A solidão de um músico diferentão
Nem todo mundo sabe, falo sobre tantos assuntos diversos aqui neste blogue, mas sou músico profissional, é minha atividade profissional principal. Toco acordeon, piano, leciono diversas disciplinas em um conservatório de música. Como criei este blogue para falar livremente de diversos assuntos, acabo fugindo um pouco da minha especialidade, sobre a qual costumo produzir academicamente. Mas me deu vontade de falar sobre esse tema de uma maneira mais leve e emocionada, orientado mais pelos afetos do que pelas regras da ABNT.
Ao longo da vida eu sempre tive, na perspectiva do profissional da música, um certo incômodo que de uns anos para cá eu consegui organizar e colocar nome. Gosto muito da ideia que aparece nos Contos de Terramar da Úrsula K. Le Guin: saber o nome das coisas ou das pessoas te dá poder sobre elas. Entrei em contato, durante o meu mestrado em Etnomusicologia, em uma disciplina da Antropologia, com o etnomusicólogo Thomás Turino, que divide as funções da música, principalmente entre música apresentacional e participativa. Embora a fronteira entre as duas possa ser uma nuvem cinzenta em vários casos e existam muitas críticas sérias e bem embasadas contra essa classificação, gosto de pensar, baixando a guarda da problematização, que existe música para ser ouvida, apreciada, e música para participar com o corpo, com palmas, cantando, dançando ou até tocando instrumentos musicais e interferindo na performance.
Sempre me achei diferentão de praticamente todos os meus amigos músicos e me sinto um peixe fora d'água em quase todas as disciplinas, congressos e espaços acadêmicos, a não ser por aqueles perfeitamente alinhados à minha temática de pesquisa, que é a música negra. E sempre foi nas disciplinas de Antropologia que pra mim as coisas faziam sentido, me sentia abraçado, confortável, entre pessoas que pareciam comigo, mesmo quando eram muito diferentes.
Acho que nem todo mundo sabe como pensa e se comporta um músico profissional médio (principalmente os letrados na partitura), e acredito que as pessoas ficariam chocadas se soubessem. Lógico que existem diversos perfis, essa é uma profissão muito diversa, mas eu percebo que muitos músicos são extremamente vaidosos, e gostam de exibir a sua técnica, e também gostam de ouvir outros músicos que são vaidosos. Dentro da lógica neoliberal, são consumidores, dos streamings e redes antissociais de seus músicos referência e principalmente de adquirir inúmeros equipamentos e instrumentos caros, sempre com a desculpa que é ferramenta de trabalho, que é pela fruição estética, mas sabemos que no fundo é pela vaidade mesmo (e/ou também pela reserva de mercado, já que o equipamento melhor hipoteticamente aumenta a chance de ter gigs).
Me esforço bastante para não ser uma pessoa moralista, porque acho que o moralismo é uma armadilha que as pessoas de esquerda e progressistas caíram nos últimos tempos, e é um buraco bem difícil de sair. Não tenho nada contra a vaidade, para ser sincero, acho que a vaidade faz parte da vida e da arte. Nem todo artista é vaidoso, mas acredito que a vaidade sempre está ali em algum nível, de alguma forma. Se você faz algo para alguém te ouvir ou te ler, acho que algum nível de vaidade há ali, e sendo esse nível saudável e não fazendo mal para ninguém, não vejo problema nenhum nisso. O problema é que existem vaidades que são danosas para a própria pessoa e seu entorno, longe de mim cagar regra, mas já cagando um pouco, tá cheio de músico rebolando pra pagar sua fatura do banco roxo porque parcelou aquela caixa de som de 30 mil reais. Eu sempre me contentei com instrumentos e equipamentos que suprem as minhas demandas profissionais, nesse ponto também sou bem diferentão.
