceito cibernético de feedback. Como todo lado marcado depende de um lado não marcado, então dizemos que há uma reentrada da forma em si mesma, com o lado não marcado reentrando no marcado. Isso, obviamente, produz um paradoxo.

A crioulização é o modo de lidar com esse paradoxo do não marcado no marcado. Assim, aquilo que é “deixado de lado” pela globalização, reaparece como crioulizado, ou seja, como uma linguagem reconstruída dentro de outra linguagem.

Os antigos helenos chamavam de bárbaros aqueles povos que não falavam o grego. Bárbaro é um termo onomatopaico que simulava o canto dos passarinhos. A língua bárbara era a língua crioula entre os povos dominados pelos gregos.

Na verdade, toda língua surge (é criada) da crioulização de uma língua anterior que se expandiu para além das fronteiras de uma comunidade, num movimento “imperial” de alargamento, ou seja, pela conquista.

Assim, a crioulização é um signo da resistência linguística e cultural. É uma recomposição da língua do colonizador para os propósitos dos povos colonizados.

O plural é aqui essencial, pois o colonizador quer se ver como uma unidade étnica ou nacional e essa unidade deve ser representada pela língua colonizadora. Mas, os povos colonizados são sempre plurais e falam muitas línguas diferentes entre si. Assim, a crioulização é uma criação que visa a traduções. A colonização amplia fronteiras, a crioulização cruza as fronteiras.

A crioulização ressurge na globalização como signo de diversidade e inventividade. Tudo que é novo na globalização deve seu surgimento à crioulização de ideias anteriores que estavam em estado “não marcado”, ou seja, latente.

A crioulização constrói, desconstrói e reconstrói as línguas. Essa permanente atividade amplia o horizonte semiótico da cultura. Se as culturas avançam por fronteiras e divisões, as crioulizações são essenciais como seus modos de passagem. Ou, em outras palavras, para os impasses da globalização, a crioulização é a única resposta.

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