Vale brigar pelos conceitos – corrupção e soberania
Um sintoma da dificuldade da esquerda em determinar a pauta do debate público é nossa incapacidade de engajar no debate sobre conceitos políticos fundamentais de forma não-reativa. Não conseguimos afirmar nossa compreensão e nossas propostas sobre temas políticos relevantes porque o impulso reativo de antagonizar a direita acaba se tornando o conteúdo da nossa posição política. Se eles são contra, eu sou a favor. Se eles são a favor, eu sou contra. Sem nuances possíveis.
Um exemplo é o combate à corrupção e ao patrimonialismo na política brasileira. Essa foi uma bandeira histórica dos grupos que formaram as instituições político-partidárias da esquerda nacional. Era uma plataforma quase exclusiva de petistas e trabalhistas nos anos 90. Porém, quando o PT se tornou o gestor da máquina estatal, estruturada historicamente em torno da corrupção e do patrimonialismo, a direita instrumentalizou o discurso de moralidade na administração pública. E a resposta da esquerda, ao invés de qualificar a discussão sobre problemas estruturais da governança estatal brasileira, foi de desqualificar e reduzir a importância do combate à corrupção. O que é ainda mais surpreendente considerando os enormes avanços na institucionalização do controle interno e externo sobre as contas públicas durante os governos do PT. A narrativa e a ação pra mostrar existiam, mas na prática a bandeira da luta contra a corrupção foi cedida para a direita.
Não entenda aqui uma defesa do centrismo ou de uma suposta moderação nas posições políticas. Pelo contrário, quebrar esse ciclo de reatividade, que rebaixa a esquerda ao pensamento binário da direita, demanda uma afirmação radical dos valores que definem e diferenciam a esquerda política.
A recente vitória discursiva da esquerda com a bandeira da defesa da soberania nacional é um ótimo exemplo disso. Foi possível auferir ganhos políticos e possivelmente eleitorais avançando uma leitura propriamente de esquerda do que significa nacionalismo, ou patriotismo. Para isso, foi preciso deslocar o centro dos conceitos do vazio performático que é a estética bolsonarista para a concretude de posicionamentos acerca da soberania geoeconômica nacional e a resistência a tentativas estrangeiras de interferência nos assuntos internos.
O problema é que fomos praticamente empurrados à força para essa posição pelos erros táticos da direita. A questão da reatividade persiste, apesar da importantíssima vitória nessa batalha pelo significado dos conceitos. Mas os aprendizados dessa campanha podem ser aplicados em outras áreas, para avançar sobre consensos sociais até agora dominados pela direita. Um exemplo que me vem à mente é a pressão por uma reforma tributária que tenha por princípio a justiça tributária, não apenas defendendo o aumento de impostos para os ricos, mas o alívio da carga tributária sobre os pobres.
Isso seria adequar o discurso às demandas e necessidades concretas da classe trabalhadora sem abandonar valores fundamentais. Um nó que a esquerda ainda precisa desfazer em outros temas também, como empreendedorismo, segurança pública, conservadorismo religioso, etc. E é importante fazer isso tomando a condução do debate, sem ir à reboque da direita, porque não dá pra confiar que eles vão sempre entregar a disputa conceitual de bandeja, como dessa vez.