Mas o que eu queria falar mesmo é sobre a música participativa do Thomas Turino, embora essa digressão foi importante para dar mais contexto a vocês. Sempre me incomodou o palco que hierarquiza, a ideia de ídolo e fãs, e a relação do ouvinte pela música que passa quase que só pelo consumo, embora isso seja meio complexo de afirmar desse jeito. Pra mim foi bem libertador descobrir que existem DJs e bandas punk que se recusam a tocar em palcos, que tocam no mesmo nível do público, isso é fantástico e mudou muito os meus parâmetros do que é qualidade musical, se é que existe alguma.
No senso comum do músico médio (pelo menos do músico letrado na teoria musical), a qualidade musical é medida (ou pelo menos tentada) pela complexidade e sofisticação da elaboração dos próprios elementos musicais, não só a letra, como pensa o grande público. A melodia tem que ser boa, a harmonia com acordes interessantes e surpreendentes, o ritmo dançante e envolvente, tudo isso faz parte do que é chamado de qualidade musical. Muita gente acha que alta cultura tem a ver apenas com escolhas estéticas da classe dominante, e essas pessoas não estão totalmente erradas. É que esse quadro é mais complexo, e muitas vezes essa chamada alta cultura de fato produz sofisticação estética, difícil de ser medida e mesurada pelo músico, talvez impossível pelo público comum.
Essas ideias com que entrei em contato foram transformando o que eu entendia por qualidade musical. E mais ou menos nessa época, quando eu fazia mestrado, em 2018, tinha acabado de gravar o disco Paulibucano do sambista Toinho Melodia. Só para explicar como que um pianista e sanfoneiro foi parar num grupo de samba, do qual orgulhosamente integro até hoje, 20 de agosto de 2025. Sempre fui bastante envolvido com o choro e, justamente, gostava do gênero por sua qualidade de música participativa, sempre achei fascinante a ideia de uma roda de choro onde um músico pode chegar no meio, sacar o seu bandolim ou flauta ou clarinete ou instrumento que for, e puxar um choro do seu repertório, interferindo na performance, emprestando a ela uma fluidez e imprevisibilidade muito interessantes. Mas eu descobri que no samba isso é elevado a milésima potência. Sou grato ao choro, por ter sido meu caminho para chegar no samba, mas hoje eu digo que o gênero musical que eu mais ouço, toco e sou apaixonado é o samba!
Toinho Melodia, que infelizmente já subiu, pra mim foi um grande mestre intelectual. Descobri que o samba não é só música, é a própria vida. O Toinho compunha sambas o tempo inteiro, no ônibus, no metrô, nas ruas de São Paulo, na hora do nosso café, intervalos dos ensaios. Nossas rodas de samba sempre foram rodeadas de histórias deliciosas e divertidas sobre as quais quero escrever neste blogue em algum momento. Se tem muito músico que gosta de acorde, de melodia, de nota, eu gosto de lembrar, relembrar, contar e recontar essas deliciosas histórias que o samba me proporcionou. E não é que o samba seja simples, o samba possui sim essa complexidade e alta elaboração estética. E mais ainda, o bônus que é esse fator da integração social.
E eu fui, aos poucos, sem correria e só na malemolência (como diz outro samba do nosso mestre) sacando que qualidade musical é isso também. O Toinho Melodia não gostava de falar sobre isso, mas chegou a ter um momento ruim na vida, virou até morador de rua. Quando foi reconhecido por Toniquinho Batuqueiro, um sambista que era uma de suas referências, sua vida começou a virar, venceu o câncer, conheceu uma rapaziada que abraçou sua obra, gravou seu primeiro disco autoral, viajou em turnê para sua terra natal, Recife, continuou fazendo o que sempre amou até o final da vida que é compor e cantar, e participar de rodas de samba, até onde foi possível. Ou seja, foi o samba que manteve digno e humano o Toinho, mesmo nos piores momentos. Me diz, se isso não é qualidade musical, muito mais que um acorde enfeitado com tensões e dissonâncias.
Mas enfim, nem todo músico pensa dessa forma, observo que a maioria pensa diferente. Não julgo, nem condeno, acho que tive um pouco de sorte também, de ter uma vivência maravilhosa como essa. Fico pensando naquela clássica frase de mãe: você não é todo mundo, se todo mundo se jogar de um precipício, você se joga também? Talvez esse texto tenha um pouco de soberba, empáfia, superioridade moral e vaidade, afinal só se diferencia do outros pra dar destaque a si mesmo. Mas, na verdade, ser tão diferente tem um aspecto que é meio triste em alguns momentos, que é a solidão e a incompreensão, sentimentos que me acompanham em diversos momentos: às vezes na minha rotina dando aula no conservatório (embora a maioria dos colegas já começou a entender a minha brisa, precisa paciência da minha parte também), nos congressos, disciplinas, concursos, etc. Não dá pra esperar que todo mundo entenda rápido a brisa de um pianista e sanfoneiro que gosta mesmo é de tocar samba.
Para não terminar para baixo, vou fazer um contraponto, eu sinto que tenho conseguido transmitir cada vez melhor essa minha visão da música, e isso tem a ver com dominar as palavras, voltando na Úrsula K. Le Guin, minha autora preferida de ficção, tem a ver com estudar, e me comunicar melhor, tem a ver com o doutorado, mas tem a ver também com Exu. É um movimento lento, pequeno, mas eu sinto que tem rolado, e diante dessas perspectivas diferentonas eu sinto, modéstia a parte, que acabei virando referência e descobrindo novas referências em alguns outros “solitários” ou peixes fora da água, como eu. E são essas ligações que me mantém motivado, alegre, criativo, otimista, vivo, como o samba manteve Toinho Melodia em seus piores momentos.
Gostaria muito de, antes de terminar esse texto, agradecer aos meus companheiros de Conjunto Picafumo e agregados, por serem meus parceiros nessa jornada: Rodolfo Gomes, André Santos, Matheus Oliveira, Verônica Borges, Laura Santos, Angela Coltri, Paulinho Timor, Merilyn Esposi, Kathleen Hoepers, Alfredo Castro e tantos outros. Gostaria de agradecer também os companheiros de outras rodas de samba, com quem tanto aprendi: Selito, Rafael Galante, Lobo, Ricardo Perito, Maurício Pazz, Lucas Brogiolo, Alysson Bruno, Rodolfo Stocco, Renato Pereira, Deni Domenico, Railídia, Paulo Godoy, Koka Pereira, Hélio Guadalupe, Roberta Oliveira, Leo La Selva, e tantos outros com quem fatalmente cometi a injustiça de esquecer de citar. É rememorar as histórias que vivi com vocês, e reouvir o nosso querido Paulibucano que vai me dando forças nos momentos de solidão. Obrigado, amo vocês!
Vou encerrar o texto citando a letra de “Vida de sambista” (Kiko Toledo, Ney Nunes e Toinho Melodia), que integra nosso álbum Paulibucano:
Não adiantou abdicar do samba o samba morava em seu coração ganhou dos seus o dom de sambar e do soberano a inspiração
Pra compor, pra sambar Na sutileza dos versos sonhar (2x)
A vida do sambista é o ano inteiro Vai além da ilusão de fevereiro No morro no asfalto, favela, planalto Jamais se intimida, não foge da briga
Sambista não manda recado E faz de qualquer desacato uma rima O tempo é um santo remédio que ensina (2x)
Espero que este texto tenha sido útil, até a próxima! Felipe Siles é pesquisador musical, educador e produtor cultural. Escrevo esta coluna voluntariamente, mas se quiser me pagar um cafezinho e contribuir para que eu escreva mais, segue minha chave pix: felipesilespix@protonmail.com Este blogue não possui nenhum compromisso com a chamada big tech nem com a divulgação nas redes antissociais, então se você quer receber as postagens novas, sugiro utilizar um agregador RSS e acrescentar nele o seguinte link: https://blog.ayom.media/felipe-siles/feed/
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